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Publicado a: 27/09/2017

Serial: “As coisas não duram como duravam antigamente. O Sem Cerimónias durou”

Publicado a: 27/09/2017

[TEXTO] Rui Correia [FOTOS] Pedro Mkk

Avançamos para uma nova etapa da comemoração dos 20 anos do Sem Cerimónias, o álbum de estreia dos Mind da Gap. Entrevistámos todos os membros do grupo portuense: em primeiro lugar, o Serial; e em segundo, o Ace e o Presto.

Procurámos estar à conversa com eles em locais que nos levassem ao ambiente e à época em que o disco foi criado. No primeiro caso, conseguimo-lo ao agendar entrevista com o Serial na zona industrial do Porto, em específico dentro do edifício em que foi tirada a foto de capa. A conversa desenrolou-se num edifício decadente – com resquícios dos anos 80 e 90 – ocupado apenas por músicos (existem escritórios convertidos em salas de ensaio), e, ironicamente, oculto por concessionárias de marcas automóvel luxuosas.

A homenagem ao trio não se poderia fazer sem uma conversa com os próprios. Na impossibilidade de reunirmos os três no mesmo espaço, optámos pela divisão da ordem de trabalhos. Durante a entrevista, Keso interveio e tornou-se parte activa do processo – o rapper e produtor esteve a documentar tudo em vídeo para o Rimas e Batidas.

Sem mais demoras, a conversa com Rolando Sá sobre o começo da ligação com o hip hop, a entrada para a NorteSul e, como não poderia deixar de ser, o legado do Sem Cerimónias:

 


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Como é que conheceste o movimento hip hop?

Antes de tudo, comecei por gostar de música e também gostava de dançar e ir sair à noite – estamos a falar em meados dos anos 80. Foi nessa altura, quando ainda era chavalo e tinha 16 anos, que comecei a gostar mesmo muito de música e até já tinha uma banda antes e tocava baixo. Ouvia música de dança – mais electrónica – e também rock.

Depois tive uma fase que comecei a trabalhar na noite como DJ em duas casas no Porto. Mais tarde, em ’93 fui para Londres e foi lá que comecei mesmo a curtir [hip hop]. Claro que já tinha ouvido antes umas cenas e havia, por exemplo, aquela junção de acid jazz com rap… mas foi em Londres que fui bombardeado com cenas, que cá [em Portugal] nem sabia que existiam, até porque na altura não havia Internet nem nada dessas coisas. Portanto, foi em Londres que percebi, “é mesmo este tipo de som que eu curto e acho que vou ficar por aqui”.

Dentro do movimento hip hop, sentiste logo uma queda para seres DJ e produtor ou estiveste alguma vez envolvido de outra forma?

Eu já estava envolvido na música há algum tempo, já tinha tido bandas e quando era puto aprendi a tocar órgão e já tinha noções de música, sempre adorei. E, por exemplo, o primeiro álbum [de rap] que me bateu mesmo foi o primeiro dos Cypress Hill. Eu ouvia aquela música com os headphones na cabeça e tentava perceber como é que aquilo se fazia.  Depois, comecei a investigar os processos… eu tinha um álbum dos Gang Starr, o Daily Operation, pá, eu passava-me com aquele disco e eu não percebia qual era o processo. Achava que “fogo, esta banda toca mesmo bem”. Era mesmo inocente, nem sabia o que era o sampling naquela altura [risos]. Claro que mais tarde percebi que aquilo era feito numa máquina e percebi o processo.

Não sei se respondi inteiramente à tua questão…

Também estava a tentar compreender se chegaste a fazer outras coisas na cultura [hip hop] quando eras mais novo.

Não. Estamos a falar numa altura em que a cultura era praticamente inexistente. Conhecia três ou quatro pessoas que curtiam hip hop e tinham aquela forma de se vestir típica e que viviam mesmo aquela cena. E, eu sendo motivado pela música e em fazer música, não tinha muito contacto com mais ninguém, nem com as outras vertentes. Elas foram aparecendo quando eu já fazia música e era isso que eu queria fazer. E ser DJ também.

Indo um pouco mais à frente, à formação dos Mind da Gap (inicialmente, conhecidos como Da Wreckaz). Como é que tudo começou?

Como tinha mencionado, tudo começou quando fui viver para Londres. Foi lá que comprei os meus primeiros pratos, a minha primeira mesa de mistura e os meus primeiros discos [de vinil]. Coisas que não apanhavas cá em lado nenhum. Entretanto, eu conhecia a mãe do Hugo [Presto], porque a mãe dele era muito amiga da minha ex-mulher e elas acharam piada, sendo o Hugo mais puto, curtir o mesmo estilo de música que eu curtia, quando não conheciam mais ninguém que curtisse. Elas falaram entre si e decidiram combinar um encontro entre nós. A partir daí, ele veio a minha casa e mais tarde ambos [Presto e Ace]. Eles ficaram passados com a quantidade de música que tinha e que eles não conheciam. Tinha muitos maxis e os lados B continham instrumentais. Lá em casa mostrava-lhes de uma faixa para a outra e eles faziam freestyle. 

Foi algo espontâneo?

Sim. Aconteceu por aquela excitação de sermos putos, de curtirmos aquela música e de sermos poucos [a curtir hip hop]. Estávamos a viver o momento.

Eu já era DJ e tinha trabalhado na noite [do Porto], como tinha dito, e eu queria chegar cá [vindo de Londres] e contribuir de alguma forma para implementar [um movimento]. Eu via que em Londres já existia e ia a clubs de hip hop. Cá não havia nada disso, portanto julgava que havia espaço para isso acontecer. Daí que vim munido de discos a pensar “levo isto para mostrar lá [a novidade] e, mais tarde ou mais cedo, o pessoal vai começar a curtir disto”.

Que material utilizavas na produção de instrumentais na fase inicial de Mind da Gap?

Na altura, o tio do Presto [Zé Ferrão] fazia parte dos Repórter Estrábico e eles eram um grupo de música com quem tínhamos proximidade. Eles já usavam um sampler antigo que era o Ensoniq Mirage, que permitia cerca de 2 segundos de sampling, e que nos foi emprestado. Eu comecei a experimentar e a perceber o que era o sampler, o que era pegares num som, samplar e tocares a cena…

… Para fazer loops…

… não podias sequer. Acho que aquilo tinha sequenciador, mas era uma coisa mesmo rudimentar.

Entretanto, comprámos um Fostex de 4 pistas e aí já deu para fazer umas cenas mais [complexas]. Tínhamos também uma caixa de ritmos Alesis SR16. Mas as coisas começaram a tornar-se mais sérias quando arranjei a SP-1200, que já era uma máquina com historial na cena do rap [risos].

[Pergunta do Keso] Era o sampler que o Muggs usava para produzir nos Cypress Hill?

Sim. Não era só ele, o RZA também, entre outros.

 


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A aquisição da SP-1200 acontece ainda antes do álbum Sem Cerimónias?

Sim, antes. O álbum já é feito com recurso à SP-1200.

Ainda antes disso…

Por exemplo, o nosso primeiro EP [editado em 1995] foi feito de uma forma completamente…

Arcaica?

Não diria arcaica [risos]. O processo foi um pouco, porque eu tinha esse gravador de pistas que te falava [Fostex] e montei as músicas nele. Quando a NorteSul se interessou por nós, já tínhamos uma maquete feita nesse gravador de pistas.

Quando foi para gravar esse disco, eu fui para Lisboa com um caderninho, as cenas apontadas, os samples, a caixa de ritmos e lá [no estúdio], eles tinham o material [necessário] e reconstruiu-se as músicas todas. Fez-se assim a pré-produção do disco.

No Sem Cerimónias já foi diferente. Tinha um Atari [ST] que permitia fazer a sequenciação no Cubase, já com a SP-1200 incluída via MIDI e foi tudo estruturado [previamente].

A vossa primeira maquete foi o tema “Piu Piu Piu”? 

Tínhamos umas maquetes anteriores, do tempo dos Da Wrecka. Esse grupo era um bocado uma brincadeira. Eram tudo ensaios, digamos assim. Eu rodava os lados B dos maxis [singles] americanos e eles rimavam por cima, mas acho que isso nunca chegou a ver sequer a luz do dia, isso era para nós só.

Mas sim, a “Piu Piu Piu” penso que foi a primeira maquete, mesmo.

Na fase inicial, onde é que davam concertos?

Não dávamos muitos concertos nessa altura, mas lembro-me de darmos um concerto no Bacalhau, um concerto no Cais 447, também no Cinema Terço, onde me recordo de estar a ser estreado o filme Malcolm X.

Como surge o interesse da NorteSul?

Nós conhecíamos o Pedro Tenreiro, que era A&R na NorteSul, e com esses argumentos todos de termos na altura uma música [“Piu Piu Piu” em 1994] no 1º lugar do Top do Repto [programa de José Mariño] na Antena3, de estar a acontecer o boom do hip hop português, por exemplo, o aparecimento de Black Company, o lançamento do Rapública. Estava tudo a borbulhar e havia interesse das editoras em ter grupos de rap.

Apresentámos a maquete ao Tenreiro e tanto ele como a editora gostaram.

No primeiro EP ainda se sente uma experimentação, diferentes vibes em termos de instrumentais no sentido de criar uma sonoridade para Mind da Gap. Concordas?

Isso tem a ver com a inocência. As coisas quando são feitas com inocência são um pouco mais autênticas. Quando começas a aprender como trabalhar com maquinaria, começas a complicar. E, quanto mais máquinas tens, mais complicas. Se usares só uma máquina, esta é a minha opinião, podes-te tornar mestre da máquina. Com a possibilidade de teres mais, começas a dispersar a tua atenção e acabas por não ser expert em nenhuma. Ou então és um gajo completamente obcecado e genial.

 


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A limitação também pode ajudar?

A limitação no tempo de sampling, na altura, fazia com que tu tivesses que puxar pela cabeça, para ver como conseguias com tão pouco tempo fazer uma música. No início existia essa limitação, até que comecei a ter um pouco mais de facilidade e são coisas que se notam ao longo do tempo [em Mind da Gap]. O som vai mudando.

Voltando ainda à questão anterior.

Da minha parte [na produção], nunca andei atrás de uma receita. Queria experimentar, fazer cenas novas, nunca encontrei uma cena e disse “vamos por aqui”. Isso é o mais cómodo: arranjares uma receita e ires por ali. E isso também faz perder a piada.

No seguimento disso: fizeram um EP com os Blind Zero [Flexogravity (1996)], algo completamente diferente do que têm na vossa carreira.

Lá está, isso teve a ver com as sonoridades que se ouviam na altura.

Surgiu como uma imposição da editora para fazerem algum tipo de crossover?

Não foi uma imposição da editora. Nós tínhamos, em geral, liberdade para fazer o que queríamos. Naquela altura, nós para fazermos um disco, não o fazíamos em casa, tínhamos de ir para Lisboa, para os estúdios [da Valentim de Carvalho]. Haviam outras bandas que passavam pelo estúdio, como é o caso dos Blind Zero, que é um grupo [de rock] do Porto e porventura a gente começou a falar “podíamos fazer uma cena”. É algo que acontece de forma natural, estávamos todos entusiasmados e ainda por cima o pessoal era do Porto.

A tal inocência de que falavas e de estar em estúdio ser uma novidade.

A inocência é uma coisa do carago. E o erro também. Às vezes do erro saem cenas incríveis. (É só um aparte)

 


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Mas queres dar um exemplo? Algum instrumental que tivesses feito com uma certa intenção e que saiu de outra forma?

Por acaso, não sei. Mas por vezes, na altura do MIDI, aconteciam coisas engraçadas. Existiam conflitos do MIDI, do tipo, estar a disparar um som e noutra ocasião começa a disparar outro e trocava-se tudo, de repente ficava a pensar “O que é isto, meu? Mas é fixe!” [risos].

Indo directamente ao Sem Cerimónias: como foi o teu processo na construção de instrumentais? Fizeste muitos temas naquela altura?

Aquele sampler que já te falei, a SP-1200, aquilo tinha um som que me fascinou muito. Soava mesmo bem. Só a própria experimentação com a SP-1200 foi a base para o Sem Cerimónias. Passava horas à volta daquilo.

Não fiz muitos instrumentais. Eu sempre trabalhei com bases, com loops. Construo normalmente os temas à volta dos loops. Hoje em dia, os produtores vão do início ao fim, progredindo, adicionando coisas. Na altura [do Sem Cerimónias], eu não fazia isso. Fazia um loop que levava para estúdio, gravava o loop das cenas todas a tocarem ao longo de x período de tempo na fita e depois fazia cuts na própria mesa, fazia automatismos para abrir e fechar coisas. Portanto, já não ia para lá com sequências, ia com loops. Só depois de as vozes estarem gravadas é que construía o instrumental à volta disso.

Ou seja, apresentavas inicialmente uma versão mais crua do teu instrumental?

Sim. Depois de ter as vozes é que fazia os arranjos. Por exemplo, podia acontecer ter que voltar atrás ao sampler, se tivesse que recriar alguma parte. No fundo era essa a base [para a construção].

Para o teu processo, o digging era essencial. Onde é que costumavas recorrer à escolha de discos? Tinhas uma preferência estética?

Não. Embora o funk e o soul fossem as cenas principais, eu ouvia de tudo. No Sem Cerimónias tem, por exemplo, muitos samples de música portuguesa.

Tem um sample do Vítor Espadinha [sample do tema “Recordar é Viver” (1978), utilizado na faixa “És Como Um Don”].

Sim, e tem também da Madalena Iglésias, aquela cena do “Sei quem ele é…” [sample do tema “Ele e Ela”, utilizado na faixa “Coalizão – Cavaleiros do Apocalipse” (com Mundo e Fuse)].

Mas como estava a dizer, ouvia de tudo. Coisas antigas que tinha em casa e claro, tinha a sorte de ser amigo do Tenreiro. Ele é alguém que tem uma colecção imensa de discos. Passava em casa dele e era tipo, “deixa-me levar este, este e este”.

No teu caso, não tinhas que recorrer a lojas.

Sim, tinha essa sorte [risos]. Já agora, eu não samplo nada que não tenha pelo menos 20 anos.

 


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Por alguma razão em específico?

Por uma questão moral. É uma forma de dizer que vou buscar músicas que, provavelmente, as pessoas já esqueceram. Estão arrumadas no baú.

Imagino que haja mais músicos com esse cuidado.

[Keso] Eu tenho esse cuidado.

Ainda sobre o processo em estúdio: trabalharam com o Troy Hightower, que vos fez a mistura do disco. Só a mistura, certo?

Sim, só a mistura. Às vezes acontece de… ainda há pouco tempo, estava na noite a curtir e veio um gajo dizer-me assim “não foste tu que fizeste os instrumentais do Sem Cerimónias…” e eu tipo, “pá, desaparece. Não quero falar contigo”. [risos]

Sobre o Troy: como chegaram até ele?

Honestamente, como tínhamos editora com possibilidade de fazer um investimento, até determinado ponto, nós seleccionámos alguns discos dos quais curtíamos o som e íamos vendo [na ficha técnica] quem eram os engenheiros de som e tentávamos contactá-los. No caso do Troy, ele aparecia em vários discos que a gente curtia. É tão simples quanto isso. Claro que naquela altura existia dificuldade em contactá-los, mas lá está, tínhamos uma editora que disponibilizava o telefone de onde podias ligar para a América, em específico para os estúdios, e saber como podias contactar directamente com eles [os engenheiros de som]. Havia vários interessados, porque obviamente eles queriam era fazer dinheiro. Não tem nada de transcendental, é algo completamente normal [risos].

O Troy tem mérito também pela sonoridade que conseguiram criar no álbum?

Claro que sim. Até porque aquela sonoridade, nós nunca mais a conseguimos [ter]. Nem ele a conseguiu. Isto porque o Troy voltou a trabalhar connosco mais tarde no álbum Edição Ilimitada [editado em 2006].

Passaram-se muitos anos.

Sim. Passámos de trabalhar em estúdio com uma mesa de mistura e com um gravador de fita para um trabalho feito dentro de um computador. É diferente. Nem ele conseguiu o mesmo som, o mesmo punch que as músicas tinham [no Sem Cerimónias]. Entre outros factores, obviamente estávamos mais velhos, há muita coisa que muda…

Há muita gente que considera o álbum Sem Cerimónias como uma referência do rap nacional e há casos ainda de quem mencione, que esse disco os introduziu ao movimento hip hop e que foi daí que tudo começou – são casos disso os rappers Mike El Nite, Reflect e Deau, só para dar alguns exemplos. Quero com isto perguntar: sentes que o disco passou o teste do tempo?

Acho que sim. É um clássico. Ninguém nos tira isso.

 


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Sentes a influência da tua produção, especificamente no Sem Cerimónias, em trabalhos que se seguiram?

Não sinto muito isso, mas sinto-o no [Allen] Halloween. Não sei se somos referências para ele, mas tendo em atenção os instrumentais, reconheço ali qualquer coisa que nós podíamos ter feito na altura. Tem a ver com a forma com ele trabalha os samples.

Tem também a ver com uma certa vibe, no caso dele?

Sim. A sonoridade dele é crua. Identifico-me com a “massa sonora” em geral, ouço ali algo que me faz lembrar [o Sem Cerimónias].

Agora numa pergunta mais direccionada a ti: dizias numa entrevista conduzida pelo Francisco Noronha na Rua de Baixo que nunca irias fazer um álbum de instrumentais. É algo que repensarias? Aliás, explico-te porque pergunto isso: considero, por exemplo, o Pete Rock uma referência próxima da tua sonoridade, pensando especificamente no teu processo de produção no Sem Cerimónias. Ele é alguém que já editou vários trabalhos de instrumentais. Por outro lado, julgo que és uma referência para muitos [músicos] a nível nacional e imagino que há a curiosidade também de muitas pessoas em ouvirem um trabalho teu, só de instrumentais.

Há uma coisa que me dá muito gozo e é a coisa que mais me alimenta a minha vontade de fazer música, que é ouvir uma canção a surgir do nada. Só com os instrumentais não sinto isso. Portanto, não me dá aqueles arrepios que eu sinto e é uma coisa que me alimenta. É a droga que eu curto, essa de poder juntar as vozes ao instrumental e chegar a uma certa altura em que estou a fazer um arranjo e estou tipo “isto está a soar mesmo bem! Está aqui uma música mesmo fixe”. É a minha cena. Gosto mesmo de rap, é o meu género e é isso que quero continuar a fazer.

Pá, em termos de música não tenho grande ambições. [A música] é uma coisa mesmo efémera nos dias que correm e cada vez mais será um produto de consumo. Deixou de ser arte, excepto em alguns casos, como aqui o Keso.

Achas que tem havido uma progressão consumista? Ou sentes que é mais uma progressão da observação das coisas à tua volta?

É a minha observação e a pensar que se não for para benefício próprio, teres prazer naquilo que estás a fazer, acho que hoje em dia fazer música é mesmo efémero. Porquê? Porque se fores um gajo dedicado e gostas da música como arte, passas seis meses, um ano, dois anos a fazer um álbum, que depois sai e as pessoas ouvem durante uma semana. Passado uma semana, já há quinhentas mil cenas a inundá-las e [o teu álbum] foi-se. As coisas não duram como duravam antigamente. O Sem Cerimónias durou.

Contrapondo com o que dizes: há sempre obras que conseguem vencer o tempo.

Mas cada vez menos. Por exemplo, gostei muito do [último] álbum do Kendrick Lamar… Atenção não estou com isto a querer acusar ninguém.

É uma evidência.

É tão fácil fazer música hoje em dia. Toda a gente tem computador e faz música em casa. E há tanta música a sair por causa disso que, se tu gostas de música e queres continuar a absorver o que se faz… Dou-te um exemplo: quando comprei todos aqueles discos no passado, eu pensava assim “quando for mais velho, vou poder estar em casa a ouvir e tirar prazer das minhas músicas todas, destes álbuns todos…” Achas que ouço algo do que comprei há muitos anos? Não ouço. Há tanta coisa nova para descobrir que não o faço.

Lá está, também imagino que, para produzires estás sempre à procura de coisas novas. Ou seja, sentes que é uma forma de te estares constantemente a desafiar?

Sempre, sempre. Tem a ver comigo, com a forma como vejo as coisas. Nunca serei o gajo que dirá “naquela altura é que era bom e o que se faz hoje em dia não vale nada”. Não penso assim. E, sobre o que te falei da música ser efémera hoje em dia, eu não estou a odiar quando falo nisso. Pá, as coisas são como são. São reflexo dos dias que correm e se calhar no futuro ainda vai ser pior nesse sentido.

Eu continuo a adorar coisas que saem agora, aliás adoro mais as coisas que saem agora. Mas acho que isso tem a ver com a vontade que um gajo tem de viver. Quando chegares ao ponto de dizeres “na minha altura é que era bom”, então podes começar a preparar o teu funeral, porque já não vais durar muito.

 


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Contas com um trabalho a solo, a compilação Brilhantes Diamantes, editada em 2005, em que contavas com a presença de vários rappers em instrumentais teus. Agora, com uma outra perspectiva e com uma renovação de coisas que tens ouvido nos últimos tempos, achas que faria sentido lançar uma sequência?

Volta e meia penso nisso, mas não é nada que me tire o sono [risos].

Perguntava-te isto pensando naquilo que falamos há pouco: o prazer que tens de trabalhar com as vozes dos rappers sobre os teus instrumentais para criares música.

Basicamente, esse é o grande gozo que um gajo vai tirando de tudo isto: poderes trabalhar com artistas que tu gostas e respeitas, as relações e a proximidade que se criam quando estás a trabalhar com uma pessoa em estúdio é algo muito forte.

Por outro lado, sei que há imensos rappers que te respeitam e sei que adorariam trabalhar contigo. E daí esta menção à compilação…

…mas eu não sou um gajo muito fixe com quem trabalhar, porque só trabalho quando me apetece. E detesto…

[Pergunta do Keso] Tipo, fazer de propósito, não é? [risos]

É.

Aproveitando a dica: gostas de fazer as coisas por um propósito, porque estás a sentir no momento?

Eu curto mesmo fazer arte, curto tentar superar-me, fazer coisas diferentes e não curto fazer porque tenho que fazer ou porque quero ficar conhecido e porque quero vencer. É uma coisa quase espiritual, faço porque tenho de libertar algo que tenho dentro de mim. Não são gases [risos de todos], mas tenho de libertar algo que sinto como uma necessidade.

Neste caso, a música como uma necessidade.

Sim. A música é uma necessidade para mim. Por exemplo, eu agora estou numa fase em que estou a produzir menos e estou a passar mais música, voltei um pouco a ser DJ outra vez [o Serial juntamente com o DJ Score, organizam e passam música no evento Trappin, todas as quintas-feiras, no Cave 45, Porto]. E está a dar-me muito gozo. Enquanto assim for, vou fazendo as duas coisas. Pá, no fundo o que eu quero é divertir-me. [risos]

 


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