Primeiras propostas vindas do primeiro dia programado do Space Festival (SF) que este ano começa em Montemor-o-Velho. E como que a contribuir numa resolução para um dos temas de maior inquietude social, onde há “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”. Por comparação com a crise habitacional, também os espaços culturais sofrem dessa desigualdade. Há tanto espaço sem programação e tanto a programar sem espaço. Uma das maiores premissas na realização, em itinerância, do festival é fazer acontecer em salas e espaços menos convencionais, que estão fora da rota habitual da programação de espectáculos, concertos de música experimental e improvisada. Isto em contexto de territórios de baixa densidade populacional. Em Montemor-o-Velho volta ao Teatro Esther de Carvalho, que é um dos teatros em funções mais pequenos do mundo, e para além disso apresenta propostas em três dessacralizados locais do Castelo de Montemor (Capela de Santo António, Igreja de St. Maria da Alcáçova e Igreja de St. Maria Madalena), juntando ainda a proposta na TOCA (um armazém que é uma amálgama de curiosidades). Aliando música dos domínios do incomum a incomuns lugares o SF procura, com esta dupla acção, afirmar-se no panorama dos festivais de música com uma identidade bem singular.
Capela de Sto. António, ameias do castelo, local que consagra agora outros ritos, recebendo a cultura nas suas expressões diversas. Porta vermelho vivo, semiaberta, encimada por uma inscrição que a custo deixa ler 1831, perdendo à data o seu carácter religioso.
A recente finda intervenção, assinada no plano pelo Mestre Siza Vieira, devolveu-lhe o telhado e consequente efeito de ampla reverberação de outrora. Aura alba ao entrar para nela ouvir/ver a partir de um ver/ouvir, ponto de partida sinestésico para a instalação sonora-visual de Sublumia, unindo os campos sensoriais da audição e da visão. Criação artística imaginada por Jorge Quintela e Henrique Fernandes, desenvolvida desde fontes sonoras captadas na projeção de movimentos lumínicos. Estão presentes os elementos essenciais: água, ar, luz (como fogo) e terra. Dois retroprojectores, cada qual com seu cubo aquário de vidro, difusores de ar dentro de água, dissipadores de bolhas de ar. Dois hidrofones a captar. No púlpito, um dispositivo de varetas metálicas (vindas de um relógio de pêndulo), com um motor e ventoinha de cerdas a bater. Um geofone a captar. Água e terra como fontes sonoras. Harmonias reverberantes cruzadas com expulsões borbulhantes a envolver o espaço. De olhos fechados, difícil é imaginar tais fontes sonoras instaladas na razão do que se ouve e sente.
Ouvir através do ver é mais alcançável do que ver a partir do ouvir. É neste desafio exploratório de capacidades que pretende situar-se esta instalação. Procurando a imagem do som no som da imagem. A proposta de uma experiência sensorial que leve a uma outra trazida por um outro sentido. Desafia-nos a inversão da imagem projectada, na parede o ar toma a vez da água e a água parece ar. A fruição quer-se individual, na medida que as percepções sinestésicas, a terem lugar, são e vão de cada um. Sabe-se que o compositor russo Scriabin (1871-1915) percepcionava cores através das notas musicais de um teclado, mas não foi nem será o único.
Hedera como epíteto genérico engloba meia-dúzia de espécies vegetais de plantas vivazes de hábitos trepadores e rastejantes. Hedera como nome de quarteto congrega os violinos nas mãos de Carlos Zíngaro, Bernardo Aguiar, David Magalhães Alves e Francisco Lima da Silva. Esta ponte sonora-vegetal ficou estabelecida em 2022. Música de raiz improvisada e de propagação orgânica, em plena primeira floração, atraindo polinizadores humanos sentados no conforto do Teatro Esther de Carvalho (TEC), com os lugares de cadeiras quase esgotados.
As primeiras notas em concerto para o SF’23, em arcadas de braços direitos dadas, movimentos cadenciados em figurações coreográficas onde se estende o desenho foliar. Nas primeiras peças percepciona-se a estrutura, há um tronco comum, um braço de seiva condutor a partir do qual brotam os novos rebentos. São frases melodiosas, curtas na desenvoltura que emanam diversidade nos padrões estilísticos, evitando uníssonos, criando estruturas antes pela via das consonâncias, o emaranho vegetativo trepador. Há nas paredes do teatro padrões vegetais prévios, tinta sobre madeira desde 1882, mas serão acantos talvez, heras só as do palco. Na cultura dos símbolos significam amor e amizade, na cultura musical trazem densidade, em doses de mistério, contemplação e frescura. Mesmo abraçando por completo os outros não os asfixia, ao contrário traz com ela mais vida, alberga muitas mais espécies. Reveste o redor em aparente hegemonia, o que na atenção devida e merecida se vê e ouve como microcosmos diversos. Música e planta, assim percepcionadas nesta relação de planos livres sensoriais. Nos arcos há um à mão de Zíngaro, que fumega sobre as cordas, sobem minúsculos fogaréus sobre o violino, usado na peça de abertura e no fecho. É um arco muito curvado, ancestral, lembra o das medievais vielas, permite uma tensão dinâmica das cerdas na medida do toque, que convoca ao timbre as 4 cordas em simultâneo, passam a ser mais em palco. Sexta peça tocada com recurso aos sempre cativantes pizzicatos, e são gotas a desprenderem-se de dias e noites chuvosos, como lá fora, que vendavais levantam ao som das cerdas dos arcos às cordas passando. O gotejo vai de folha em folha em cadências descendentes. Momento maior no desenrolar do concerto servido na forma de nove mais uma em peças medido. Todos os violinistas despontaram melodias, todas as folhas contribuem na fotossíntese, em cada peça há um rebento que é centelha, que os outros seguem, na busca da construção pela harmonia equitativa. E quando a floração se anuncia, os arcos alinham-se para uníssonos assumidos, força conjunta para abrir flores, irradiar perfume, cativar a atenção dos agentes que hão-de polinizar para depois espalhar semente. O vigor com que terminam em palco é disso que tratam. Voltam para enternecer, para afirmar que são daquele género sempre-verde que se quer perene, que há-de fazer-se lenhoso. Longa vida no reino musico-vegetal para Hedera.
Para os que aceitaram a dupla proposta da noite, tiveram dois lados que nem reversos, primeiro o orgânico e depois o inorgânico, como química complementar na exploração da música improvisada. Parece ter sido toda a plateia do TEC a mover-se até à TOCA, novo espaço feito de velhas coisas.
Marta Zapparoli internacionaliza o SF, italiana residente em Berlim. Pesquisadora e infatigável colectora e gravadora de ondas rádio de ultra-frequências (very low frequency – VLF no acrónimo inglês). Propagações electromagnéticas no éter, atingindo a fronteira atmosfera-ionosfera, de comprimentos de onda da ordem dos 100-10 Km, em faixas de frequências de 3-30 kHz, no limiar da percepção para o ouvido humano. Inductores são os receptores que traduzem esse sinal para o nosso espectro de conforto e abrem portas ao som do espaço, a um ambiente sonoro de possibilidades, podemos ouvir auroras boreais, trovoadas muito distantes e acedemos à interacção dos electrões e protões solares com o campo magnético da Terra. A Alberto Lopes (aka Albrecht Loops) devemos muito do trabalho seminal se fez no campo da música experimental e improvisada entre nós. Desde a programação do saudoso Festival Co-Lab e peça fundamental do colectivo da Sonoscopia no Porto, bem como na ação directiva n’A Moagem no Fundão. No entremeio de agitador-programador é um praticante músico-explorador das possibilidades na guitarra eléctrica. Juntos, Zapparoli e Loops no SF’23 estão preparados para convocar campos sónicos longínquos para os (in)comuns ouvintes.
No seio do TOCA estão dispostos em biombo dois enferrujados tornos mecânicos, como que preparados para tornear o som, diante deles os dois pesquisadores-manipuladores sonoros, em acto performativo. Há até sofás e poltronas para que cada um encontre a sua zona de conforto. Aos primeiros trechos sonoros percepção do espectro da luz no campo dos lilases e anis. São as ondas VLF a chegar e a situar o lugar, de onde vem pouco importa, podem ser as captadas em tempo real, e sabemos que estão longe no espaço, mas ali estamos mais perto, como bem podem ser longínquas no tempo, Zapparoli faz uso simultâneo de gravações prévias guardadas em cassetes. Loops ocupa-se de uma guitarra eléctrica tangendo cordas das mais inusitadas maneiras, aos pés o som manipula-se e adensa o espectro. Tomam partido útil do que outros músicos chamariam de sons parasitas, indesejáveis. A permutação do som pela imagem é inerente ao lugar, aqueles tornos embora estáticos são fazedores de peças torneadas às mãos sem goivas nem formões daqueles dois operários do som. Na passagem inesperada de um gato preto em cena, devolveu-nos à imagem do lugar, desterrados no imediato do longínquo espaço.
Ao invés do concerto de Hedera 4tet, onde o som orgânico apelou a imagens não explicitas, em Zapparoli e Loops o som maquinal e inorgânico revestiu em pulsares o vazio existente entre imagens saturadas em redor. No voltar à memória recente do vivido fica-se na suspeita até que limite são inaptas mais que estimuláveis, sensoriais ou cognitivas as vias que levam aos momentos de sinestesia.