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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/12/2024

Rio Tinto no mapa.

$TAG ONE: a vida de um GAIATO, a cultura guna e um álbum-filme de estreia

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/12/2024

GAIATO é o primeiro álbum de $TAG ONE, nome artístico de Daniel Figueiredo, rapper de Rio Tinto com 31 anos que deu agora o passo mais sério do seu trajecto artístico, após os EPs Hash$tag (2019) e UNGA (2021). 

Recorrendo a instrumentais de diversos produtores, $TAG ONE navega por sonoridades boom bap, trap ou drill, entre outras estéticas musicais, intercaladas por skits, num disco que apostou mais na coesão conceptual do que sonora. Acima de tudo, o que une estes temas é a vida de um GAIATO.

$TAG ONE conta a sua própria história, da malandragem à importância da família, mas acima de tudo representa e celebra a cultura urbana do Grande Porto os “gunas” de famílias pobres e trabalhadoras, o calão regional, a forma de estar e de vestir, o imaginário marginalizado dos arredores e bairros da cidade. 

Embora também seja um produto destas vivências e ambientes, talvez pelo seu olhar cinematográfico o rapper consiga observar com algum distanciamento a sua própria realidade e contexto, que tão bem espelha na sua música e palavras.

Filho de um pai que vende e restaura livros antigos e de uma mãe administrativa numa empresa de contabilidade, Daniel Figueiredo conta nesta entrevista como cresceu numa família humilde, como se tornou a par do seu irmão o único licenciado do seu bairro e a visão que tem para celebrar e imortalizar em disco o estilo de vida GAIATO.

O disco tem uma edição física em CD que vem acompanhado por uma garrafa de vinho. Ao todo, foram produzidas mil garrafas (e CDs), a partir de uma pipa de vinho da Quinta da Bela do Douro, claro está. O próprio $TAG ONE, que trabalha na área do enoturismo e tirou vários cursos sobre o assunto, calcou as uvas, engarrafou o vinho, desenhou a rolha com o logótipo e um brasão que criou para a sua família, lacrou e rotulou cada garrafa.

Cada uma delas tem um QR code que dá acesso à curta-metragem homónima que este licenciado em Cinema fez durante a pandemia em Rio Tinto, inspirado no imaginário de filmes como o lendário La Haine (1995). O mesmo código permite ouvir um projecto de faixas soltas e inéditas gravadas ao longo dos anos, Defeito de Fabrico, que, ao contrário do filme, nunca verão a luz do dia para o público em geral.

“Queria ter uma cena exclusiva. Mas o filme não vai para festivais, porque quero mesmo disponibilizar isto ao povo e os festivais têm sempre aquela coisa de quererem exclusividade”, explica. “O pessoal do gueto não vai aos festivais de cinema. Aqui no Porto há festivais incríveis, como o Porto Post-Doc ou o Fantasporto, só que eles não vão. Por mais que eu diga: ‘Vai ao Rivoli, tu vais aparecer no raio do Rivoli…’ Não aparecem. Já que a arte é feita de graça, o filme há-de estar disponível para toda a gente.” E de repente já estamos em conversa com $TAG ONE.



Qual foi a tua primeira abordagem ao disco? O que é que, inicialmente, querias para o teu primeiro álbum? Foi algo muito pensado desde o início ou foi surgindo tendo em conta as músicas que estavas a fazer?

Os EPs foram mais uma afirmação e um juntar de bangers e singles, porque eu estava preocupado em deixar uma afirmação com algum contexto. O Hash$tag era como se eu estivesse a vender a droga na rua só que neste caso era música e o UNGA tinha como capa uma matrícula. Era uma representação de “andamento”, de “velocidade”, de “gás” e estar “na estrada”. Com o GAIATO não, efectivamente tentei que fosse uma obra de arte no seu todo. Desde começar a pensar numa perspectiva maior, com mais música, mais coisas para dizer e ter a minha primeira obra de arte com mais maturidade no hip hop tuga. Isso era a primeira coisa que eu queria. E é engraçado porque até quase que nasceu quando dei a minha entrevista ao José Mariño. Ele perguntou-me o que é que eu queria para o futuro, e eu disse-lhe: ‘Tocar ao vivo e conseguir fazer um álbum com pés e cabeça,’ que eram os próximos objectivos da minha vida. Foi o primeiro alicerce para eu decidir que queria fazer algo mais sólido.

E o título, quando é que o escolheste?

Era um nome que eu já tinha, já sabia que queria chamar GAIATO ao álbum. Mais uma vez, é uma representação do que fui enquanto miúdo. E começa um bocado pela palavra. O significado literal é “menino de rua”, um “traquina”, um “brincalhão”, quase como se ouve nas anedotas do Joãozinho. O miúdo que está na rua a jogar à bola, às escondidas, se calhar no Halloween vai realmente fazer asneiras se não tiver os doces… E depois também há a vertente da rua. Quando um gajo é atrevido na rua, e há pessoal aí que é mais maradito e são mais rebeldes, o pessoal chama-lhes “gaiato”. Dando um exemplo mais negativo, “esse gajo anteontem fez os carros todos daquela rua” ou seja, roubou os carros todos “é um gaiato do caraças”. Também há esta perspectiva mais atrevida. Há muitos gajos no Porto que têm a alcunha “Gaiato”. Tens gajos conhecidos na Ribeira, no Aleixo ou em Rio Tinto que o pessoal lhes chama “Gaiato” como se fosse o apelido. E todos eles têm estas características. Por exemplo, estou a lembrar-me do da Ribeira, que adorava Moto 4 e estava sempre a sacá-las na Marginal do Porto. O “gaiato” é uma cena associada a quem é guna nesta cidade, é quase um sinónimo. O guna não é só o padrão das roupas, a maneira de falar e de estar, e um “gaiato” é mais atrevido ainda. Quase que leva o selo de “atrevido”. É o gajo que na noite é capaz de se virar a uns seguranças, é capaz de andar a sacar sem capacete pela rua, é capaz de ser mais à margem da lei… É a maneira como na minha cidade também se usa esta palavra. E durante parte da minha vida eu considerei-me um. Hoje em dia já estou a passar isso, a chegar a outras coisas como pessoa, com outra personalidade e filosofia, mas o álbum tinha este ponto de partida, de contar uma história de quem é o GAIATO e o que ele é. Foi por aí que começou tudo: eu dizer quem é o miúdo da rua, no que é que ele se transformou, como é que começa…

E já sabias que querias ter um álbum que abordasse a tua história, as tuas vivências, a tua personalidade… É um disco em que tens temas mais íntimos, em que abordas assuntos sobre os quais não te debruças tanto nos EPs.

Sim, não falei sequer nos EPs disso… Um álbum carrega sempre essa seriedade das temáticas, de storytelling, há quem os utilize para posições políticas, músicas de amor… Como é lógico, o GAIATO também transpira isto que te disse: é um gajo que tem uma fase da vida em que é orgulhoso, arrogante e acha que é invencível. E o $TAG também carrega isso, essa parte egocêntrica. Isto é o rap game e, atrás do microfone, tenho que me sentir e afirmar que sou o melhor, que sou o mais mau, que sou o mais pesado e que tenho orgulho disso, que não tenho medo de ninguém. Mas, sim, também queria abordar esse crescimento, o resultado depois desse “nascer”. E esse resultado teve muita tristeza, muita frieza, porque me tornei uma pessoa mais fria, mas também mais calma e cautelosa. Então, as músicas mais pessoais vieram daí. Na verdade, este gaiato que acha ser invencível não é nada sem alguns alicerces por trás. E uma das figuras que me seguraram muito e que me ajudaram na cena da música, e na minha vida, foi a minha mãe. É a minha heroína.

E fazes-lhe uma grande homenagem no álbum.

É uma página que quero deixar claro já na parte de ficar adulto, de ficar mais velho, de perceber mais coisas importantes consoante a minha experiência. Depois, quis preocupar-me com momentos de crescimento mais egoístas da minha história. Por exemplo, há uma faixa que é a “Turma”, uma cena quase electrónica, que queria transportar mais para este universo, porque quando tinha 14 ou 15 anos… É a representação do início do GAIATO, quando ele está a conhecer o mundo da música… Eu parto do hip hop, já estava a fazer as minhas rimas com o meu pessoal na secundária, na Soares dos Reis, com a minha crew 714, estava lá a fumar uns charutos com os manos e lembro-me de que estava com o Niets, um gajo que fazia graff, e o Roke, que estava a rimar, e adorei aquela merda. Foram as primeiras coisas de ter pessoal à minha volta que também gostava de fazer rimas. Eu já gostava, entre o sétimo e o nono ano já era aquele gaiato de fazer rimas, mas depois conheci mesmo o rap. Mas, nesta altura em que estava a passar para a secundária, ia muito para as zonas industriais do Porto, para as discotecas, e vendia pulseiras. Eu era o Dani da zona industrial e vendia pulseiras para as festas. Estava sempre sentado num murinho com um tropa ou dois a vender pulseiras. E a “Turma” é uma representação do que acontecia numa noite dessas. Fazíamos a guita e depois íamos bater o pé para a discoteca. A “Turma” fala sobre como é que pobres estão a fazer fortuna. Nós não tínhamos nada, íamos de metro à pala até à zona industrial do Porto neste caso, Ramalde e fazíamo-nos ali à vida. E alguns dos meus tropas na altura eram mais atrevidos, mais gaiatos. Eu sempre fui mais o catequista no meio deles, se é que me percebes. Saíamos às seis da manhã das discotecas e havia chatices, coisas com as quais não concordo e que não apoio, mas éramos rebeldes, atrevidos, gaiatos. O álbum preocupa-se com isto, em contar a minha história, mas, e isto também é importante, de uma maneira genérica. Para as pessoas se identificarem, porque sei que vai haver centenas de miúdos e de miúdas, gaiatas que vão pensar “tive exactamente este tipo de andamento” ou “passei esta fase da minha vida”. Estou com a minha turma, a bater o pé na discoteca, se calhar um está a mandar um cheiro, outro a fazer um charuto, outro a vender droga, ou já todo cego, outro está com a dama e está mais bem comportado… É um bocado até tribal, mas foi assim que aconteceu. Por isso, sim, o álbum abraça coisas sobre as quais não falava antes e os skits também foram pensados com um crescer do projecto. Por exemplo, estávamos a falar da minha velhota. O tema “Progenitora” é porque a minha mãe está sempre a falar quando estamos na cozinha a comer.



E gravaste um desses momentos?

Durante a quarentena, punha o meu telemóvel na cozinha, sempre escondido, a filmar a minha família. Para fazer um filme tipo Quarentena. E ainda vou fazer, porque tenho para aí 40 gigas disso, a minha família na quarentena sempre todos juntos. E quis pegar nos momentos em que ela fala principalmente para mim, para o meu irmão e para o meu pai acerca de comida. Queria passar esta coisa de que a minha mãe é que foi a leoa, quem alimentou, que tratou de cozinhar e de nos dar comida e de ter sempre a certeza de que estávamos de barriga cheia, mesmo nós não tendo dinheiro. Porque, sei lá, eu nunca tive uma PlayStation, um PC… Tive uma infância muito bonita, mas foi sempre na rua. E em casa não havia esta noção de brinquedos e de electrónica. Os Gameboys e os jogos que tive, roubei-os. Mas a minha mãe cumpriu sempre o seu papel de “comida não falta na mesa”. Então, cortei os momentos em que ela fala e quis chamar-lhe “Progenitora” mais uma vez, uma coisa muito da natureza, a mãe que toma conta das crias até elas serem adultas. O meu irmão vive em Lisboa há muitos anos, eu também estou fora de casa, mas durante a quarentena reunimo-nos todos e foi muito interessante para mim. Foi a minha família voltar a estar junta. E queria deixar esta parte bonita dela: no “Progenitora” ela fala de espalhar pela sala as cascas das tangerinas, eu pergunto-lhe porque é que ela fez isso e ela diz que é para afastar os mosquitos e as moscas. Quando estiverem podres, é mandar para o lixo, mas até lá é deixá-las pela casa, que afastam a bicharada e o mau olhado. São pormenores que por vezes só os nossos pais, de outra geração e realidades… 

São aqueles saberes antigos.

Exacto. Sabes que os meus pais são aldeões. Tanto o meu pai como a minha mãe vieram de famílias muito, muito pobres, sem nada. O meu pai diz-me que era um luxo, ao fim-de-semana, terem uma carninha. Durante a semana era batata, couve, uma sopa. A água era da fonte e não havia electricidade. Do lado da minha mãe era igual. Eles migraram para o Grande Porto nos anos 80, tiveram-me a mim e ao meu irmão nos anos 90, fizeram-se à vida… Eu sou um legado deste crescimento e a minha mãe foi um pilar para todos nós, nesta parte de ter deixado claro que podemos não ter muito, mas comida vamos ter sempre. É uma página mais pessoal que queria deixar no álbum, mas ao mesmo tempo é um som completamente genérico quem ouvir o “Querida Mãe”, se gostar da sua mãe, vai-se identificar com a malha porque tentei evitar detalhes demasiado íntimos na letra.

Também há outro skit que é muito interessante no álbum, o “Visão Periférica”, que fala da palavra “guna”. Tu obviamente querias representar muito essa cultura urbana do Porto e ao longo dos anos tens afirmado isso como uma identidade na tua música, mas também está muito presente neste disco. Para ti é importante esta ideia de afirmar no panorama nacional, em que de norte a sul o pessoal vai-se ouvindo uns aos outros, a tua identidade portuense e essa cultura de rua local?

Exacto. Esse skit foi retirado de uma entrevista de rua que fiz com um pintor que pinta retratos de pessoas e trabalha para um jornal de Gondomar que é o VivaCidade. Ele fez-me um retrato e quis fazer uma entrevista comigo. Estivemos literalmente a andar e a parar em cafés, sempre a conversar, e ele esteve-me sempre a gravar. E depois enviou-me o áudio. Ouvi aquele momento e achei que estava interessante, porque estávamos a debater acerca da palavra “guna”. Estávamos a falar de uma perspectiva mais neorrealista e moderna de ser guna e de nos assumirmos como algo. Aqui no Porto, realmente há um tipo de comunidade e de pessoas na cercania da cidade que se movem, falam e se vestem de maneira diferente. E são chamadas de uma certa maneira. A palavra guna veio mesmo da expressão “ir à guna”, que era os miúdos agarrarem-se no eléctrico e irem atrás. Em Lisboa isso também aconteceu, mas no Porto ficou essa expressão, de “ir à guna”, ir à boleia, apanhar uma buga. E começou a associar-se “guna” a esses gaiatos dos subúrbios. Entretanto associaram-se características de roupa, o pessoal começou a andar só de Shox, TN, um bocado até pimba, só pousado na cabeça. Os Lacoste Dry Fit da altura. Eu era um miúdo, mas lembro-me de ver o pessoal mais velho, principalmente o pessoal do hip hop, a vestir-se assim. Os UNA Crew e os Força Mental são duas crews muito antigas de Rio Tinto, lembro-me de ser miúdo, com uns 11 ou 12 anos, e eles todos com Dry Fit, com as argolas de ouro, e era muito ligado ao futebol. 

O streetwear desportivo.

Nos Estados Unidos, o pessoal do hip hop ligou-se muito ao basquete e ao basebol, na Europa foi mais ao futebol. E nestas zonas mais suburbanas, de média e baixa classe, há uma tendência para o ópio do povo, que é o futebol. A cidade desmontou a palavra em quatro: “gente urbana não amigável”. O que eu achei que era uma definição muito depreciativa, é quase dizer “não lides” ou “cuidado com este tipo de pessoa”. E eu comecei a tentar criar a minha definição, que é “gaiato urbano não aconselhável”. A palavra “gaiato” tem mais a ver com este tipo de pessoa. E o “aconselhável” fica mais soft do que o “amigável”. Porque um gaiato pode ser teu amigo, mas se calhar pode não ser o melhor amigo, pode não ser assim tão aconselhável. Ele não vai ser mau para ti, até vai ser grande camarada, mas quando estás com ele acontecem problemas. Então não é assim tão aconselhável, mas não significa que ele não seja amigável. Comecei a falar com o pintor desta cena toda, ele é meio metaleiro e punk, até tem bandas, é guitarrista, e estava a ter outra perspectiva. Quase como se os góticos, os emos, os rastafari, os punks tivessem mais esta definição de comunidade… Mas eu sei-te dizer X palavras e expressões que são destas pessoas. E não estamos a falar de muita gente, mas ainda são milhares de pessoas. Então agarrei-me a isto. Eu vim de Rio Tinto, da zona Este do Porto, um subúrbio e dormitório da cidade, onde há milhares de pessoas que se comportam desta maneira. Eu automaticamente tive tendência para ser um produto deste ambiente. Que tem um quê de portugalidade, porque é uma maneira de X pessoas portuguesas, de uma certa área, falarem, vestirem-se e estarem para a vida. Depois foi uma cultura que também abracei porque é interracial. Conheces pessoal que veio com sete anos de Angola, pessoal da comunidade cigana, ouve-los a falar, vê-los a mexerem-se… E vês que são mesmo do Porto, porque têm essas características de gunas portuenses bairristas, com uma cena quase suja mas muito amável, verdadeira e pura. Se sou daqui, vou representar de onde sou e o que conheço. Quando o pessoal aqui no Porto diz “não percebo o pessoal da Lisa que tem ascendência portuguesa mas estão a rimar em crioulo”… Eu percebo perfeitamente. Se eles nasceram num bairro, numa zona ou num prédio em que toda a gente que os rodeia fala crioulo, seja cabo-verdiano ou da Guiné, é normal que a pessoa ao final de algum tempo esteja a falar crioulo ou até sinta a necessidade de se exprimir em crioulo. 

Claro, faz todo o sentido.

Aqui no Porto, se dizemos “caneco”, “papiro”, “tótil”, “chuço”… Se eu quiser, tenho conversas aqui com pessoas em que só falamos desta maneira. Quem não for desta área do Grande Porto, “fica a ler”. Por exemplo, esta expressão significa que não percebem. E no rap também transmito isso, também estou à procura de deixar isso claro: como é que mais ninguém fala no resto do meu país ou até na lusofonia? Porque este arquivo ninguém nos está a fazer. Então estou a tentar usar o hip hop para fazer um bocado este arquivo.

Para registar essa maneira de falar e de ser, essa cultura urbana identitária.

A expressão “unga” hoje é usada em muitos sítios da tuga, mas vem do Porto e desta comunidade dos gunas do Porto, que significa “vamos embora”, “siga”. É interessante, porque se calhar um dia vão ser palavras do quotidiano. Então estou preocupado em dizer que isto veio daqui, que nós somos isto… Nós não somos só isto, também quero deixar isso claro, eu não sou só o que estou a deixar no álbum, mas estou a deixar parte de mim e a tentar deixar um conhecimento científico e não só um discurso opinativo. O álbum é mais: isto aconteceu, isto é assim, eu sou assim e nós somos assim. Eu digo no álbum que viemos passar férias a Viana. Ninguém diz isso… Qual é o orgulho? O orgulho é grande porque, aqui no Porto, se temos a chance de pegarmos todos no carro e irmos para um Airbnb em Viana comer bom peixe, a uma hora do Porto, e estamos numa casa com piscina… Se estamos em Santa Luzia, naquele monumento espectacular a fumar um charuto e com algum dinheiro, é um momento de festa, de vitória. É tudo isto. Sem, ao mesmo tempo, vitimizar esta comunidade. Quando era mais miúdo, se calhar estava mais revoltado, tinha mais necessidade de apontar o dedo, de dizer que isto e aquilo estava mal, agora já não estou tão preocupado com isso. Estou mais focado em enfrentar a sociedade como ela é, sem desculpas, e tentarmos vencer, porque toda a gente tem os seus problemas. Alguns podem ser de dinheiro, outros se calhar são de família, outros de saúde. Toda a gente com o seu quê para conseguir vencer e atingir patamares.



Claro.

Por exemplo, eu e o meu irmão somos as únicas pessoas do meu bairro com uma licenciatura. Eu ia fazer o mestrado mas congelei, o meu irmão chegou a fechar. E os meus pais não tinham mais dinheiro do que os meus vizinhos. Eu e o meu irmão é que escolhemos coisas diferentes. Tínhamos as mesmas oportunidades, mas se calhar escolhemos não descer tantas vezes as escadas. Muito mais ele do que eu. Mas com um bom seio familiar, isso tenho de deixar claro, porque os meus pais foram incríveis. Com muito pouco a nível material para nos dar, mas com muito sentimentalismo, amor e carinho. E isso ajudou a que eu e o meu irmão tivéssemos escolhas. Quando tirei a licenciatura, no café do meu bairro mandaram foguetes para o ar e festejaram o facto de eu ter tirado uma licenciatura. E chamavam-me doutor. E eu disse a todos: “Não tenho mais nem menos cabeça do que vocês, não sou mais inteligente nem mais burro. Escolhi foi outras coisas, mas as oportunidades foram semelhantes.” Fui para França fazer dinheiro para estudar, o meu irmão teve outras estratégias…

Em que é que te licenciaste?

Tirei Cinema na Universidade da Beira Interior. Lá na Covilhã, literalmente fazia má vida para ter dinheiro. Trazia coisas do Porto para a Covilhã, inclusive tive problemas com a justiça à pala disso, só que safei-me, fiquei com pena suspensa e correu tudo bem. Mas fazia má vida para conseguir pagar o meu quarto, etc. Depois entrei num mestrado na ESMAD, no Porto, mas no segundo ano, da tese, tive uma relação muito antagónica com uma das minhas professoras, que era a coordenadora de curso. Ela disse que a minha tese estava a ser uma apologia contra a polícia, porque eu estava a abordar o La Haine, o neorrealismo, o facto de eles não terem sido actores antes do filme e de aquilo ter impulsionado as suas carreiras… Foi gravado numa zona em que vivi em Paris, tenho uma grande proximidade com aquele filme, é o meu favorito. E a minha tese começava com uma das primeiras frases do filme, que é algo como “vocês têm armas e tiros, nós só temos pedras”, que é uma gravação de imagens de arquivo em que os gajos estão contra a polícia. E abordei essa estética de cinema na minha tese, mas ela não curtiu a minha dica, disse que era uma apologia à violência, eu sempre a reescrever e a procurar mais bibliografia, ela sempre a passar-me a perna, então o que é que fiz? Não apoiaram o meu projecto nem com um euro, eu estava a fazer em simultâneo uma curta-metragem para ser defendida com a dissertação, então congelei a matrícula e fiz a curta na mesma. A parte bonita é que disponibilizei agora a curta com o álbum. Mas gosto muito de cinema. Chumbei no secundário, no 11.º ano, mas tive uma professora que acreditou em mim, porque eu já estava a querer desistir da escola. E ela mostrou-me filmes de neorrealismo, principalmente filmes que abordavam cenas de subúrbios, lá está, gaiatos… Desde o Kidulthood, o Ill Manors com um rapper que é realizador e actor que é o Plan B; nos EUA os clássicos como Menace II Society e Boyz n the Hood. Ela mandou-me ver estes filmes e achei que era do caraças, que estes gajos estavam a retratar uma parte da realidade com a ficção, a contar uma história nesta realidade. E foi quando pensei que era algo que eu podia estudar e tentar desenvolver mais. Como não havia faculdade de rap…

Obviamente também te queria perguntar sobre a escolha de sonoridades para o álbum, porque foste por caminhos muito diferentes. Usas instrumentais boom bap, velha escola, que foram aqueles com que começaste; tens beats mais modernos e electrónicos; mas depois também vais por outro tipo de estéticas mais distantes do convencional… Como fizeste essas escolhas?

Foi o processo criativo. Acho que a única coisa do mundo do hip hop que não tenho no álbum, a nível de BPMs, é aquela coisa mais recente do jersey club. Também não há UK garage type beats nem breakbeats. Mas tens trap, boom bap, drill e até aquela cena mais electrónica, mais carrinhos de choque… Os produtores entram em contacto comigo naturalmente e o discurso deles normalmente é este: “Oh $TAG, tenho aí uns beats, queres ouvir?” Eu digo a todos que sim, e quando arranjo tempo oiço. E até posso gostar dos beats quase todos, mas só quando me apaixono é que quero trabalhar neles. E às vezes apaixono-me por coisas mesmo diferentes. Porque muitas vezes vêm de realidades e universos diferentes… Quem acaba por também decidir o movimento a nível sonoro são os produtores. Tens um tropa teu que produz e é uma grande máquina de boom bap. Ele decide começar a fazer trap, tu estás com ele e acabas também a fazer… Os produtores decidem um bocado como é que a onda anda. E também me queria colocar à prova em todo o tipo de beats. Há algumas lendas do hip hop tuga que nunca quiseram sair muito da zona de conforto deles. É uma escolha do artista. Se calhar porque se sentem confortáveis no universo deles, porque dominam a 100% a sua arte assim, porque não querem arriscar ou ganhar algum carimbo… Eu já estou na geração em que tenho de provar algo, já não sou um pioneiro disto, então quero provar a mim próprio e aos outros que, em qualquer terreno e condição, jogo bem à bola. Isto é uma consequência disso. E arrisco-me a dizer que um dia faço um dancehall ou um afrobeat, se me der para isso. Claro que gosto de uma estética hiphopiana e dos métodos de criação do hip hop: um microfone, um instrumental e uma letra, sem muita maquinaria, só alguma para deixar a coisa mais suave. E claro que tive críticas, de hip hop heads que me compraram o álbum mas que são exigentes e que não percebem porque não fiz mais sons em boom bap, e eu percebo, mas quero pôr-me à prova e também me apaixonei por aqueles outros beats

E, por exemplo, o “Turma”, que tem um lado mais electrónico, como estavas a dizer o próprio conceito da música fazia sentido que tivesse essa estética sonora…

É por aí. A seguir ao “Turma”, há uma malha chamada “Tenda” que foi produzida pelo Vilas Boas… Eu na altura estava só a ouvir um som que é do Maes, um rapper francês que fez a “Fatty Wap”, e tem uma sonoridade como a “Tenda”. E eu mandei para o Vilas Boas, perguntei-lhe se ele tinha alguma coisa assim, disse-lhe que estava a fritar naquilo e ele mandou-me uns quantos e era mesmo este que eu queria. Chama-se “Tenda” por causa das tendas electrónicas, e as escolhas também vieram por aí. Claro que uma das coisas que mais pecam no álbum, e já reflecti acerca disso, é não teres uma linha mais contínua a nível de sonoridades. Mas, para ter isso, tinha de ter um produtor executivo, quase um Dr. Dre que ajudasse a decidir e tivesse uma linguagem de uma pessoa só. O próximo projecto que faça provavelmente vou tentar ter uma cena mais só com um produtor, para ver se consigo obedecer a uma só linguagem sonora e musical. Com tanta gente, com tantos beats por que me vou apaixonando, com tantas coisas com que quero ser diferente, acaba por ter esta distância e também é quase querer agradar a gregos e a troianos. Tenho pessoal do boom bap que adora essas mas odeia drill, tenho o pessoal que adora drill e diz que o boom bap está cansado… Vou tendo feedback dos vários lados, e também não sou o purista de só querer gravar em beats clássicos.

E foste escrevendo à medida que te foste apaixonando pelos beats?

Depende. Eu sou um gajo independente, tenho algumas pessoas que acreditam em mim e ajudam mas faço tudo sozinho. E quando és independente, tens de jogar com as armas que vais tendo. E não tens propriamente um dia ou uma semana inteira para estares em estúdio a reflectir sobre uma faixa. Não tens momentos para te sentares em estúdio e escreveres para aquilo directamente e começar tudo a bater certo. Então o processo criativo acontece muito de eu estar sozinho no carro, escrever uma cena, entretanto descobrir um beat e tentar encaixar a cena nesse beat… Também descubro um beat e começo a escrever para ele. Mas deus queira, e vejo os making-ofs de pessoas como o Dillaz, o Plutonio ou o ProfJam, e eles têm realmente essa chance de produção, de a semente ser germinada, plantada e regada no mesmo vaso. Estar ali tudo até a árvore… Eu ainda não tenho essa produção, esse orçamento, para dizer ao produtor que vamos estar esta semana em estúdio só a fazer uma faixa. Eu recebo o beat, escrevo, se calhar faço uma demo, vou para estúdio para o Janga, como estou a pagar bom dinheiro para lá estar tento fazer a faixa o mais rápido possível e é um bocado por aí… Elas foram-se formando, conforme tive necessidade de escrever as coisas que tinha para dizer. A maior parte delas até foram feitas de forma cronológica, em relação ao alinhamento. Das poucas que não são, é a “Pauza”, em que estou a tocar saxofone, porque o álbum precisava daquilo ali a meio para respirar…

Estamos mesmo a fechar o ano. Como estás a planear o teu 2025?

Como um lunático. Atrás do sonho, sempre nesta utopia de um gajo se colocar em sítios, mesmo não havendo ainda uma grande equipa e produção. Mas em 2025 vou tentar ser este gajo. Primeiro, já estou a começar a escrever o meu próximo álbum, mas não sei se sai em 2025. Mas quero dar shows deste álbum, vendê-lo, quero apostar mais na minha imagem como produto, trabalhar mais $TAG a nível de merchandise, comunicação de design, assessoria… Não estou muito preocupado com estúdio, quero um 2025 mais de estrada. Gostava de fazer uma data em todos os distritos de Portugal, e estou a tentar criar a minha pequena label, tentar ajudar amigos meus, com o pouco conhecimento e plataforma que tenho, dar-lhes algum know how, inputs criativos de comunicação… Em vez de fazerem aquela selfie com os tropas a fumar canhões nas escadas, “vamos-te fotografar, pôr-te mais clean…” Porque o rap deles está pesado, não quero alterar o que eles estão a fazer atrás do mic, mas tentar dar-lhes outra capa, a roulote deles ficar com umas luzes mais fixes. Esse é o 2025 que estou a verbalizar e a manifestar para o universo.

E a label já está muito activa?

Chama-se Pauza e até agora o que fizemos foram três eventos, todos correram muito bem, e estamos no processo criativo dos dois primeiros EPs de dois artistas, o Fratello e o Neto. Já têm nomes, eles já gravaram as primeiras faixas e a Pauza vai dar 20% ou 30% da produção do projecto destes artistas e este know how todo de carreira. Seja a capa, os conceitos, tentar ajudá-los… E, se for para a estrada, levo-os comigo, tentar pô-los a abrir. Estamos a falar de gajos que não têm plataforma nenhuma, mas que acho que são muito bons e acredito muito neles. Não têm views sequer, não são conhecidos nem têm seguidores, mas quero mostrar que eles são bons, que confiem em mim e tenham paciência, que se calhar daqui a uns anos podem não ser os gajos mais conhecidos da tuga, mas podem ser artistas relevantes… A Pauza é ainda um embrião. Quero um dia, se calhar, trabalhar fado, música medieval, cinema, produção de eventos… Acima de tudo é um símbolo.


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