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Publicado a: 28/07/2018

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu 

Em Setembro de 2017 dava-se aqui no Rimas e Batidas conta dos rasgados elogios que Pete Swanson tinha tecido a Belzebu, segundo álbum na discografia dos Telectu. O co-criador da importante etiqueta de reedições Freedom to Spend explicava então à Resident Advisor que a música dos Telectu tinha surgido num contexto especial, descrevendo os anos 80 portugueses como tendo decorrido num certo isolamento, com a nossa cena musical de então a não ser pródiga em “risco e recompensa”.

Certeiro na sua abordagem ao álbum, Swanson explicava que Belzebu beneficiava de “uma ambiência perfeita”: “É lúdico, é sinistro. Tem muitos aspectos familiares, mas ainda assim tem uma qualidade alienígena. Soa como os OVNIS. É profundamente estranho, tanto o artwork como a música. Tudo neste disco é super cativante”.

A peça da revista digital britânica com o coleccionador e produtor americano centrava-se em preciosidades da sua colecção de discos e o álbum de 1983 dos Telectu foi mencionado ao lado de trabalhos de Claudio Rocchi, Luis Pérez ou Richard Horowitz. Curiosamente — ou talvez não… — todos mereceram reedição após esta entrevista: o álbum de Horowitz foi relançado pela própria Freedom to Spend de Swanson, o de Rocchi pela italiana Die Schachtel e o de Pérez mereceu inclusão recente no catálogo da londrina Mr. Bongo (demos-lhe atenção aqui). Belzebu junta-se agora a esta feliz lista de reencontros com o presente marcando o nascimento da Holuzam, selo criado pelas atentas e dedicadas cabeças da Flur.

 


Holuzam: “Vamos editar discos excitantes e relevantes para o presente”


“Reeditar os álbuns de Telectu significa trabalhar perto de música importante para nós, no contexto de Portugal, mas também num contexto internacional em que esta música pode existir livremente sem os autocolantes que a definem como “portuguesa”, ou tipicamente de Portugal”, avançou-nos José Moura na peça que dava conta do estabelecimento desta nova plataforma editorial. De facto, e para começar, a reedição de Belzebu por parte da Holuzam — que partilha alguns recursos humanos com a Príncipe — é um primeiro e importante passo na definitiva inscrição dos Telectu na mais vasta história da electrónica aventureira que se fez por esse mundo fora nas décadas de 60, 70 e 80 e que tem sido alvo de uma generosa atenção retrospectiva por parte de uma dedicada rede de micro-editoras que têm cultivado um olhar atento e rigoroso sobre obscuros, mas relevantes capítulos históricos até aqui apenas ao alcance de uma elite internacional de coleccionadores.

E Belzebu é, obviamente, um disco importante.

Trata-se do culminar de um processo de investigação, descoberta e realização de um pensamento musical muito específico de Jorge Lima Barreto. O músico, divulgador e musicólogo (falecido em 2011) começou por se aventurar no lado mais exploratório da electrónica com a Anar Band, avançada proposta musical que firmou com Rui Reininho na década de 70 e cujo homónimo trabalho de estreia, datado de 1977, continua a não reencontrar o caminho do presente (arriscaria dizer que não por muito mais tempo…). Com a entrada de Rui Reininho nos GNR, Barreto envolveu-se no contexto mais pop da banda de Independança e conheceu Vítor Rua. Enquanto os homens de “Avarias” registavam o seu primeiro LP, Barreto e Rua, com ajuda de Toli César Machado (baterista dos GNR), criaram Ctu Telectu, registo inaugural na discografia dos Telectu mas que é, na verdade, um trabalho de transição.

 



Belzebu, lançado originalmente pela Cliché Música em 1983, marcou portanto o início real dos Telectu enquanto ambiciosa célula criativa composta por Lima Barreto e Rua, dois músicos que aí mesmo colocaram de lado os resquícios pop que ainda se sentiam no seu primeiro trabalho e abandonaram a indústria musical convencional abraçando o lado mais independente da edição (Ctu Telectu tinha, tal como os GNR, selo Valentim de Carvalho), opção que os levaria a lançar ao longo dos anos seguintes na sua própria 3 Macacos ou em micro-etiquetas como a Ama Romanta, Área Total, Tragic Figures e Mundo da Canção, entre outras.

Com um passado de clara exploração de uma radical ideia de liberdade ancorada em vincado pensamento político, Lima Barreto fez a edição original de Belzebu acompanhar-se de um manifesto que se reproduz nesta reedição: aí se reclama a condição de “primeira obra de música minimal repetitiva feita em Portugal” e aí também se sublinha a “invenção musicográfica” aqui contida.

De facto, tudo em Belzebu é radical e confrontacional gesto criativo: a sintonização das ideias exploradas por compositores americanos como LaMonte Young, Terry Riley e Steve Reich, a adopção (quase) exclusiva das ferramentas electrónicas — Vítor Rua usava já aqui a icónica Roland G-808, guitarra que era, na verdade, um sintetizador, mas também modelos mais tradicionais da Fender e da Gibson, embora submetidas a denso processamento electrónico; Jorge Lima Barreto, por outro lado, utilizava sobretudo o Juno 6, Yamaha CS-30L e a Drumatix — e a manifesta falta de vontade de qualquer tipo de cedência à “facilidade”.

Sobre o rendilhado electrónico da “trilha de fundo” (agora disponibilizada, na reedição da Holuzam, como um CD extra), a música dos Telectu avança a direito com um rigor programático por terrenos à época pouco cartografados internacionalmente e praticamente inéditos em Portugal. Como Pete Swanson frisava, há de facto uma dimensão ameaçadora e sinistra nesta música, sobretudo na primeira peça, “Rotas”, toda nervo e choque, feita de duas linhas — a cargo de cada um dos criadores — paralelas que parecem nunca se harmonizar e que disputam atenção com alguma ferocidade. “Opera” é mais ambiental, uma espécie de breve raio de luz numa caverna escura, mas “Tenet”, o tema que encerra o Lado A, volta a fazer-se de uma tensão apoiada na repetição das texturas mais graves, espécie de anúncio de algo de sério e eminente.

No Lado B, “Arepo” tem qualquer coisa de exotismo quarto mundista, mas as suas figuras repetitivas e circulares acabam por impor uma aura hipnótica a toda a peça que se espraia pela nossa cabeça revelando micro-pormenores a cada nova volta, tal a densidade de frequências que compõem o seu rendilhado sonoro. “Sator”, a última das faixas, é um prisma de várias faces que sugere que cada uma das linhas poderia ter sustentado uma composição distinta: a insistente figura rítmica de graves contém algo de cinemático e por debaixo da frase electrónica mais proeminente há pormenores que soam a free-jazz tocado por cyborgs. Ou algo que o valha.

Espantoso é o facto de esta música soar totalmente despedida de referências temporais: a profusão de edições electrónicas no presente — de todas as épocas, de todos os continentes, de todas as diferentes correntes estéticas, da new age à música concreta, dos densos drones ambientais às derivas mais kosmische — cria na imaginação um complexo mosaico em que todas as ideias parecem existir num mesmo plano. A dos Telectu foi criada no estúdio Jorsom do maestro Jorge Costa Pinto há 35 anos, mas soa como se pudesse ter sido estreada ontem mesmo na ZdB por um jovem duo equipado com caixas mágicas da ADDAC System. De facto, faz pleno sentido este primeiro capítulo de um necessário programa de recolocação nos escaparates da fundamental obra dos Telectu: porque o tempo desta música foi sempre este, o presente que agora vivemos e o futuro que eles em tempo ousaram projectar. Finalmente encontram-se os dois.

 


 

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