De volta ao festival da itinerância, que prossegue andarilho de palco em palco. Depois da tripla presença em Montemor-o-Velho, que aqui demos conta numa, outra, e noutra crónica assinada, houve a passagem por Castelo de Paiva, onde Marcelo dos Reis em trio, com Miguel Falcão e Luís Filipe Silva, trouxeram Flora respectivamente em guitarra eléctrica, contrabaixo e bateria. Soubemos que o Auditório Municipal local se compôs, em bom número e entusiasmo, de uma boa dose de ouvintes, muitos vindos da Academia de Música, logo ali ao lado. É também este um dos propósitos do festival, de trazer novos públicos, desde logo público novo na idade — público escolar. Castelo de Paiva é um território entre rios “com paisagens únicas e inúmeros pontos de interesse, como a ilha dos Amores, no encontro dos rios Paiva e Douro, ou o Choupal das Concas”, assim lido nos prospectos que convidam a uma demorada passagem, além da música. Este outro propósito de existência do Space Festival, no lançar o convite a percorrer outros territórios, fora dos grandes centros urbanos, olhar em redor dos palcos desta cultura contemporânea. Foi para isso a terceira passagem desta rota de festival, por Mondim de Basto, nas faldas das serranias do Alvão, pleno de pontos altos, um território “onde não faltam recantos escondidos, rios, levadas, cascatas e vistas panorâmicas”. O centro desta vila, revela o Favos das Artes, e onde o Space Ensemble (SE) marcou presença neste Space Festival, com um programa de filmes-concertos, em exclusivo para escolas. Privilégios de um dia de aulas marcado pela aprendizagem cultural fora da habitual sala. O Ensemble que se volta a reunir, com outros músicos ainda neste edição, os da Academia de Música Fernandes Fão, em Vila Praia de Âncora dia 9 de Novembro para “Cine-música” com outro programa estimulante feito de improvisação livre e dirigida, composta no momento e a propósito do filme em projecção. Ainda, este mesmo SE, que é mutante na constituição, esteve em acção no quarto território visitado pelo festival este ano. O Centro Cultural de Paredes de Coura recebeu “Trama”, uma criação de Luís Filipe Silva e que contou com SE feito do violino de Samuel Martins Coelho, as electrónicas de Nuno Alves, o violoncelo de António Oliveira e a percussão de Luís Bittencourt junto da companhia Mais Teatro Amador Courense. Um espectáculo pelo que de tão bom resultado deixou — ouvimos dizer —, fica a pedir justamente outros mais palcos.
Aqui chegados, ao verdejante e acolhedor território courense, num dia surpreendentemente quente para a época, em que as mangas das camisas se esperam mais compridas que curtas, o rio era o lugar. O Coura, que nas suas margens de aqui, leva ao tal “couraíso” nos dias de Agosto às enchentes com o festival Vodafone Paredes de Coura, corre fresco e translúcido e convida ao inusitado mergulho em Novembro. Nas suas margens somos surpreendidos pela arte de outros que aqui estiveram e deixaram as suas marcas. Marcas que as inscrevem nos desígnios da Land Art, mas nada efémera. Escrevemos sobre as peças/instalações arquitectónicas da dupla que assina como FAHR021.3, sendo Filipa Frois Almeida e Hugo Reis. Esta dupla criativa foca o seu trabalho, cruzando a arte e arquitectura, na paisagem, deixando uma marca autoral vincada. Dois desses resultados estão à mercê de um encontro nas margens do Coura, para antes de mais um mergulho na paisagem. Um deles é precisamente uma ponte metálica, de onde se pode, em aventura, mergulhar. Ponte de diálogo com o rio, mais que com as margens, num jogo de espelhos, há estruturas para ver de cima do rio e outras — miméticas —, que melhor se entendem desde baixo, no rio. Uma ponte que ao invés de se impor ao rio, recebe a sua dinâmica e fluxo, sem ser barreira — sendo tão ponte. A outra implantação — chamemos-lhe por simplicidade — trata-se de um biombo de betão cru, feito de quatro paredes canalizadoras, entre duas das quais se ascende por degraus metálicos ao inicio do espaço, para dele receber a acústica do lugar. Exemplo maior e fulgurante na paisagem onde intervém, para que dela se tire acrescido proveito, efémero, é certo, contando com a robustez no modo de intervenção, que irrompe, mas sendo harmonia.
Transposto em exercício o espaço do território, damos lugar a outras possibilidades na mesma pretensão com as propostas do Space Festival, na segunda noite de programação no Centro Cultural da vila courense. A dupla de trabalho Mariana Dionísio e Clara Saleiro está em campo. E tem estado em residência artística para prosseguir o seu espaço de pesquisa em torno da palavra, da voz, da voz da e nas flautas várias, e de tudo isso em diálogo. Têm-se apresentado em diversos palcos, e se ainda são meio um segredo não é porque esteja bem guardado ou escondido, é antes porque os dias nos ofuscam o mais belo, diante de nós, uma e outra vez mais. Este concerto é feito de coisas simples, numa hábil e complexa improvisação, que conta e muito para que o façam destemidas na boca de cena. Justamente o que vemos, ouvindo, é uma dramaturgia sonora, feita de expressões de ar, vocalizado pela operária do som (Dionísio) e soprado, mas também vocalizado, em flautas pela parte complementar (Saleiro). Contudo, para a abertura da vivida corrente de ar, há um par de címbalos a criar atmosfera, a que se junta a flauta baixo e a voz pairante. Dado o mote de arranque, as construções seguem o seu fluxo na corrente das palavras, como o fluxo do rio, que nunca se repete — a água que passa debaixo da ponte sem voltar. Socorrem-se das palavras de outros, poetas como o seminal modernista T.S. Eliot, com trechos de The Waste Land. Mas é uma revisitação à obra, numa mais que apropriação, recriam os sons das palavras, respiram com outras voltas na volta dos poemas de Eliot. E ouvimos, como que vindo de um outro espaço “O you who turn the wheel and look to windward”, retomada da quarta parte em “Death by Water”. A sabedora da arte das palavras, Dionísio, como quem roda o leme para seguir velejando no rumo certo. Saleiro troca amiúde de expressão transversa, de uma flauta baixo, até à vertigem exploratória da piccolo. A outra metade da prestação do duo em palco faz-se da abordagem, e como prevista na folha de programa, a “Only the Words Themselves Mean What They Say”. Peça fonética da aclamada Kate Soper, compositora e performer cujo trabalho explora “a integração do drama e da retórica na estrutura musical” — uma fonte de inspiração para o que se ouve. Desde logo haja fôlego para esta abordagem, há que inspirar sempre que a palavra o peça. E nesta outra revisitação em alinhamento, fizeram-no como na própria pele, encarnando as palavras, a métrica e o ritmo como seus. É caso para perguntar se Soper está a par do ocorrido? — Se não, é bom que esteja… Não que haja algo a temer, todo o contrário, até tudo a revelar. Toda uma expressão em acústico, sem subterfúgios alguns, tudo às claras, em discurso directo, na beleza das palavras. Neste duo, Mariana Dionísio e Clara Saleiro experimentam diálogos que transpõem a beleza das palavras ditas, já por si nesse embalo de possibilidades, mas assomam-se aos campos estelares, inscrevendo novas linguagens com essa (re)formulações, desde pronto assim mesmo entendidas quando se começa a intervenção num idioma inventado, num mais que a linguagem própria. Dionísio em mais um dos seus duos apresenta-se de volta hoje (dia 8, às 21h30) com Tracapangã, no Centro Interpretativo do Barroco, na chegada dos Space Festival a Arcos de Valdevez. Saleiro voltará ao nosso campo visual-auditivo, com Phonospermia, no Teatro Valadares na tarde de dia 10, na derradeira etapa do Space em Caminha.
Esta última noite do programa do festival na sua dupla estadia em Paredes de Coura, traria uma estreia com “Multimedia Percussion” de Vítor Castro. O palco com as percussões de Castro já estava montado no espectáculo de Dionísio & Saleiro, e trouxe essa envolvente espúria como pano de fundo que não era o seu. Aspectos que se podem resolver sempre que a logística o permite, sabemos que o ideal, por vezes — e foi o caso —, fica meio impossível. Um palco de ponta à outra, com dispositivos que haveriam de manter o eclético percussionista em acção. Um palco que começa por desenhar um espaço oculto, como num primeiro quadro percussão/ilusionismo — ouvem-se efeitos não visíveis sobre a mesa percutida, há uma fita do tempo sonoro em curso. A dimensão multimédia passa por isto, o que dá a entender que há um tempo contado, tudo sincronizado. Essa mesa funciona com o melhor que haveria a desvendar. Os quadros seguintes deram conta de um entusiasmo decrescente, da roupagem multimédia que teve nas imagens projectadas, houve um espectro de reduzido interesse, até mesmo perturbador. Vítor Castro, que é um exímio interprete da percussão, com créditos firmados entre expoentes maiores da percussão, tem neste seu exercício autoral, sobretudo no campo da dramaturgia estética, uma formulação que empobrece. Mesmo na abordagem ao vibrafone, cujo léxico é deveras promissor, passou por um suave campo de harmonias que acompanhavam mais o protagonismo oculto vinda do espaço multimédia. Ficamos apenas entretidos num serão musical outonal de baixo-relevo, mas deixamos em hipótese se, com os seus créditos, Vítor Castro não pretenderá mais que este ligeiro passeio possível pela avenida sonora das baquetas.
Os dias de Space Festival que se seguem, em Arcos de Valdevez e em Caminha, sê-lo-ão, estamos nessa expectativa, feitos com outras e redentoras — agora assim colocadas — percussões activas e actuantes. Esperamos para ouvir o que nos trará o trio OTTO ao Teatro Valadares (dia 9, às 21h30) e Camille Emaille no matinal concerto (dias 10, às 11h30) partindo da escultura sonora no Hotel Meira, em Caminha. Estamos, portanto, disso a caminho.