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Publicado a: 29/09/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira 

O ano era 1997.

Lá fora, viviam-se os tempos áureos do hip hop. Em particular, a consolidação do hardcore hip hop na Costa Este da América, em resposta ao fenómeno do g-funk, virtude de uma série de clássicos lançados num curto espaço de tempo. Os Wu-Tang trouxeram o ruckus com os seus 36 Chambers, Nas ofereceu-nos o mundo em Illmatic, a infâmia dos Mobb Deep foi certificada disco de ouro e Biggie estava pronto para morrer.

Em Portugal, pelo contrário, o hip hop estava a dar os primeiros passos. Até então, no país à beira-mar plantado, o rap era um mundo desconhecido, que ainda não tinha granjeado o respeito e o reconhecimento que ambicionava.

A compilação Rapública, de 1994, mostrara o caminho, mas ainda nenhum álbum de hip hop tradicional tinha sido lançado.

Não podemos esquecer que ainda estávamos no início, por isso são notórias as marcas de regionalismo (a forte ligação aos PALOP e a presença ubíqua do Sul de Portugal, patente no mapa da Grande Lisboa que orna a capa da primeira compilação de rap nacional, com o rio Tejo a separar o centro da capital da margem Sul, bem como a falta de representação de outras zonas do país, nomeadamente o Norte) e as miscigenações com a cultura e as formas musicais de expressão africana, como o reggae e o kizomba (por exemplo, “Rabola Bo Corpo” dos Family).

O racismo, a pobreza e a discriminação eram preocupações visíveis dos emcees que figuraram em Rapública (note-se o hino anti-racismo “Só Queremos Ser Iguais” dos Zona Dread), e, como nos disse Pedro Tenreiro na sua entrevista, era difícil para três rapazes brancos, do Norte e de classe média, penetrar neste mundo e serem levados a sério, não padecendo dos mesmos problemas que vitimavam os seus colegas.

A célebre compilação é também marcada por uma sonoridade pobre e lo-fi, e muito do rap aí presente era meio cantado em vez de rimado, como se ainda não se aceitasse o rap como forma de expressão fundamentalmente norte-americana e o confundisse com um género de música africana. A agravar a questão, muitos dos sons são cantados em inglês, como se houvesse dúvidas sobre em que língua devia ser cantado o rap feito em Portugal.

Após a compilação seminal que abriu as portas, o ano de 1995 trouxe-nos três álbuns muito diferentes de três bandas muito diferentes.

Os Black Company lançaram Geração Rasca, dividido entre o pop rap orelhudo de “Nadar”, “Vipes” e “Abreu” e o tom confessional e intervencionista de “Ghetto” e “Geração Rasca (Quem Vou Culpar?)”, mas com a mesma sonoridade lo-fi e produção a deixar muito que desejar.

Os Da Weasel, por outro lado, apostaram na linguagem de fusão, encharcando o seu álbum de estreia Dou-lhe Com A Alma em guitarras pesadas de grunge, riffs de funk, refrães de festa de hip hop clássico, e letras divididas entre a atitude e agressividade punk (“Adivinha Quem Voltou”, “Dou-lhe Com A Alma” e “God Bless Johnny”) e a pedagogia social, muito em voga na época (“Educação É Liberdade”).

Entretanto, General D e os seus Karapinhas lançaram, no mesmo ano, Pé Na Tchôn, Karapinha Na Céu, um álbum muito mais próximo da música africana que do hip hop tradicional, repleto de percussão étnica e títulos em crioulo. Por outro lado, os seus colegas Dealema trouxeram-nos Expresso do Submundo no ano seguinte, mas era demasiado lo-fi e underground para pôr o rap do Norte no mapa.

Neste intervalo em que o hip hop português ainda estava a decidir o que era e o que queria ser, os Mind da Gap aproveitaram esse espaço nebuloso de indecisão, e preencheram-no com um statement artístico e uma declaração de amor a um tipo de música, sem pretensões, como que a dizer “O hip hop é isto e veio para ficar”. Ao fazê-lo, e por serem três rapazes do Norte, e não descendentes de africanos, cimentaram a democratização do hip hop e abriram as portas a todos os que o quisessem fazer, sem terem de temer categorizações, classificações e demais associações. Nomeadamente, ao rap do Norte, que sofreu um crescimento notável nos anos subsequentes ao lançamento de Sem Cerimónias.

Sem Cerimónias não pode ser considerado o primeiro álbum de hip hop português, mas foi o primeiro álbum de hip hop cru e puro, despido de fusões e experimentalismos, sem medo de mostrar o que era, algo que foi sempre uma das preocupações assumidas pelo grupo desde o início.

E no entanto, nada fazia prever o seu sucesso, sobretudo a julgar pela discografia anterior do grupo inicialmente conhecido como Da Wreckaz, que chegou a ser uma banda de covers, indecisa entre cantar em português ou inglês.

Nos tempos pré-Internet, a sua fama surgiu na rádio, no célebre Repto de José Mariño, em que a sua canção “Piu Piu Piu” foi votada para o top pelos ouvintes, e precipitou o convite para estúdio para gravar o primeiro EP, a par de uma amizade com Pedro Tenreiro, A&R da NorteSul.

 



Mind da Gap, editado em 1995, era juvenil e imaturo (na altura, Pedro Gonçalves da Blitz chamou-lhes “demasiado verdes” e os próprios foram criticados por serem “lineares, monocórdicos e limitados”), tanto na produção, manifestamente mais lo-fi e menos polida (feito com equipamento amador: um sampler emprestado, uma caixa de ritmos Alesis e um computador Atari), como nas rimas, fáceis e infantis (lembremos “Piu-Piu-Piu”, com o seu loop de tuba cartoonesco e os seus insultos pueris, como “seu cara de couve” e “vai apanhar no cu”), e no flow e métrica, mais hesitantes. E não envelheceu tão bem, talvez culpa de referências tão datadas (os Bandemónio, as campanhas de Dar Sangue, a TVI católica…).

Na mesma crítica, o mesmo Pedro Gonçalves acusou a música de ser “demasiado frágil” e a artificialidade da batida “por demais evidente”, concluindo por dizer que “no fundo, os Mind da Gap não são mais do que vítimas do ‘boom’ do hip hop português, atirados para o estúdio precoce e irreflectidamente” e “teme-se pelo futuro do projecto”, recomendando-lhes ainda a hibernação, para “captar ideias”.

Não por sugestão do crítico, mas os Mind da Gap de facto aprenderam com os erros e venceram os seus detractores, porque cada um destes vaticínios provou-se errado: a música de Sem Cerimónias não é frágil (antes pelo contrário), as batidas, robustas e polidas, ressoam com orgulho na caixa de ritmos de que vieram, acusando a qualidade da produção que está por detrás de cada uma delas e os Mind da Gap foram de vítimas e acidentes de percurso a pioneiros e heróis nas linhas da frente, esmagando e dissipando quaisquer medos e dúvidas em relação ao seu futuro, e passando de “projecto” a um dos grupos mais importantes da história do hip hop português. E fizeram-no num tempo em que era preciso os jornalistas explicarem aos leitores que MC era acrónimo de Mestre de Cerimónias.

Aliás, todo o EP está pejado de referências que deixavam adivinhar a importância que o trio viria a ter no crescimento do rap nacional, como se os rapazes já soubessem que tinham vindo para ficar. Em “Deixa-te Disso”, avisavam “Avisem os jornais, já somos cada vez mais/Já ‘tamos a causar reacções nacionais” e “Quando o rap causar rombos na indústria musical de Portugal”. Mas foi apenas com Sem Cerimónias que começaram a fazer-se ouvir.

 



Críticas à parte, tinham bom ouvido para a música e a base sonora já estava lá (apenas precisava de ser refinada): as batidas boom bap, os samples melódicos de soul e funk (o melhor é, sem dúvida, o baixo e a guitarra de “Dádiva”), os loops de piano e saxofone (“Passeio Mental” assemelha-se a “O Pensamento É A Minha Droga”), embora neste álbum haja um gosto por melodias mais simples e infantis.

As suas preocupações também eram outras, por serem mais novos, como acordar tarde depois de uma noite de festa, em “Tá-se Mal” (e o intervencionismo sobre doação de órgãos de “Dádiva” está longe da história de crime de “És Como Um Don”).

Depois do EP homónimo e da fusão grunge-rap alternativo de Flexogravity, com Blind Zero, em 1996, mistura de batidas downtempo de trip hop de Serial com riffs de guitarra, raps paranóicos de Ace e Presto e o barítono plangente de Miguel Guedes, foram para estúdio gravar o seu primeiro álbum, que, escusado será dizer, não se revê no seu antecessor. O som é mais polido e encorpado, as batidas mais intensas, as rimas mais desenvoltas e complexas e a sua entrega mais confiante e segura.

Para o seu primeiro álbum a sério, munidos de mais tempo, experiência e um aliado poderoso, puseram de parte o amadorismo do seu EP de estreia, e o experimentalismo de fusão do seu dueto com Blind Zero e entregaram-se à tarefa de executar uma obra de puro hip hop.

As influências americanas são óbvias (a semelhança a clássicos da costa Este dos anos 90 é evidente, sobretudo The Infamous), desde a crueza das batidas e fontes dos samples (que vêm sobretudo da soul e do jazz funk) ao conteúdo lírico, que emula não apenas a confiança suprema e masculina típica do rap mas o universo do crime explorado por grupos como Mobb Deep, Gang Starr ou Wu-Tang Clan.

Os Mind da Gap ainda eram novos, mas não tão novos como no seu EP de estreia, por isso as suas preocupações e os seus alvos, desta vez, eram outros.

Continuam as críticas ao jornalismo e ao meio musical português (que já tinham lançado no EP), que vêem como tacanho e opressor (tanto é que desta feita lhe dedicaram uma música inteira). Sentimento curiosamente ecoado pelos Líderes da Nova Mensagem, que cantavam, em “Rap É Uma Potência”, de Rapública, “Queremos implantar este estilo em Portugal, mas o português tem medo de ser radical”. Nada de novo, portanto.

Mas desta vez expandem a sua lista de alvos para incluir falsos amigos, emcees de qualidade e intenções duvidosas, a irracionalidade dos que fomentam a rivalidade Norte-Sul e a corrupção que grassa no país.

 



Ou seja, como foi dito no preâmbulo que antecede a entrevista ao trio na Blitz de Outubro de 97, o imaginário é o mesmo do rap americano (como o atesta o número final, “Representin’ Lovely”, inteiramente cantado em inglês, um tributo em tom jocoso à thug life de Biggie Smalls e companhia) e as afinidades com o mesmo explicitamente assumidas desde o início.

O título refere-se tanto à sua profissão como ao seu estilo despojado e agressivo, que alterna entre ser beligerante e galhofeiro, algo mais do que normal no rap coetâneo.

O álbum conta com uma participação especial, de importância basilar: a mistura de Troy Hightower, engenheiro de som americano que trabalhou com Erick Sermon, e que deu uma refinação à sonoridade, que assinalou uma marcada melhoria em relação ao EP anterior e cimentou uma afinidade clara com o hip hop americano, fazendo soar o bombo e a tarola de uma forma nunca antes ouvida num álbum de rap nacional.

Este é, aliás, um dos poucos álbuns de hip hop português que se recomenda ouvir numa aparelhagem em condições.

A mesma entrevista de Pedro Tenreiro diz-nos que Troy Hightower foi descoberto por acaso, lendo os créditos de discos de que gostavam na altura na loja Valentim de Carvalho que ocupava o andar por baixo do escritório da NorteSul, no Porto. Colaborador de toda a gente, desde Redman e Erick Sermon até Common, LL Cool J e Lord Finesse, e presença activa nos famosos D&D Studios, em Nova Iorque, onde gravavam os Gang Starr e DJ Premier (que mais tarde o comprou para si, em 2003), foi ele que forneceu o som encorpado e polido que faltava no seu EP de estreia.

Na verdade, o modelo sonoro já estava definido, mas foi aqui que Serial aprimorou a sua produção, dando robustez e carácter ao seu boom bap de recorte mais clássico.

Munido de uma seleção de discos de jazz, soul e funk (alguns comprados em Londres, outros da colecção de discos de Pedro Tenreiro, que o deixava fazer digging a seu bel-prazer) e do equipamento certo para os cortar (incluindo a famosa E-mu SP-1200), Serial criou um clássico que resistiu à passagem do tempo e mostrou-nos que não ficava nada atrás de Primo, Pete Rock ou Havoc como cozinheiro de receitas que induzem movimentos involuntários do pescoço. Não há, aliás, uma única má batida neste álbum.

Evitando a ostentação funk da Costa Oeste e o seu g-funk com os seus sintetizadores de dente de serra e baixos proeminentes, Serial emula aqui claramente os clássicos produtores da Costa Este dos anos 90, com batidas pesadas e robustas em tempo médio, loops de piano, saxofone e violinos elegantes de soul cortados com precisão e baixos subtis, cortesia de Francisco Rebelo dos Cool Hipnoise, afiliando o álbum com a estética sonora do hip hop hardcore popular na época, o que faz de Sem Cerimónias um prazer de ouvir, do princípio ao fim.

A principal base sonora do álbum é o jazz e a soul, âncoras que aproximam ainda mais o álbum do rap americano da época.

Quanto a Presto e Ace, não são rappers brilhantes, e não fizeram com a língua portuguesa o que Fuse ou Sam The Kid viriam a fazer anos mais tarde (com o vocabulário e a métrica, respectivamente), mas são fluidos, divertidos, criativos e nunca aborrecidos de se ouvir, o que se pede num álbum de rap.

Ace é o mais confiante dos dois (aliás, o próprio assume como principal influência, nos agradecimentos no booklet que acompanha o disco, Biggie Smalls, e imita o seu swag, sobretudo no número que fecha o álbum, “Representin’ Lovely”), de voz segura e estilo mais jactante, que por vezes canta (dom que aproveitaria mais tarde, nos álbuns seguintes de Mind da Gap e na sua banda CRU). Na entrevista que nos deu, referiu os primeiros álbuns de Public Enemy e De La Soul como principais influências. Isso nota-se no seu estilo, que combina a masculinidade, beligerância e intervencionismo de Chuck D com o tom mais brincalhão de Posdnuos e Maseo. E fornece um contraponto perfeito a Presto, mais humilde, subtil e discreto, com uma quase-rouquidão memorável que o torna parecido a Adam Yauch dos Beastie Boys.

O contraste entre os dois garante que ouvi-los nunca se torna repetitivo. Como são tão diferentes, nunca cansam. Os dois emcees formam uma parelha agradável, trocando de estilos e registos vocais dentro da mesma canção com habilidade, como uma tag team de wrestling.

De resto, ambos demonstram ampla fluidez e destreza com a língua, num discurso expressivo e rico em figuras de estilo como jogos de palavras, comparações, metáforas e hipérboles.

 



O seu tom é variado, e alterna entre o lúdico (como o humor descontraído de “Como Quem?” e “Bem-vindo”), e o sério e beligerante (como a hostilidade de “Coalizão – Cavaleiros do Apocalipse”), como qualquer rapper que se preze.

E como os rappers americanos que emulam, Ace e Presto oscilam, com grande desembaraço, entre a revolta contestatária, a hostilidade masculina e o lado mais brincalhão, em rimas contundentes e precisas, de quem sabe o que está a dizer e como o quer dizer. E esse mesmo ecletismo reflecte-se também na paleta emocional, que vai desde a melancolia à fúria e à descontracção.

Embora muito mais contidos na violência das suas letras, e sem os relatos vívidos e cinematográficos da vida nas ruas, os rappers portuenses nunca escondem as suas afinidades estéticas com o rap hardcore da costa Este dos anos 90, pelo que ouvir Sem Cerimónias é também ouvir The Infamous, Illmatic, Ready To Die ou 36 Chambers.

E já aqui o seu pendor de crítica social se fazia sentir, em “És Como Um Don” e “O Inimigo Foi Vencido”, revestidas de um tom intervencionista que viria mais tarde a colorir faixas como “Suicídio” ou “Socializar Por Aí”.

As suas letras são boas, mas é a produção de Serial que está aqui em destaque e brilha no disco. De um bom gosto irreprimível e inegavelmente 90s, loops de jazz e soul flutuam em cima de batidas boom bap, num deleite para os ouvidos, fornecendo a cama perfeita para as rimas dos dois rappers.

O modelo musical, que seria mantido nos dois álbuns seguintes, é simples: batidas boom bap de tempo médio, e loops de jazz, soul e funk, aos quais se junta o baixo subtil e melódico de Francisco Rebelo, que embala impecavelmente as batidas de Serial. Ingredientes dos tempos dourados do hip hop, o que só pode ser um bom indício.

 



Serial aprendeu as lições dos grandes produtores dos anos 90, era musicalmente fértil para o hip hop, pródiga em batidas memoráveis, e isso reflecte-se no ecletismo das samples, desde as cordas sinfónicas e românticas de “Falsos Amigos” e “O Mundo É Teu” até ao jazz funk de “Bem-vindo” (que lembra “Deadly Habitz” de Gang Starr com o seu loop de saxofone), a guitarra acústica de “O Inimigo Foi Vencido”, o arpeggio ascendente de piano em “O Pensamento É A Minha Droga”, as suaves teclas de vibrafone em “Como Quem?” e o loop de cordas sinistro de cinema de terror em “Oficiais Mcs”. Conseguiu, com sucesso, emular desde o jazz rap de Primo (e a sua apetência por usar sons estranhos, como o sopro desafinado de “O Que Seria De Mim?”) até aos baixos filtrados de Large Professor, sem deixar de lhe acrescentar o seu toque pessoal.

Mas é tudo melódico e agradável, com uma grande ênfase no groove. Dá para abanar a cabeça e até dançar, e mais não se pode pedir a um produtor.

Não usa e abusa do scratch e tem a sensatez de nunca afogar a voz dos seus colegas, dando-lhes espaço para respirar e se fazer ouvir.

Do princípio ao fim, Sem Cerimónias é sem dúvida um álbum de recorte clássico, desde as batidas boom bap à escolha das samples. Não há aqui floreados, fusões ou experimentalismos.

Denota um respeito pelos elementos básicos do rap, e uma capacidade de os destilar em formatos clássicos de canções, com refrões e hooks tão memoráveis como os versos (destaque para os de “O Inimigo Foi Vencido” e de “Mestres Sem Cerimónias”).

Só há um momento a mais: “O Pensamento É A Minha Droga”, exercício supérfluo e inane de exibição vocabular em torno do fascínio pela glândula pineal, que não faz falta.

O álbum não tem momentos fracos, não perde força nem se repete, musical ou liricamente. Vai progredindo de canção em canção, com verve, atitude e perícia, variando os registos e mantendo o ouvinte interessado e atento. E tem um pouco de tudo para fãs de rap: momentos mais brandos, vozes soul e pop, battle rap, gangsta rap, posse cuts, storytelling, e rap consciente e interventivo.

 



E até há espaço para o humor, como o sample de “Sei Quem Ele É” abrandado a uma velocidade quase-vaporwave que abre “Coalizão – Cavaleiros do Apocalipse”, e a dica de Ace “Nozes para quem não tem dentes, cedo aprendi o ditado, os dentes já os tenho, as nozes tenho procurado”, bem como histórias de amor: “O Que Seria de Mim?” é a história de ciúme e amor não correspondido com uma amante muito especial. Curiosamente, as únicas canções de amor aqui não são sobre desgostos amorosos, e não são dedicadas a mulheres, mas sim à música.

Estávamos em plenos anos 90, e o álbum revela um conhecimento e um domínio da linguagem e estética do hip hop, uma assimilação e apropriação perfeita das tipologias, arquétipos, fórmulas e tradições do rap: o battle rap (“Mestres Sem Cerimónias”, “Oficiais MC’s”), o storytelling (“És Como Um Don”), as posse cuts (“Coalizão – Cavaleiros do Apocalipse”), a atitude de excesso de confiança, o ódio ao falso emcee, o uso de vozes femininas neo-soul para cantar os refrães (“Dedicatória”), e até um piscar de olhos ao gangsta rap e o seu fascínio pelo crime (“És Como Um Don”), bem como um hino de autoconfiança em homenagem a Nas (“O Mundo É Teu”).

O álbum começa com uma introdução de spoken word tingida de filosofia espiritual, por cima de um loop de cordas plangentes de soul à Isaac Hayes, de pitch abrandado, com a voz de Darin Pappas a anunciar “It’s Portugal, 1997”.

Daí partimos para o smooth jazz de “Bem-vindo”, e o seu loop de saxofone alto de Lou Donaldson, semelhante a “Bistro”, que abre Madvillainy, um agradável cartão de visita que nos introduz desde logo ao modelo de batidas melódicas e rimas escorreitas, que nos acompanharão até ao fim do álbum.

Entretanto, há espaço para momentos de pura beleza, como o loop de cordas de soul de “Falsos Amigos”, tão bonito que faz de exímio contraste ao teor lírico amargo da canção.

O loop orquestral romântico de “Recordar É Viver” é o fundo sonoro perfeito para “És Como Um Don”, namoro com o gangsta rap que nos conta a história da ascensão de um “dealer da Sé” ao trono do crime organizado, situada algures entre o relato das ruas de Nas em Illmatic e “Just To Get a Rep” ou “Tha Squeeze” dos Gangstarr.

Momentos como este situam Sem Cerimónias nas mesmas coordenadas estéticas do hip hop americano, o que faz dele um álbum de hip hop americano falado em português, a intenção dos próprios quando o fizeram.

Os Mind da Gap sabiam bem em que estado incipiente se encontrava o hip hop em Portugal, e não é por acaso que “Dedicatória” começa assim:

 


“Tudo bem no país à beira-mar plantado,

Até aparecer algo de novo, nunca identificado

Hip-Hop, muitos gostaram, outros não

Talvez seja por não ser de fácil compreensão”

 


Com versos que atestam o pioneirismo do movimento e a importância do grupo e da obra como um dos primeiros que ajudaram a cimentar o rap como género musical em Portugal.

Estas palavras de Presto, que declaram ao mesmo tempo as intenções do grupo enquanto denunciam o status quo da cena musical em Portugal, e a sua ignorância em relação ao rap no final dos anos 90, bem como o verso de Ace, são uma bem-vinda e mui necessária introdução à história e aos antepassados do hip hop e as suas raízes norte-americanas.

Num país, pois, ignorante em relação a este novo género musical, foi preciso dedicar-lhe uma música. As letras de “Dedicatória” assinalam não apenas a novidade do género em Portugal e o desconhecimento do público em relação a esta música, como também nos levam numa breve viagem pela história da cultura, plena de referências que inspiraram o trio.

 



No refrão, Carla Moreira canta, num registo mais pop do que soul, “Nunca tive ninguém como tu”. Quando se ama, não há dúvidas. É intenso, imediato e temos vontade de o bradar aos céus. Quando se sabe, sabe. Os três rapazes encontraram-no num género musical, e não tiveram medo de o mostrar ao país inteiro. Nesse aspecto, Sem Cerimónias é, também, uma declaração de amor ao hip hop (como os próprios anunciam em “Bem-vindo”, “fazer música pela paixão, hip hop pelo amor”), que, não por acaso, ajudou a cimentar um movimento neste “país à beira-mar plantado”.

E que melhor maneira há de começar um movimento, do que com um golpe de amor à primeira vista?

“O Inimigo Foi Vencido”, invectiva anti-críticos e jornalistas e intrigante parábola denunciadora da crise de valores e podridão moral que grassa no meio musical, que antecede “O Recado”, de Sam The Kid, por dois anos (embora menos lúdico e mais sério), é o ponto alto do álbum e a confirmação da vitória sobre os que duvidaram deles e puseram em causa a sua qualidade desde o início.

Também contém uma letra premonitória de Presto, noção que, aliás, perpassa todo o álbum: “álbuns, chegarei ao quinto, Mind da Gap, para sempre, é o que pressinto”. E embora os Mind da Gap não tenham durado para sempre, o que é certo é que chegaram a editar não cinco mas seis álbuns.

Outro momento profético e digno de nota é o do final de “Bem-vindo”, em que Ace nos diz “Este álbum é eterno, o que representa nunca será derrotado”.

O que Sem Cerimónias representa é o dealbar de um movimento que nunca parou de crescer, e por isso é eterno e ocupa um lugar cimeiro na lista de clássicos do hip hop português.

O álbum fecha com “Representin’ Lovely”, uma dedicação tongue-in-cheek ao gangsta rap popularizado por Biggie, uma das maiores influências de Ace, inteiramente cantada em inglês, que mostra bem o que os rapazes, no seu auge de poder criativo, eram capazes de fazer.

Em “Senso Comum”, do álbum seguinte, Ace diria “O meu destino guardou-me alguns momentos de glória/Reservados em CDs gravados que mudaram a história”. Sem Cerimónias é um deles.

Ao longo do álbum sente-se um desejo contraditório entre ser fiel à cultura underground e alcançar sucesso e pôr o hip hop no mapa, mas qualquer que fosse a intenção original, o que é certo é que os Mind da Gap se tornaram uma banda mainstream com o passar dos anos, e músicas como “Bazamos Ou Ficamos?” ou “Todos Gordos”, que não se coadunam com a modéstia e o recato, viriam a catapultar a banda para o estrelato. Mas contradições à parte, o registo da ambição de três rapazes do Norte ficou para a história.

Sem o experimentalismo e a fusão de géneros dos Da Weasel, o pop rap dos Black Company, ou as influências afro-reggae de General D, os Mind da Gap foram a primeira banda tradicional de hip hop e provaram-no com este álbum que confirmou o seu estatuto como pioneiros do movimento dentro de fronteiras nacionais.

Inegavelmente um álbum dos 90s, tanto pelas letras como pela produção, Sem Cerimónias é tão importante porque deu a credibilidade ao hip hop português, que o movimento tanto precisava, e ao fazê-lo deu luz verde para quem se quisesse aventurar em território até aí inexplorado.

 



E tendo bem presentes as rivalidades que tanto sangue derramaram no hip hop stateside, foram sensatos em convidar os Da Weasel para o dueto “Nortesul”, numa fase tão incipiente do movimento. Devemos-lhes a eles, porventura, não só uma ausência de beefs Norte-Sul nos anos que se seguiram, bem como uma quantidade profícua de colaborações.

O trio do Porto ainda era novo, mas já vivido, o que se nota em músicas como “Falsos Amigos”, “És Como Um Don” e “O Inimigo Foi Vencido”. Sabiam o que estavam a fazer, e tiveram a história do rap bem presente quando fizeram Sem Cerimónias.

Muitos dos elementos estéticos e fórmulas de Sem Cerimónias serão certamente familiares aos ouvintes de rap – os battle raps, as posse cuts, as vozes neo soul – mas foram eles os primeiros a cimentar essa sonoridade em Portugal, de modo menos adulterado, sem os misturar com outros géneros, como os Da Weasel fizeram.

Sem Cerimónias é um álbum inédito em Portugal, porque denota, melhor do que qualquer outro antes dele, que os três rapazes estudaram e aprenderam bem todas as lições do rap americano, desde as atitudes aos formatos: o swag, traduzido numa confiança abundante nas suas próprias capacidades, o tom agressivo dos vocalistas, o namoro com a soul (em “Dedicatória”), o habitual golpe desferido aos falsos emcees (“Mestres Sem Cerimónias”), a estética sonora, o conteúdo temático, a destreza lírica, o à vontade com a língua.

O que faz de Sem Cerimónias um prazer de ouvir do início ao fim é a forma como todos os seus elementos se integram harmoniosamente, sem por um momento se ver as costuras. Batidas boom bap, loops de piano jazzístico e bonitas cordas de soul, refrães orelhudos e rimas fluidas navegam lado a lado, nunca se obstruindo.

Não é o primeiro álbum de hip hop português, mas foi pioneiro, e distingue-se dos demais pelo seu despojamento, traduzido numa fiel aderência aos princípios fundamentais e coordenadas estéticas do movimento que emulou. Trocando por miúdos, pegou na fórmula americana das rimas e batidas e plantou-a bem firme em território nacional. Não contém o pop rap dos Black Company, as fusões rock e reggae dos Da Weasel, as influências africanas de General D, e o primitivismo dos sons ouvidos em Rapública.

 



Em “O Inimigo Foi Vencido”, Ace aponta o dedo à “mentalidade comercial”, e embora o álbum tenha vendido pouco e não tenha alcançado grande sucesso fora do círculo do hip hop, conseguiu transcender o underground e tornou-se um clássico a posteriori: continua a ser encarado como um dos primeiros álbuns de rap nacional, que ajudaram a pôr o hip hop nortenho no mapa do país, o rap no mapa da música portuguesa e forçou toda a gente a levar este movimento a sério.

E fizeram dos Mind da Gap um dos primeiros grupos bonafide de rap puro em Portugal, e certamente o de maior longevidade.

De certa forma, ouvi-lo é como ouvir um álbum de rap americano falado em português, e talvez seja essa a intenção, o que faz dele uma obra de tão grande qualidade.

Afinal de contas, a intenção do grupo, como Ace confessou num recente post no Facebook, era que o “rap feito neste jardim à beira mar plantado soasse ao que vinha do outro lado do Atlântico”.

É difícil ter uma noção do impacto que o disco teve na altura, tendo um distanciamento temporal e espacial tão grande, mas o seu legado é mais que notório: desde Sem Cerimónias, o hip hop português seguiu em frente e nunca mais olhou para trás: nunca mais voltámos aos tempos do fusionismo dos Da Weasel ou ao crioulo de General D. Bandas e rappers como Dealema, Sam the Kid e Valete nunca tiveram dúvidas sobre que música estavam a fazer.

Sem Cerimónias ficará na história como o álbum feito por três amigos do Porto com amor ao hip hop que decidiram divertir-se, e exprimir o seu amor a um género musical, e no caminho ajudaram a cimentar um movimento. O movimento, e o país, agradecem, e devem-lhes.

 


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