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Publicado a: 28/09/2017

Ace e Presto (Mind Da Gap): “O Sem Cerimónias marcou a geração que está a fazer música agora”

Publicado a: 28/09/2017

[TEXTO] Rui Correia [FOTOS] Pedro Mkk

Avançamos para uma nova etapa da comemoração dos 20 anos do Sem Cerimónias, o álbum de estreia dos Mind da Gap. Entrevistámos todos os membros do grupo portuense: em primeiro lugar, Serial; e em segundo, Ace e Presto.

Nesta segunda e última parte, decidimo-nos por conduzir a entrevista aos dois MCs nos jardins do Palácio de Cristal, local idílico do Porto perfeito para os fazer recordar de forma lúcida as suas memórias iniciais de Mind da Gap.

Nuno Carneiro e Hugo Piteira completam o quadro sobre o legado do Sem Cerimónias, falando sobre as dificuldades de se assumirem como um grupo de rap orgulhosamente do Porto, a bipolaridade da crítica ao álbum entre Portugal e Espanha e o porquê de considerarem que existe um rap pré-Sem Cerimónias e um rap pós-Sem Cerimónias.

 


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Como se deu, no vosso caso, o primeiro contacto com o hip hop?

[Ace] Acho que quase toda a gente da nossa faixa etária tem esta história, que é: o primeiro contacto com a cultura, ainda que nós na altura não tivéssemos consciência disso, foi com o breakdance. Mais tarde, quando se deu finalmente o clique comigo, foi com o primeiro álbum dos Public Enemy, depois a confirmação com o segundo The Fear of a Black Planet e, também, com o primeiro dos De La Soul. Ele [Presto], como é mais fresco [risos], consegue ter uma melhor noção de como chegou aí. Eu tenho feito muitas entrevistas de retrospectiva e sempre que se fala nisto, fico encalhado aqui. Não sei exactamente como cheguei até Public Enemy e aos De La Soul, a verdade é que são os dois nomes que me fizeram apaixonar irremediavelmente pelo rap, apesar de antes, provavelmente, já ter álbuns do Ice-T e gostar muito daquilo, mas depois os Public Enemy abriram uma porta que até então estava fechada, que era a de um conteúdo lírico diferente daquele a que eu estava habituado. Aquilo que chegava cá era muito os primórdios do gangsta Rap – Ice-T, Ice Cube, NWA – , isto pode estar tudo trocado cronologicamente, mas sei pelo menos que o Ice-T já conhecia antes. Com os Public Enemy, abriu-se ali uma porta diferente de uma realidade que eu conhecia do gangsta rap, que apesar de gostar, não é algo com que me relacione muito, pessoalmente. Há sempre aquele sentimento do machismo, do bravado, de ouvir uma música [gangsta rap] e de se sentir super-poderoso, mas depois um gajo sai à rua e se tiver que levar na boca leva. Tipo, não sou blood nem crip, nada dessas cenas [risos].

Há também aquela história das cassetes de vídeo, que antes de nos conhecermos já existiam. Depois passou a ser um hábito nosso…

[Presto] … exactamente. Aliás, conhecemo-nos numa fase posterior aos Public Enemy. No meu caso, também foi pelo breakdance. Mas o meu contexto foi um bocadinho diferente: eu tive o privilégio de crescer numa família muito musical em que vivia com a minha mãe e com os meus tios, e eles tinham uma colecção enorme de discos. Inclusive, muitos discos de música negra. Eu comecei a interessar-me pelo breakdance, já não sei bem como, ou apanhei algo a dar na televisão ou ouvi um disco qualquer lá em casa que me chamou à atenção. Lembro-me sim, de ir ao cinema ver os filmes de breakdance, lembro-me de andar de fato de treino já a dançar – tirar o tapete da sala para poder andar a rodopiar -, os primeiros discos, mesmo meus, lembro-me de ter o Thriller do Michael Jackson e de dançar ao som desse disco. E a partir daí comecei a apanhar alguns discos que existiam lá em casa e comecei a perceber o que é que eram aqueles discos, que antes ouvia como música de fundo e comecei por mim a fazer pesquisas e com isso encontrei discos de rap. Coisas mais antigas, tipo Kool Moe Dee e Roxanne Shanté, que já havia lá em casa e depois passei para os Beastie Boys, os Public Enemy, os Run DMC e o LL Cool J. Entre a fase do breakdance (em 1986) e esta dos Public Enemy, passaram dois ou três anos, penso eu. Acho que quando comecei a dançar breakdance ainda estava no fim da escola primária…

[Ace] … sim, eu estava no 2º ano do ciclo, por isso estavas na primária de certeza.

Em termos musicais: tiveram algum projecto ainda antes de se iniciarem com Mind da Gap?

[Ace] Não. Para mim [Mind da Gap] foi o primeiro. Claro que antes de o grupo existir, já queria ser rapper e fazia umas brincadeiras em casa. Antes de os Mind da Gap existirem, eu e o Presto tínhamos um projecto que era “telefónico”. Era basicamente falarmos só de coisas que andávamos a ouvir…

[Presto] Acho que já tinha desenhado um logótipo, mas ainda não havia música. [risos]

[Ace] … onde é que se podia comprar umas sapatilhas ou onde é que havia bonés [risos], porque na altura se aparecia uma loja que tinha bonés, tipo de equipas americanas, havia romarias para irmos comprá-los à loja. O projecto era mais isso do que outra coisa. Cheguei também a ir a esta casa onde [o Presto] morou com os tios, para ouvirmos uns discos e em teoria tínhamos uma banda, mas só com a chegada do Serial é que de facto se concretizou.

[Presto] Queria só acrescentar que também tive uma espécie de projecto com o Monhé, que mais tarde acabaria por formar os Reunião das Raças e também tive para ser um membro da banda, que existia na altura, mas também não chegou a acontecer nada, só falámos sobre isso. Isto aconteceu tudo muito rápido [a formação dos Mind da Gap]: eu conheci o Ace, depois o Serial e, consequentemente, a primeira coisa que surgiu foram, aliás, os Da Wreckaz, antes de sermos os Mind da Gap.

Depois desta primeira fase em que tomaram conhecimento [do hip hop] através do breakdance, serem MCs foi o vosso primeiro fascínio pelo rap? Ou também tinham um gosto por explorar a produção [de instrumentais]?

[Ace] Acho que nenhum de nós tinha a mínima ideia de como é que aquilo se fazia [sobre a produção].

[Presto] Sim, era um bocado mistério.

[Ace] Mesmo quando os Mind da Gap começaram, não sei como é que nós descobrimos, talvez com a ajuda do Tenreiro. Quando nós tínhamos os Da Wreckaz, que foi o grupo pré-Mind da Gap (já éramos os mesmos três membros), nós não tínhamos equipamento para fazer beats e cantávamos por cima de lados B de singles americanos. E, chegamos a dar concertos com esse nome e foi a nossa forma de conseguir angariar fundos para comprar material. Mas quer dizer quando eu ouvia Run-DMC ou Ice Cube, não fazia ideia de como é que aquilo se fazia, à semelhança do que ainda hoje acontece, muita gente deve ouvir músicas de rap e não imagina…embora hoje em dia seja diferente, porque há menos coisas sampladas no rap mais moderno, digamos assim.

 


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Até pelo acesso à informação, de como perceber todo o processo, é mais fácil.

[Ace] Hoje em dia há mais informação. Há é menos música samplada. Portanto, ao mesmo tempo as pessoas só sabem que tradicionalmente uma música de rap é samplada, se forem à procura dessa informação. Mas eu acho que o público generalista, que é o que nós temos mais hoje em dia em termos de quantidade em relação ao rap, não está minimamente interessado em saber como é que “aquele” beat é feito. Aquilo bate-lhe durante aquela semana que está no telemóvel e não passa daí.

[Presto] Tínhamos uns conceitos básicos, sabíamos que tínhamos de ter uma caixa de ritmos, pelo menos. Lembro-me de estar com o meu tio, que na altura fazia parte dos Repórter Estrábico e de ele estar a dar-me umas dicas, do género “tens de arranjar um gravador de pistas, um sampler e uma caixa de ritmos”. Decidimos então, no tempo dos Da Wreckaz, comprar uma caixa de ritmos, tivemos um sampler emprestado que não estava a ser utilizado pelos Repórter Estrábico e no caso do gravador de pistas, penso que foi a Maria Gambina que nos fez um empréstimo…

[Ace] Sim. A Maria Gambina fez-nos um patrocínio para comprá-lo. Aliás o primeiro EP foi feito com este sampler emprestado e as músicas eram montadas num Atari, mas não me perguntes como.

[Presto] O Serial tinha aquele órgão, tipo órgão da igreja [risos] e ele tocava os baixos com os pedais. Eu não queria ser MC na altura, queria ser DJ, mas também não sabia como. Quando conhecemos o Serial, pensámos que ele iria ser o DJ e eu decidi começar a escrever umas rimas.

[Ace] Mas não foi fácil. Há pouco tempo lembrei-me deste pormenor, provavelmente também a falar para uma entrevista destas de retrospectiva, e não foi fácil, porque ao princípio [o Presto] não queria. Tivemos de o convencer. Depois também passamos por uma fase de indecisão, se iríamos escrever em português ou inglês.

Em Da Wreckaz ainda chegaram a escrever em inglês?

[Ace] Acho que sim. Ou então nessa altura fazíamos umas covers…

[Presto] Sim, fazíamos covers.

[Ace] Da Wreckaz era uma banda de covers [risos].

[Presto] Primeira banda de covers de rap.

[Ace] Às tantas. [risos]

A história de te levar a ser MC, foi ao estilo Eazy-E [membro dos N.W.A.], quase por obrigação.

[Presto] Foi. [risos]

[Ace] Pronto, fomos tendo em conjunto algumas caixas de ritmos…

[Presto] Não tinhas uma que era portátil?

[Ace] Sim. Que passou para os Dealema. Ou seja, quando comprávamos o upgrade [da caixa de ritmos], passávamos a anterior para eles.

[Presto] A primeira que comprámos, que era uma Alesis, depois também passou para Dealema [a caixa de ritmos que se utilizou no primeiro EP de Mind da Gap].

O Serial mencionou gravações ainda do tempo de Da Wreckaz. Acham que seria interessante mostrar isso eventualmente ao público, como uma forma de perceber a vossa evolução desde esse momento pré-Mind da Gap?

[Ace] Não sei se existem. Eu não as tenho. Mas não sei se teria interesse, porque não estávamos a rimar por cima de beats nossos. Lembro-me, por exemplo, que tocávamos por cima de um beat do Erick Sermon ou fazíamos cover dele.

[Presto] Sim. De Brand Nubian também. Não me lembro do resto.

[Ace] Mas estamos a falar de quatro músicas, dávamos portanto concertos de quatro músicas e por sorte podia haver um improviso. [risos] Ou seja, para além das covers, lembro-me que tínhamos para aí duas músicas originais – uma que cantávamos os dois e outra que era só eu.

[Presto] A fase dos Da Wreckaz passou muito rápido. Quando começamos a fazer músicas, a escrever e quando compramos a caixa de ritmos, decidimos logo que já não íamos ser os Da Wreckaz e íamos passar a ser os Mind da Gap, porque ninguém conseguia dizer o nosso nome e na altura até pensamos em ter um nome em português, porque decidimos que íamos começar a rimar em português.

Relativamente à escolha da língua: Passando o vosso primeiro EP [editado em 1995], quando os Mind da Gap fizeram o EP em conjunto com os Blind Zero [Flexogravity (1996)], voltaram a assumir a rima em inglês.

[Ace] Foi mais por uma questão estética. Os Blind Zero sempre cantaram em inglês. Mas há uma música nesse EP cantada por eles em inglês e eu rimo, sozinho nesse caso, em português e não funciona nada bem. Eu não gosto.

[Presto] Mas foi por aí. Eles nunca puseram isso em questão [de cantar em inglês ou em português] e optamos pelo inglês.

[Ace] Acabou por ser um desafio para nós.

 


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Ainda antes de entrarem na NorteSul, alguma vez vos passou pela cabeça trabalharem e editarem de forma independente?

[Ace] Isso existia no meio punk ou por parte de gajos que já tinham pertencido a editoras, que tinham sido grandes e que podiam, portanto, dar esse passo. E não estou a falar de Portugal sequer. Em Portugal só mesmo bandas punk, acho eu. Para nós era a cena [ter editora], todos os artistas [americanos] de que gostávamos tinham editora. Nunca nos passou pela cabeça isso. Nós queríamos era ir para estúdio e queríamos gravar aquilo direito.

[Presto] Queríamos ter um disco.

[Ace] Sabíamos que para isso tínhamos de ter uma editora.

[Presto] Como o nosso contacto com a NorteSul foi através do Pedro Tenreiro, que era uma pessoa que nós conhecíamos, foi logo uma coisa já um pouco familiar, portanto nem sequer pensamos nisso.

Passando ao período do Sem Cerimónias: como funcionou o vosso processo de criação? Sendo mais específico, recebiam primeiro os beats para rimarem sobre eles?

[Ace] Eu costumo responder que os beats vêm sempre primeiro, mas acho que não é inteiramente verdade. Acabou por acontecer em todos os álbuns, pelo menos a mim, ter letras que não tinham um beat [associado]. Na maior parte dos casos, já havia um beat. Nessa altura, nós tentávamos trabalhar muito juntos, pá, éramos miúdos, tínhamos uma vida livre de compromissos e passávamos muito tempo juntos em casa do Serial a ouvir música a vê-lo fazer beats e a ter ideias para músicas. Portanto as coisas nessa altura eram um pouco mais a três. Provavelmente, na maior parte das músicas no Sem Cerimónias o beat veio primeiro. Mas nunca houve uma regra nesse aspecto.

[Presto] Havia alguns conceitos que já existiam e eram adaptados aos beats. Mas lembro-me que tínhamos uma cassete com os beats, uma maquete dos beats ou de quase todos, porque há músicas que foram feitas depois. Houve uma primeira maquete trabalhada a partir daqueles beats e depois houve algumas músicas que foram acrescentadas posteriormente, como a “Dedicatória” que foi a penúltima música a ser gravada e a última que foi a “Representin’ Lovely”, uma música que nem era para existir, acho eu.

[Ace] Sim, sim. Até escrevi a letra na hora, isto é, no estúdio.

Deram uma entrevista ao Bruno Martins para o jornal Metro, em promoção do disco A Essência, em 2010, e diziam que voltaram ao processo de ir pelo “primeiro instinto” como havia acontecido no Sem Cerimónias. O que é que isso significava?

[Ace] Não mastigar muito as coisas. Não pensar muito em que como é que [o disco] vai ser recebido, no que o nosso público, ou o novo público vai achar dele, esse tipo de coisas exteriores ao nosso processo criativo. De facto, nessa altura do Sem Cerimónias nós não tínhamos a mínima preocupação com factores externos a nós próprios, se ia bater na rádio. Isso não existia. Ninguém fazia álbuns em ’95 ou em ’97 a pensar se a música ia passar na rádio, porque à excepção do Repto não passava em mais lado nenhum [risos] e a passagem nesse programa estava praticamente garantida pela [pouca] quantidade de coisas que existiam. Portanto, pensar se vai passar na rádio, se o pessoal vai gostar ou não… que pessoal?

Mas isso era também um bocado fruto de ingenuidade? Pelo facto de serem jovens?

[Ace] Sim, sim, claro. Completamente frescos, sem filtros…

[Presto] … cheios de pica. Mas já houve muitas coisas que fizemos [no Sem Cerimónias] em reacção ao feedback, às críticas que tivemos ao primeiro EP, às entrevistas e ao facto de não nos levarem a sério. Queríamos mostrar que éramos uma banda de hip hop do Porto, mas diziam-nos que não o podíamos ser.

[Ace] “Vocês são três brancos do Porto!” [risos]

[Presto] “Não pode ser. Não são genuínos, vocês não vão singrar.”

No meu processo de pesquisa, encontrei uma dissertação que abordava esta questão: “No Porto, o destaque vai para o aparecimento dos Mind Da Gap, “herdeiros de influências diferentes e menos centradas no gueto”. Com o Sem Cerimónias essa foi precisamente uma das finalidades? Provar que também podiam fazer rap a partir de outro contexto?

[Ace] Sim e no Sem Cerimónias há uma coisa que mudou: para já em termos de skill dos rappers, comparando o EP com o Sem Cerimónias, na minha opinião, há um salto gigantesco; depois em termos de produção, igual, porque entre o material que tínhamos quando fizemos o EP e o material que tínhamos quando fizemos o Sem Cerimónias, é passar da banda amadora para teres o material que têm os americanos. Tínhamos a caixa de ritmos que tinham os produtores todos na América, estávamos a gravar num dos melhores estúdios de Portugal (embora tivesse acontecido também no EP, mas de uma forma menos organizada), com um bom engenheiro a assistir o nosso trabalho, depois o disco é misturado pelo Troy Hightower, um gajo top, nesse aspecto, do rap americano. É um abismo gigantesco comparar as condições [do EP para o álbum Sem Cerimónias]. E, tudo isso foi por vontade nossa de nos querermos afirmar. Há pouco ele [o Presto] estava a dizer algo que tem razão: podíamos não estar preocupados com factores externos, mas essa cena da crítica bateu-nos e o Sem Cerimónias acabou por ser mais em termos de atitude uma reacção nossa de querermos precisamente mostrar a essas pessoas todas que estavam erradas. O próprio nome do disco é representativo disso. Foi imbuído num espírito guerreiro que nós “atacámos” o álbum e isso acabou por se notar.

[Presto] O EP foi basicamente editar a maquete que tínhamos, gravar e editar, porque a NorteSul também estava a começar e eles também queriam aproveitar aquele momento de descoberta dos Mind da Gap, aquilo foi tudo muito rápido. Na altura, o Tenreiro disse “gravamos isto como está e sai já assim” e assim foi. O Sem Cerimónias já foi um processo completamente diferente.

 


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Por parte da editora, deram-vos total liberdade criativa no álbum Sem Cerimónias?

[Ace] Sim. Lembro-me só de uma altura estranha na nossa carreira, que já não sei em que disco é que foi, em que a editora resolveu mandar um responsável assistir às nossas sessões e ler as nossas letras, que foi o Rui Miguel [Abreu] que desempenhou esse papel. Mas acho que nós consciente ou inconscientemente, devemos tê-lo feito sentir-se muito desconfortável, porque isso também não aconteceu muitas vezes. Mas lembro-me que na altura a editora devia estar com ideias que era possível controlar ali qualquer coisa, mas rapidamente se aperceberam que não valia a pena tentar controlar a “besta” Mind da Gap. [risos]

[Presto] A editora tinha opinião, sim. Mas nós também decidíamos se ouvíamos ou não. Havia diálogo e tínhamos liberdade.

[Ace] É uma coisa de louvar na NorteSul, porque durante muitos anos eles apostaram em Mind da Gap em força, sem ter grande feedback financeiro.

Repescando o “abismo” que falavas, acerca das condições que separam o EP e o álbum: qual foi a maior aprendizagem que retiram dessa experiência mais “profissional” de estarem num estúdio como o da Valentim de Carvalho?

[Ace] A bem dizer, quando gravámos o EP já tínhamos acesso ao método que depois usamos no [estúdio] Angel II [onde foi gravado o Sem Cerimónias]. Esse estúdio era mais pequenino e localizado numa zona que era tipo um bairro [Rua D. Fuas Roupinho, 50, Lisboa].

[Presto] Mas o processo foi totalmente diferente.

[Ace] Sim, sim. Também já tínhamos o know how do EP, sabíamos as cenas das “picagens”.

[Presto] Nós tínhamos o know how e a NorteSul também, porque quando fomos gravar o EP fomos fazer uma pré-produção, que era refazer as músicas, porque elas tinham sido gravadas anteriormente numa cassete e não podíamos transformar a cassete em CD! Tínhamos de refazer as músicas. E fomos fazê-lo para Lisboa no estúdio do Paulo Abelho [Angel I].

Aconteceram uma série de peripécias: estávamos a gravar as músicas e o disco avariou e perdemos [as músicas] e tivemos de gravar tudo de novo; era suposto gravarmos com o produtor que trabalhava com os Da Weasel, o Amândio?

[Ace] Talvez.

[Presto] Bem, já não me recordo. Mas ele não estava disponível e então nós fomos os três para estúdio, o Serial levava os discos para samplar…

[Ace] … e nós levávamos os cadernos com as rimas [risos]. Lá está, nós não fazíamos ideia de como se fazia um disco.

[Presto] Pronto, foi um processo um pouco confuso, depois da pré-produção. Quando fomos para o Sem Cerimónias já foi no outro estúdio [Angel II] e já íamos mais preparados.

[Ace] Sim, já tínhamos um sampler a sério, já tínhamos a SP-1200, ou seja, não fomos com os discos [para samplar] outra vez. Levamos o Atari, o que permitia passar os ficheiros MIDI em estúdio diretamente para a fita. Todo um processo diferente.

[Presto] O primeiro EP foi uma aventura. O Sem Cerimónias já era a sério.

É neste primeiro álbum que já se sente uma coerência e uma estética, que muitos identificam, dizendo “isto é Mind da Gap”. Sendo específico, isso reflecte-se nas referências culturais que vocês dão, tanto americanas, como portuguesas, e que é algo audível, tanto na utilização do sampling, como nas letras. Outra particularidade, é a quantidade de termos tipicamente portugueses utilizados no Sem Cerimónias e ainda o facto de assumirem o vosso sotaque portuense. O que pretendo saber é: sentem que tornaram o hip hop mais português?

[Ace] É engraçado, porque há tempos, lembro-me de ter esta conversa e até tenho impressão que foi contigo [com o Presto]. Há muita gente que diz isso e o Sem Cerimónias para pessoas com curiosidade musical, que conheçam o meu trabalho ou para pessoas dos vinte e sete para cima, o álbum é considerado um clássico e um marco incontornável, musicalmente [falando]. Já tinham existido outros marcos no rap nacional, mas o Sem Cerimónias representa, e esta é a minha opinião pessoal, a possibilidade de existir um álbum português que tu podes comparar com outra coisa qualquer que viesse dos Estados Unidos. Portanto, é como se tivesse sido o nascimento do hip hop nacional da maneira como foi feito daí para a frente. Existe um rap “antes” e um rap ‘depois’ do Sem Cerimónias. É engraçado, porque nós na altura só queríamos ser tão bons como os gajos que ouvíamos, queríamos igualar em qualidade, queríamos que os nosso flows fossem tão bons como os dos gajos que nós ouvíamos, como por exemplo os dos Boot Camp Clik…

[Presto] … ou os dos Wu-Tang.

[Ace] Acabamos por conseguir, fazendo isso, dar origem ao álbum que para mim é o começar de uma nova era, pós-boom do Rapública, o começar de uma nova forma do rap nacional. Já havia outros discos rap, os Da Weasel já tinham discos… mas em termos de linguagem, tipo, tu és um fã de rap, só ouves rap americano: o “Sem Cerimónias” é o álbum [dessa época] que tu podes pôr no meio dos teus do Nas e de Wu-Tang. Esta é a minha opinião e não é só minha, felizmente. Daí termos ido buscar um engenheiro americano, porque queríamos que o som do disco soasse igual ou parecido, em termos de qualidade, ao que ouvíamos em casa ou no carro. De certa forma, acabamos por dar um carimbo ao rap nacional, a tentar ser, o mais americano possível, à excepção da língua. [risos]

[Presto] Houve ali um ponto em que a nossa realidade encaixou perfeitamente na sonoridade que existia na altura. Apesar de ser um disco, que pode ser ouvido entre os discos de rap americano contemporâneo, de facto, nota-se que aquilo somos nós. Ou seja, não estamos a inventar personagens.

 


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Está presente a vossa identidade.

[Presto] É a nossa identidade, éramos três miúdos do Porto a relatar a sua realidade e aquela sonoridade encaixava perfeitamente e houve ali uma conjugação de coisas que proporcionaram aquele álbum. Nos nossos álbuns posteriores, apesar de sermos sempre nós, os Mind da Gap, já não conseguiram reproduzir aquela sonoridade, até porque já não o queríamos, queríamos fazer coisas diferentes. O que depois também não foi muito bem aceite por muita gente, que nos dizia sempre “pá, e o Sem Cerimónias? Esse é que era, o som que vocês tinham…”, mas nós não queríamos [repeti-lo]. [risos]

Para além de ter sido um marco nacional, há também a ressalvar o “regionalismo” do álbum, isto porque temos no Porto uma identidade muito vincada. Acham que o Sem Cerimónias também influenciou uma forma de fazer rap, particularmente, no Porto? Ou isso da “identidade” do Porto é uma coisa mutável?

[Ace] Eu acho que há uma raiz, que deu uma árvore e essa árvore tem vários ramos, e se quiseres é assim uma árvore estranha que tem mais do que um fruto. Mas eu acho que se percebe a raiz e se tiveres em conta que os Mind da Gap, de certa forma apadrinharam os Dealema e acompanhei muito de perto, eu particularmente, até por uma questão de proximidade, porque morava separado por uma rua do 2º Piso [estúdio do Mundo Segundo], acompanhei muito o princípio dos Dealema. E, se depois tiveres em conta que o 2º Piso acabou por ser ali um ponto de encontro de muita gente que ainda hoje faz rap, lembro-me de estar na minha rua e ver malta, que faz rap hoje, a ir ao 2º Piso [gravar], como o Keso [risos]. Miúdos que hoje em dia, já não são tão miúdos, mas que também passaram pelo 2º Piso e só por isso, há aqui toda uma continuidade, e que não foi propositada. Repara, não estou aqui a tentar dizer “se não fossemos nós…”.

Eu acho que há uma forma de escrever… já que falei no Keso, por exemplo, o Keso é alguém que tem um estilo que não tem muito a ver com grande parte do que os Mind da Gap fizeram, ainda assim, eu acho que há uma espécie de gene, que passa até na própria atitude das pessoas, da grande parte dos rappers daqui do Porto. Mas não acho que foi só o Sem Cerimónias, claro que esse álbum foi o princípio, mas conto também com o resto do trabalho que fomos desenvolvendo. No Sem Cerimónias não há muito de uma marca, que eu acho que é o traço que nos distingue da maior parte dos outros rappers nacionais, que são os temas. Acho que existe uma busca por uma temática, que apesar de ser mais centrada no ego, por ser muito na primeira pessoa, acaba por ser uma coisa muito mais profunda e com muito mais conteúdo do que estar só a relatar factos da realidade, banalidades ou até políticas. Acho que aqui, acabamos por abrir portas a que os MCs tivessem mais coragem para se mostrarem a eles próprios. E, quando digo “Eu” falo de uma coisa mais interior, emocional, espiritual, se quiseres, às vezes a roçar o esotérico. E isso é uma marca que acho que começou por ser dos Mind da Gap. Acho que é o traço genético mais forte no rap do Porto em relação aos outros: é haver muito a cena do ‘Eu’, mas não é um ‘Eu’ banal, é uma coisa mais profunda…

…sem ser moralista.

[Ace] Exatamente. Para mim, esse é o traço mais importante dos que nos distingue da maior parte dos outros MCs, se quisermos regionalizar a coisa. Não tem também só a ver com Mind da Gap, tem a ver com a cidade, ou as cidades, que são as mesmas que nos moldaram a nós, são as mesmas que nos fizeram ter aquela atitude e escrever da maneira como escrevemos. No fundo, o Sem Cerimónias, sendo o disco de que estamos falar, foi moldado pelas mesmas coisas que outros rappers são moldados a escrever as suas letras e acho isso interessante.

A propósito do marco nacional, lembrei-me, entretanto, de uma coisa: o Sem Cerimónias foi editado em Espanha também. Passado para aí um ano depois de ter saído em Portugal. Tinha outra capa.

Foi a NorteSul a editar em Espanha?

[Ace] Não, não. Era uma editora espanhola…

[Ace e Presto] …chamada Boa.

[Ace] Que acabou por não ser muito boa porque foi à falência. [risos] Eles estavam a editar muita coisa…

…mais alguma coisa portuguesa?

[Ace] Não. Tudo espanhol, nós éramos a única banda portuguesa. Pá, e já ouvi da boca de gajos como o Nach, que há em Espanha também um rap pré-Sem Cerimónias e outro pós-Sem Cerimónias. Mas acabámos por não ter muito feedback disso, éramos para ir tocar a Espanha, mas nunca fomos. Fomos uma vez a Vigo, mas acho que nem teve nada a ver com o disco ser editado lá.

[Presto] Nós estávamos numa fase em que ou estávamos entre agentes ou estávamos a trabalhar com a Hushed Market, que era uma agência muito pequena e não conseguimos arranjar concertos em Espanha. Mas fomos muito bem-recebidos pela imprensa espanhola, as críticas foram extremamente positivas, o que para nós foi uma coisa muito estranha, porque só estávamos habituados a levar na cabeça em Portugal. Os espanhóis adoraram o disco e diziam “como é que é possível em Portugal haver bandas assim e discos destes” e nós cá, eram coisas ridículas “a banda de rap do Porto, não pode existir…os esquemas rimáticos não estão correctos”. [risos]

[Ace] Só o facto de termos tido acesso às críticas espanholas [positivas], valeu a pena. Não quero que julgues que isto é exagero, mas nós tivemos críticas, para além daquelas que o Presto mencionou, do tipo “os Mind da Gap estão no top 5 dos melhores grupos europeus de rap”, ou seja, de repente somos os maiores, ao contrário do que era dito nas críticas portuguesas. Na altura, a realidade era completamente diferente da que existe hoje, não havia Internet, não havia a tecnologia que há hoje, os críticos eram dois ou três gajos em Portugal e ainda havia aquela coisa de as pessoas lerem as críticas e muitas seguirem aquilo. Nós trabalhámos em lojas de discos e as pessoas vinham comprar discos com o jornal.

[Presto] Não havia imprensa especializada em rap.

[Ace] Se calhar, hoje em dia há pessoas que desempenham esse papel, mas são os mesmos que há não sei quantos anos não eram especialistas, mas entretanto tiraram o curso de rap algures. [risos]

[Presto] E o contexto em ’97 e ’98 para nós ainda significava muitos poucos concertos e para muito pouca gente, ainda não sentíamos que estávamos a ser ouvidos.

 


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Sentiam que ainda não tinham conseguido dar o salto.

[Ace] Sim. Vendíamos muito pouco discos.

[Presto] Por isso sentíamos que continuávamos a fazer música para nós. Quando lemos aquelas críticas vindas de Espanha, ficamos mesmo “Hey!”. [risos]

Já que falaram nesta edição espanhola: depois no álbum “A Verdade”, por exemplo, têm participações de rappers espanhóis…

[Ace] Sim, foi por causa do Sem Cerimónias que acabámos por ter uma ligação com La Familia.

Passando agora às participações que têm no Sem Cerimónias: tanto na introdução do disco como na última faixa, existem momentos em inglês, ou seja, abre-se o disco em inglês e fecha-se o disco em inglês. Na primeira faixa há o Ithaka a fazer uma espécie de descrição filosófica sobre o significado de Mind da Gap. Como é que surgiu essa ligação ao Ithaka?

[Ace] Ele editava pela NorteSul também. Achamos que ele tinha uma voz fixe para desempenhar isso, não tínhamos qualquer stress que fosse feito em inglês, porque era uma intro do álbum. Não sei se eu já tinha participado no álbum dele [Stellafly (1997)], se foi antes ou depois disso… lembrei-me que ele foi uma vez ter connosco ao [estúdio] Namouche, quando estávamos a gravar o EP com os Blind Zero. Ele teve lá um dia.

Pá, sobre o fim [última faixa do disco], eu há pouco falei que escrevi a música no estúdio, penso que foi o caso. Foi muito por culpa do Troy [Hightower] de nos estar ali sempre a dizer “vá, façam uma música em inglês!” e nós naquela, “este gajo está a pedir-nos para fazer uma música em inglês, às tantas, sei lá, o gajo até leva a música para lá [para os EUA]!…”. Aliás o Troy faz vozes no refrão dessa faixa. Aquilo acabou por acontecer de uma forma natural.

[Presto] Foi um dueto com o Troy Hightower. [risos] Mas ele também queria sempre vender-nos os beats dele, estava sempre a tentar.

[Ace] Nunca estavam à altura do que a gente queria. Mas pronto, o Troy esteve lá [em estúdio] só para misturar, todo o trabalho anterior à mistura foi feito connosco e o engenheiro de som do estúdio [Luís Caldeira].

Agora direccionado a ti, Ace: naturalmente, o produtor do grupo é o Serial, mas na faixa “Intro” do disco, és excepcionalmente creditado por essa produção [Ace utiliza um sample de Isaac Hayes do tema “(If Loving You Is Wrong) I Don’t Want to Be Right”]. Foi por altura desse álbum que começaste a explorar [a produção]?

[Ace] Eu nessa altura ainda não tinha equipamento nenhum para produzir, mas a minha produção, digamos assim, era muito assim nessa onda de arranjar samples e de fazer loops só, num programa de edição. Eu tinha arranjado esse sample e andava a chatear-lhes a cabeça para utilizá-lo, porque achava aquilo mesmo fixe para a introdução. Aliás, esse beat, que não é bem um beat, é apenas um loop do sample, tem uma curiosidade, porque foi gravado ao vivo, diretamente para a fita, ou seja, foi sem recurso ao computador. A vontade de fazer beats já era anterior a isso, mas não tinha equipamento para o fazer. Só bastante mais tarde é que investi nisso.

Indo para outras duas participações, as do Mundo e do Fuse [ambos membros de Dealema]: a primeira maquete deles [Expresso do Submundo] surge no ano anterior, em 1996, que contava com uma participação tua [Ace] no final dessa maquete…

[Ace] …e a capa do Expresso do Submundo é minha. Eu nessa altura desempenhava um papel assim de “manager não assumido” dos Dealema, não havia nada assinado, não havia nenhum contrato.

 


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Quando é que surgiu a relação com Dealema?

[Ace] Foi como te disse, o 2º Piso era próximo de minha casa, onde eu vivia com os meus pais. Eu na altura tagava muito e a certa altura por baixo dos meus tags começaram a surgir outros. E, em Gaia, acho que foi assim, num local em que o pessoal parava para andar de skate – eu não porque nunca andei de skate, mas parava nesses sítios também – , alguém veio falar comigo, o Mundo ou o DJ Guze – os dois eram os Factor X, ainda não existiam os Dealema – e disse-me “pá, aqueles tags que aparecem por baixo dos teus, somos nós! Tens de aparecer no 2º Piso!” Foi assim que comecei a ir lá e comecei a dar-lhes esse “apoio” e a dar um pouco a minha visão da coisa, que já era mais avançada em relação à deles, também com aquela história de lhes passarmos as caixas de ritmos de Mind da Gap e depois mesmo na junção de Factor X com os Fullashit (Fuse e Expeão) acompanhei muito esse processo que os juntou – mais o Maze – e que deu origem a Dealema. Acompanhei-os muito no princípio, portanto tinha uma noção bastante real das capacidades deles e depois comecei a apresentá-los aos Mind da Gap e a dizer que era fixe nós até para termos mais força no Porto, não estarmos sozinhos a batalhar contra toda a gente. Fazia sentido termos alguém que viesse reforçar a ideia.

Havia também a vontade de se criar um movimento, um maior núcleo no Porto.

[Ace] Sim, sim.

[Presto] Aliás, houve uma fase que eles até nos acompanhavam nos concertos, principalmente o Mundo e o Fuse…

[Ace] … ou o Mundo e o Maze.

Num aparte, achas que com esse apoio dado a partir também do Sem Cerimónias, de os colocarem a gravar em estúdio convosco, foi o que os levou eventualmente, a assinar pela NorteSul?

[Ace] Sim, claro. Era também a nossa intenção.

… tão cedo não editaram pela NorteSul [só em 2003 foi lançado o álbum de estreia].

[Ace] Verdade, mas já estavam assinados pela editora. Pouco tempo depois de terem entrado no Sem Cerimónias, começou a existir interesse da NorteSul [em Dealema], representada sempre na pessoa do Pedro Tenreiro [A&R da NorteSul no Porto].

Sempre tivemos essa filosofia: dentro do que nos fosse possível, podermos ajudar quem estivesse próximo de nós, merecendo essa oportunidade de chegar a outro patamar que era mais difícil.

Outra participação no álbum é a dos Da Weasel no tema “NorteSul”. Uma música sui generis e ainda por cima eles também faziam ponte convosco na editora…

[Ace] Não é verdade. Eles eram editados pela EMI…

Faz-se uma breve interrupção para voltar a gravar um plano de vídeo.

[Ace] Agora mesmo, deste a primeira calinada! [risos]

 


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Primeira e a contar! [risos]

[Ace] Pronto, os Da Weasel eram da EMI e apesar de em muitos discos vir lá EMI/Valentim de Carvalho, há uma distinção, porque são duas editoras diferentes. O que se passa é que a EMI era a distribuidora dos discos da Valentim de Carvalho. Claro que essa ligação facilitou o contacto, porque as editoras eram “colegas”.

Continuando a questão: a faixa “NorteSul” é objectiva na temática sobre a rivalidade entre Norte e Sul, o que permitiu nas letras, imensas referências culturais à volta disso. Ao juntarem Da Weasel ao leque de participantes, a finalidade era mostrarem que existia, na realidade, união entre Norte e Sul?

[Ace] Sim. Nós como grupo do Porto sofrendo da macrocefalia… com exceção para as francesinhas e as tripas [risos de todos] …estava a pensar em coisas que são especiais do Porto! Sendo nós um grupo do Porto que sempre sofreu disso, quisemos dar o outro lado da moeda, tipo, nós sofremos com este problema, mas não temos stress nenhum com isto e os Da Weasel foram convidados nesse sentido, sim. Também, porque, gostávamos muito da escrita do Pacman e na altura, isto é engraçado, no outro dia estava a falar com o Virgul sobre este detalhe: foi com essa faixa [“NorteSul”], a primeira vez que o Virgul entrou num estúdio para gravar uma música. Ele ainda não tinha gravado nada para Da Weasel, porque tinha entrado para a banda há pouquíssimo tempo. Ou seja, inicialmente, o convite foi feito ao Pacman e, entretanto, estendido ao Virgul. Na altura ele [o Pacman] trouxe-o para gravar, apresentando-o como novo membro dos Da Weasel.

[Presto] O facto de sermos orgulhosamente portuenses, na altura criou uma série de mal-entendidos. Na imprensa, por exemplo, porque nos perguntavam sempre “então, vocês são do Porto…” e começava sempre por aqui. Batendo na mesma tecla, de que não era suposto existir rap no Porto e nós dizíamos “Pois não. Somos do Porto e temos orgulho nisso”. Havia muita gente que entendia que nós estávamos a criar uma guerra contra Lisboa. O que não era verdade. Aliás, quando tínhamos contacto com outros rappers de Lisboa, quando começávamos a conversar, as coisas ficavam logo bem e percebia-se que não havia stresses nem beefs, mas nós queríamos mostrar isso [nas músicas]. Naturalmente, o tema “NorteSul” é para mostrar a união no hip hop de Norte a Sul. Acho que também teve a ver com o primeiro disco mais falado de rap português, ter sido o Rapública, e essa compilação só tinha bandas da zona de Lisboa e quando surgimos nós, começamos logo a ser comparados com o Rapública e comentavam “porque é que não estávamos presentes”. E nós queríamos desmistificar um bocado estas situações todas e mostrar que para nós estava tudo bem.

Pensando ainda em Da Weasel: eles tinham um processo de gravação diferente do vosso, porque eles gravavam com banda. Sempre foi, no vosso caso, uma escolha consciente fazerem as coisas sem banda num processo habitual de rap?

[Ace] Sim. Fazíamos questão disso. Essa era uma das coisas com que a editora às vezes se lembrava de nos pressionar. Mas nós sempre fomos agarrados à ideia de como o rap devia ser. Mesmo ao vivo, foram precisos dezassete ou dezoito anos para alguém nos conseguir convencer a pôr dois instrumentos na banda! Mas pronto, também já estávamos velhos e cansados, foi fácil convencerem-nos.

[Presto] Foi uma altura em que queríamos renovar os nossos concertos.

[Ace] Em termos de compormos, sim, sempre fizemos “bandeira” disso [não termos banda].

[Presto] A ideia formada era que nós, rappers, não éramos uma banda e não éramos músicos. E, nós queríamos provar exactamente o contrário e nós tínhamos esse problema precisamente, nos primeiros concertos ao vivo que demos. Éramos sempre olhados de lado pelos promotores e pela malta do circuito dos concertos ao vivo. Queríamos provar exactamente o contrário, que íamos conseguir no nosso formato, colocar o público a curtir. Nós sabíamos que íamos passar a nossa mensagem.

Acham que conseguiram, no tempo do Sem Cerimónias, quebrar esse tabu?

[Presto] Não. Só mais tarde.

[Ace] Isto porque nessa altura demos poucos concertos.

[Presto] Só no disco A Verdade é que andámos a tocar mais. Diria que a primeira vez que tivemos algum sucesso comercial, e que chegámos a um público mais alargado, foi com o tema “Todos Gordos” [single do álbum A Verdade]. Até aí, as coisas aconteciam num nicho, tipo, de 50 pessoas que estavam ali presentes mesmo a curtir.

Hardcore fans.

[Ace] Sim, que eram basicamente todos os nossos amigos. [risos ]

Para fechar as questões das participações: falta-me falar na Carla Moreira. É um caso curioso, porque é uma artista, diria, algo fugida, ficou principalmente conhecida pela participação que fez no tema “Dedicatória” e, em geral, nunca se ouviu falar muito nela. Como chegaram até à Carla?

[Presto] Não foi o Darin Pappas [Ithaka] que passou o contacto dela?

[Ace] Tenho ideia que foi o Rui Miguel [Abreu]…ela já tinha feito back vocals em Cool Hipnoise, creio. Bem, nós precisávamos daquele refrão e já estávamos em estúdio, essa foi uma das últimas músicas que nós fizemos, como disse o Presto, ou seja, provavelmente, fomos para estúdio sem grande ideia [desse tema]. Lembro-me de estar a fazer uma viagem e ir com os Dealema num comboio para Lisboa [em ida para o estúdio] e lembro-me de ir a escrever a letra do “Dedicatória” e também de mostrar a letra ao Mundo e ele estar a passar-se “Hey! Que cena que tu sacaste!”, porque eu gosto de automóveis e arranjei ali uma maneira engraçada de relacionar o Hip-Hop com o mundo automóvel.

A Carla, surgiu, de um desses contactos que mencionamos e tenho ideia que ela nunca fez nada em nome próprio. A última vez que tivemos com ela, desempenhava back vocals para os Anjos ao vivo. Não quero ser injusto com ela, porque talvez ela tenha para aí um monte de disco e a gente não sabe, mas acho que a carreira dela se pautou pelo desempenho de funções de coro. É possível que ela tenha entrado também num álbum do Boss AC [no tema “Boa Vibe”].

Passando a alguns pensamentos pós-Sem Cerimónias: há várias pessoas a referenciar o disco como o seu “motor de arranque”, o disco que os levou a conhecer o hip hop. Também falei isto com o Serial e posso dar alguns exemplos de pessoas que o mencionam: o Mike El Nite, o Reflect, o Deau, entre outros. No outro dia, fiz um post pessoal no meu perfil de Facebook [com uma foto tirada no mesmo local em que foi feita a foto de capa do disco], numa de incitar reacções, e foi curioso, porque surgiram comentários do DJ D-One (DJ/Produtor do Deau e da Capicua), do Tiago Lessa (da Monster Jinx), do Fidbek (que chegou a ser também membro do grupo Matozoo), etc… Alguma vez imaginaram que o disco poderia ter esta importância para tanta gente?

[Ace] Imaginar isso na altura, não. Mas para te ser muito honesto, nós quando fizemos o álbum tínhamos consciência que fizemos algo que era completamente diferente de tudo aquilo que existia até então no rap nacional e que tínhamos conseguido o objectivo ao qual nos propusemos, que foi fazer um disco muito aproximado daquilo que ouvíamos em casa e que era 99,999% de rap americano.

Para além desses nomes que tu citaste, há outros nomes que nos dirigem palavras de carinho e que por um ou outro motivo me tocam mais, pessoalmente, pessoas como o Sam The Kid. No fundo, é a confirmação da nossa própria impressão quando acabamos de fazer o disco.

Lembrei-me de mais uma outra demonstração de carinho pelo Sem Cerimónias: os Orelha Negra costumam incluir nos sets deles a cover ao tema “Falsos Amigos”…

[Ace] Depende dos concertos, porque também fazem do tema “Todos Gordos”.

…julgo que só apanhei a “Falsos Amigos” nos concertos que vi. Claramente, a reacção do público em geral é efusiva. Passaram-se 20 anos até agora: continuam a receber amostras de afecto pelo disco? Querem dar algum exemplo?

[Presto] Confesso que, um pouco contrário à pergunta, houve durante uns anos, uma época em que as pessoas falavam-nos no Sem Cerimónias e nós ficávamos irritados. Já não podíamos ouvir falar no álbum [risos]. Por altura dos lançamentos d’A Verdade e do Suspeitos do Costume.

É compreensível nessa fase.

[Ace] Queríamos era andar para a frente, não para trás.

[Presto] Demoraram alguns anos até ficarmos em paz com o Sem Cerimónias e também para nós próprios, a ideia assentar, de que realmente, o álbum tinha sido um marco. Até lá, andamos a fazer coisas novas e não pensávamos no álbum e na ideia de repetir o que tinha sido feito. Agora já estamos em paz.

[Ace] Depois do “Suspeitos do Costume” foi mais flagrante por causa do “Bazamos ou Ficamos”, levávamos muito [por parte do público] com “vocês no Sem Cerimónias é que eram fixes…”

[Presto] “…porque eram underground, não eram comerciais.”

[Ace] Nós na altura também não percebíamos muito isso, mas nós próprios tínhamos essa atitude perante grupos de que gostávamos. Agora somos mais maduros e olhamos para trás e percebemos que faz parte: quando uma coisa está a começar, há o nicho do grupo, o pessoal do underground, que tem um sentimento de pertença. É quase como ouvirem num disco o seu melhor amigo. E, depois quando aquele melhor amigo, começa a ser amigo de muita gente, já ficas tipo “eu gostava mais, quando eles eram só meus amigos”. Nós tivemos isso em relação a muita gente de que gostávamos, como com os Cypress Hill, que quando explodiram, por causa da cena da marijuana, começamos a ver pessoal a andar na rua com cabelo comprido e t-shirts da banda e toda a gente que fumava [marijuana] adorava os Cypress Hill, rappers e não-rappers, e nós já não olhávamos para eles da mesma forma. Portanto, entendo as pessoas que também nos apontavam o dedo. Mas o tempo acaba por suavizar as coisas e também penso que essas mesmas pessoas, olham para o que fizemos no período pós-Sem Cerimónias de outra forma.

 


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Repescando de novo a pergunta, há algum exemplo recente de uma mensagem especial que queiram revelar?

[Ace] Não sei qual é a experiência do Presto, imagino que será melhor do que a minha, porque não é ermita como eu. Mas acho que essas demonstrações [de carinho] hoje em dia são mais relegadas para o Facebook. Mas eu não ouço esse tipo de elogios, muito menos ao Sem Cerimónias até porque este novo público já não sabe o que é o Sem Cerimónias. Se fores a uma festa de rap no Hard Club, dependendo de quem está lá a tocar, o DJ pode passar a “Todos Gordos” e ter um público que conhece o tema ou não. Eu já presenciei isso ao acompanhar o DJ Slimcutz, fiz hosting para ele, ainda o faço de vez em quando, e era fácil perceber isso. [O Slimcutz] até a esticar a corda, ao colocar o último tema que bateu dos Mind da Gap, o das “borboletas” [tema “És Onde Quero Estar” (com Sam The Kid)], há um público generalista que nem essa conhecia. Portanto, essas demonstrações de afecto relegam-se todas para um post qualquer feito no Facebook que aparece de vez em quando. Mas claro que no passado tivemos muitas declarações, muitas mesmo, de pessoas que passaram uma fase difícil na vida e que esta ou aquela música [do Sem Cerimónias] as ajudaram a enfrentar a vida. Houve muitas pessoas que tatuaram letras nossas.

Sentem que o Sem Cerimónias é um álbum que superou a prova do tempo?

[Presto] Sim.

[Ace] Sim, e é engraçado porque recebo muitas mensagens de malta a pedir-me o Sem Cerimónias. Este novo público não faz ideia de como se faziam as coisas na altura, que havia lojas que vendiam discos e que os discos são das editoras e não dos músicos. O normal hoje em dia é os músicos serem independentes e andarem a vender os discos à mão. Eu lancei [a solo] o álbum Marlon Brando recentemente, e muita gente pede-me esse disco, o Sem Cerimónias ou A Verdade. Tive de explicar que esses discos não existem e que estão esgotados.

Há alguma hipótese discutida para uma reedição?

[Presto] Falámos nisso muitas vezes.

[Ace] Não depende de nós, depende da editora.

[Presto] Os discos são da NorteSul e da Valentim [de Carvalho]. Conseguimos finalmente que os discos fossem para o Spotify, para as plataformas online, e isso só começou a ser feito há cerca de um ano.

O Sem Cerimónias marcou a geração que está a fazer música agora, mas a geração que vem a seguir já não tem grande consciência do que foi esse álbum. Podem conhecer os Mind da Gap, mas se calhar nem conhecem o Sem Cerimónias. Sinto, infelizmente, que o nosso catálogo ficou um bocado esquecido, porque demorou-se muito a colocar aquilo online e já não há discos à venda. Até serem colocados os álbuns nessas plataformas, o que acontecia, era as pessoas passarem a mensagem umas às outras e iam ao YouTube buscar, mas oficialmente não havia nada disponível. Foi mau para nós.

[Ace] Perdemos o barco.

Ainda assim, faz sentido para vocês avançar para a reedição?

[Ace] Sim e não.

[Presto] Na realidade, o pessoal já não quer comprar CDs.

[Ace] Nós e a editora não nos podemos basear nas vinte mensagens que recebemos no Facebook a pedir o CD, porque uma editora não vai gastar dinheiro a fazer uma reedição, imagina de mil CDs, para vender vinte. Para isso, honestamente, prefiro que haja vinte pessoas a procurar ad aeternum o Sem Cerimónias e que ele mantenha o estatuto “clássico”. É aquela cena, o pessoal quer, mas não pode [comprar]. [risos]

Na fase posterior ao Sem Cerimónias e pensando na estagnação e as críticas negativas que vos acompanhavam ainda depois desse disco, qual foi a vossa reacção para o disco seguinte [A Verdade (2000)]?

[Ace] Passámos de um disco que se chama Sem Cerimónias para um disco que se chama A Verdade.

Respondem por si.

[Ace] Os títulos dizem tudo. [risos] Na verdade, andámos sempre em luta desde o Sem Cerimónias até ao Suspeitos do Costume. O nosso espírito quando íamos para estúdio era sempre um bocado bélico, como dizia o Presto. De continuarmos a ter que provar e a provar a nós mesmos. Depois, no Suspeitos do Costume, a mudança foi radical, porque lembro-me de estarmos na NorteSul e, ao fim de uma semana de o disco ter saído, ele vendeu mais do que tínhamos vendido até então, do que todos os outros juntos nos anos de existência que tinham. O Suspeitos do Costume vendeu dois mil discos numa semana. Claro, que, entretanto, todos os álbuns venderam-se progressivamente.

[Presto] A atitude manteve-se, pelas razões que já falamos anteriormente.

[Ace] Nós ainda tentámos aprender espanhol para lançarmos discos em Espanha. Eles gostavam tanto de nós. [risos]

[Presto] Para o disco A Verdade, o grande projecto era fazer um álbum duplo. Aliás, houve uma edição limitada, nos primeiros mil discos, creio, que continha o álbum e um EP, com mais seis a oito músicas. No geral, ainda sentíamos que estávamos a desbravar terreno.

Agora tenho uma pergunta para ti, Presto: és o único no grupo que nunca lançou nada a solo. Alguma vez pensaste em editar algo dessa forma? Ou estiveste em vias de o concretizar?

[Presto] Pensar, pensei muitas vezes. Mas nunca estive em vias de editar nada. Primeiro, porque sou um grande preguiçoso; segundo, porque mesmo estando nos Mind da Gap, segui os meus estudos e depois trabalhei sempre, tanto no design, como depois nas bicicletas. Fui tendo sempre actividades paralelas; e terceiro, porque sentia-me bem a fazer, simplesmente, parte da equipa [em Mind da Gap]. Nunca senti que queria ter mais protagonismo além daquele que já tinha no grupo. Depois, na minha cabeça, tive vontade de fazer coisas, tive projectos, cheguei a escrever algumas coisas, mas depois fui sempre encostando. Nunca levei nada adiante.

E se surgisse um convite vindo de alguém?

[Presto] Eu nunca fechei a porta, nem nunca disse que não. Mesmo nesta fase. Mas não tenho nada programado para acontecer. Fico contente porque tenho pessoas que me perguntam de vez em quando e é bom saber.

Nunca teres lançado nada ainda cria mais essa vontade de…

[Presto] … de saber como seria.

Exacto.

[Presto] Ninguém sabe. [risos]

Já no teu caso, Ace, tens vários projectos desenvolvidos a solo, como é o caso do teu álbum Marlon Brando, editado este ano, ou com outros grupos fora do âmbito hip hop, como é o caso dos Cru. Em 20 anos desde o Sem Cerimónias e porque continuas no activo com estas experiências fora de Mind da Gap: de ’97 para 2017, qual é a grande diferença que notas desses tempos para cá?

[Ace] Pá, é mais fácil responder-te ao contrário: não há semelhanças, absolutamente nenhumas. Aliás, há uma semelhança, agora que estou a pensar nisso: a atenção que os Mind da Gap tinham em ’97 é praticamente a mesma que o Ace tem em 2017, ou seja, muito pouca. De resto, é tudo muito diferente. Em ’97, nós lançámos esse álbum e só competíamos com nós próprios até certa altura da nossa carreira. Hoje em dia, há toda uma gente e ainda as mães deles, que também querem ser rappers. E é fácil mesmo para as mães deles serem rappers. É tudo muito diferente, a maneira como se promove, há a cena dos likes e partilhas nas redes sociais… é mais difícil, hoje em dia, para alguém com um produto diferente do que as massas consideram ser o rap, furar. A propósito desta coisa do Porto ser uma cidade muito turística e de haver uma certa camada intelectual no Porto ser contra isso e de se falar muito na gentrificação… pá, eu costumo dizer, como não quero morar na baixa do Porto, nem nunca me passaria pela cabeça ir morar para a Ribeira, a mim afecta-me mais a gentrificação do hip hop, que é ver uma série de artistas, aliás produtos, porque os vejo dessa forma, como produtos musicais que alteram a percepção das pessoas relativamente ao que o rap é. Depois, quando tens pessoas que fazem mesmo rap, essas pessoas têm muita dificuldade de penetrar, porque os ouvidos das pessoas já não querem aquilo, querem é a outra versão “gentrificada” de uma coisa que não é bem carne, nem é bem peixe. Só estou a constatar um facto, não me estou a mostrar contra, nem a favor. Tenho a minha opinião e reservo-a para mim. Como rapper com 24 anos de carreira, que faz música como ocupação profissional, é isto que me apraz dizer: sinto dificuldade em chegar às pessoas. Ao mesmo tempo, eu percebo que uma camada mais jovem de músicos se identifique com a música de tipos na mesma faixa etária. É uma coisa até óbvia.

[Presto] Nós em ’97 não ouvíamos o Grandmaster Flash.

[Ace] Ouvíamos, os nossos conterrâneos, por exemplo, os Wu Tang Clan. Mas não quer dizer que não conhecíamos ou que não respeitávamos. Mas não era algo que estávamos a bombar no carro [o Grandmaster Flash]. Isto é uma realidade que se vive hoje, mas há muitas coisas novas que são excelentes e que eu gosto. Há artistas que eu admiro. Há também artistas que já não sendo tão novos, estão a ter agora mais reconhecimento do que tiveram nos seus passados artísticos e que são vistos quase como novos, casos por exemplo do Keso e do Phoenix [R.D.C].

 


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Um Sem Cerimónias editado em 2017. Em termos do seu conteúdo, qual é que acham que podia ser a reacção ao disco? É um exercício complicado de fazer?

[Ace] Em termos globais, Portugal não mudou muito. Se formos falar das questões mais profundas. Aquele tipo de rap, não ia bater muito hoje em dia. Não era fácil.

[Presto] São épocas diferentes, na altura, a música urbana ou a música negra não era ouvida, praticamente. Não vou dizer que hoje em dia não existe racismo, porque continua a existir, mas na altura, as pessoas diziam-nos “isto do rap é música de pretos”.

Quem pensava assim, por consequência, diria que vocês não podiam fazê-lo.

[Presto] Mesmo, diziam-nos isso mesmo. Pode, infelizmente, ainda haver pessoas que pensam assim, mas regra geral não. Hoje em dia, a maior parte das pessoas ouve música negra e já não se julga a música dessa forma.

Remato agora a minha última questão. Baseando-me numa outra entrevista que vocês deram para a revista Viva Porto, em 2010, diziam que era um sonho um dia actuarem no Estádio do Dragão. Acham um bom cenário para um comeback dos MdG?

[Ace] Como cenário do comeback, sim. Falar nisso, faz-me pensar noutro tipo de coisas, que é: há pouco eu disse que o tempo tem a capacidade de amaciar algumas coisas e eu não quero colocar de parte que um dia os problemas que levaram a que os MdG acabassem deixem de existir. Ao mesmo tempo, tenho consciência que da minha parte vai ser preciso algum tempo para isso acontecer, sendo que nós estamos nos quarentas, esse comeback vai-se fazer no Dragão quando tivermos sessenta anos? Para isso prefiro não fazer comeback nenhum. Isso até pode acontecer, de chegarmos a um ponto de comunicação entre os três em que isso fosse possível. E depois teríamos de analisar até que ponto é que tem interesse os Mind da Gap darem um concerto com cinquenta ou sessenta anos. Eu não vou dar um concerto desses com essa idade. A não ser que um promotor qualquer, tipo o Luís Montez, contactasse os Mind da Gap e dissesse, “olhem, tenho aqui duzentos mil euros, para fazerem um comeback”.

[Presto] Duzentos mil euros para cada um. [risos]

[Ace] Ainda assim esta cena toda dos Mind da Gap [acabar] não foi muito elegante. Não foi o fim que eu desejaria e deduzo que possa falar pelo Presto também. Mas pelo menos ainda há algumas lembranças boas, até de um passado, relativamente recente, de coisas fixes que nos aconteceram de tocarmos em sítios grandes com muita gente, de lançarmos discos, etc.,,

[Preferimos recordar isso] do que andarmos aqui a tentar quase a obrigar as pessoas a gostarem de nós, porque andamos aqui há muitos anos e porque o nosso primeiro álbum é que fez com que toda a gente agora faça rap em Portugal. Aliás, isso não é verdade. Pode ser verdade para uma geração, mas se não existisse o Sem Cerimónias, hoje em dia havia rap na mesma: O Dillaz fazia rap, o Slow J fazia rap, o Keso fazia rap, os Dealema faziam rap, etc… Podia não ser a mesma coisa, mas também houve o Eminem, não foram só os Mind da Gap [risos] Continua a haver Internet, o Travis Scott e o Future, continuavam a andar por aí a fazer música. [risos]

Querem acrescentar algo mais?

[Ace] Na parte escrita, devias acabar esta entrevista com uma coisa que acho muito importante: os Mind da Gap acabaram, mas os Mind da Gap são para sempre. Foreber, assim com”‘b”.

 


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