Corria o final de milénio, ano de 1999, neste mesmo Teatro Esther de Carvalho — que vamos dando a entender quanto dele gostamos no estar presentes — apresentava, no programa do Festival Citemor, Emídio Buchinho uma tal “Tour de Force 99” como Nova Música Improvisada. Escrevia então Buchinho para essa vinda que: “Uma vez que as oportunidades são escassas ou inexistentes, tomamos a iniciativa de apresentar uma proposta alternativa de trabalho, assente na regularidade de experiências diversificadas e sustentada numa prática continuada ao longo de anos”. Mote que justificava o propósito, e nessa junção de esforços apresentava-se além de Buchinho na guitarra, Carlos Zíngaro no violino, Pedro Leal na bateria — os três com respectivas electrónicas — aliados de Rodrigo Amado nos saxofones, então dedicado ao alto e ao barítono. Amado que se lembrava de ter estado um par de vezes em Montemor a tocar em tempos — a outra foi no Castelo, no Citemor de 2007 — junto aos Spaceboys de Francisco Rebelo, João Gomes e Tiago Santos, com Flak. Amado de volta a Montemor, neste 2024, para tocar o seu aclamado tenor juntamente com a bateria de João Lencastre formalizando o “Living Room” do contrabaixista Michael Formanek. É disto feita a memória inscrita nos espaços que vão acumulando as camadas do tempo das vivências que assim permanecem. Estas crónicas que assinamos aqui e ali, aquém dos tempos que correm, que já não os dessa escassez a que se referia Buchinho em 1999.
O dia final do Space Festival em Montemor-o-Velho começou na ruína da Igreja de Santa Maria Madalena com o solo de Ricardo Martins, nada só, com bateria, sintetizador modular e voz. Novas criações feitas no recanto de uma ruína, exercício em tese feito de compensação — a memória do passado à mercê do presente com pés no futuro. Reflexo de vontades que por fim o estado do tempo permite, ao contrário da Igreja de Santo António — onde o SF’23 instalou “Sublumia” —, nesta mesma encosta do Castelo, aqui a ruína foi deixada tal como encontrada — sem telhado —, apenas limpa da patina mais superficial na rocha calcária jurássica que edifica as paredes. Torre campanária como identidade, entrada no arco ogival de perfil gótico, onde a música se faria outra, essa que Ricardo Martins, infatigável operário do som, se presta a inscrever como nova. Com Distraimento, quinto disco a solo do compositor e baterista, que teve uma edição digital pela Revolve no presente ano, aguarda a publicação em formato físico na rodela vinílica. O concerto no Space Festival revela o que já suspeitávamos, como o dito pelo artista em entrevista concedida ao Rimas e Batidas, de como “não há nada gravado, é tudo na hora”. E que hora se viveu, ou perto disso, entre um baterista que se ausentava da bateria para operar os comandos do modular, ou quando retomava as baquetas para se dedicar a acompanhar o que havia posto em automatismo, em expressão analógica. Dois braços parecem ser escassos para o elenco que haveria de estar por trás de tamanha construção sonora. É um método laboratorial, de ensaio, onde interessa mais o processo em si, antes mesmo do produto da experimentação. Privilégio dos presentes em estar perante um palco aberto ao espaço num domingo convidativo ao passeio, e nisso o efeito surpresa dos que passam sem contar. De Ricardo Martins houve vozes texturadas que remetem para a amálgama dos sons processado em tempo real — nosso também por ali estarmos.
Derradeira imersão no Esther de Carvalho, no decurso desta edição do Space Festival, para dele fazer parte da sala de estar, na “Living Room” de Michael Formanek. São precisos poucos minutos de concertos para nos darmos conta que com maior justiça seria melhor designado como num Living Room (Trio), tal a contribuição paritária dos intervenientes. Há esta tradição de uma denominação, nos domínios do jazz, de uma formação conjurada e/ou liderada por um dos músicos receber o seu nome como coadjuvante. Porém, quando é notória a paridade criativa no processo, quando a música corre livre na composição, em grande medida feita em tempo real — improvisando. Quando Formanek começa a ligar-se à cena jazzística local (de Lisboa), começa por tocar em 2023 com John O’Gallagher (saxofone alto) e com João Lencastre. A passagem ao tenor de Rodrigo Amado foi disso uma consequência acertada, estreando-se a nova formação em 2024 e mantendo Lencastre na bateria. No Esther de Carvalho, foram quatro as peças deste trio inscritas na memória mais recente do lugar, mas que o tempo fará eco no futuro e a memória, uma vez aí chegados, mais distantes do agora, trará na lembrança emocional o que anteontem se ouviu. Um concerto feito de três comunicantes músicos, que de pronto se demonstram sobejamente implicados entre si. Neste trio cabem combinações de duos, entre o contrabaixo e o tenor, entre o tenor e bateria e entre a bateria e o contrabaixo. Muito justamente, quando estamos reconfortados numa sala de estar como esta, os diálogos são efectivos e estimulantes, entre as partes, e entre as partes e o todo — a magnifica sala de espectáculos. Uma vez mais, a acústica do espaço foi um lugar cimeiro alcançado, ajudando a fazer deste final de tarde de domingo um tempo para memória futura.