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Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 02/11/2024

Com Dullmea e Miguel Pedro com Jorge Coelho na caravana.

Space Festival’24 — Dia 1 (Montemor-o-Velho): irromper na baixa densidade

Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 02/11/2024

Está em curso o festival da itinerância, dos sons em movimento, com passagem por territórios de baixa densidade. A caravana do Space Festival volta, depois da passagem em 2022 e 2023, a ser acolhida pelas gentes e os lugares da vila de Montemor-o-Velho como ponto de partida da sua viagem, que irá prosseguir por terras de Castelo de Paiva, Mondim de Basto, Paredes de Coura, Arcos de Valdevez e Caminha. Seis territórios descentralizados, numa outra rota que dá a conhecer melhor o que esta programação do festival traz, para ver e ouvir na medida em que o Space Festival dá a (re)conhecer outros mais lugares de espectáculos, que assim abrem portas noutros tantos propósitos. É o caso da quase milenar Igreja de Santa Maria da Alcáçova no castelo de Montemor-o-Velho. Espaço mandado construir em 1090, e que se aventa como plausível que tenha sido edificada sobre a base de uma mesquita islâmica, cujos elementos arquitectónicos deixaram testemunhos nos estratos do tempo. As camadas de cultura que se acumulam nos lugares desde há muito escolhidos como centros actrativos. Lembramo-nos de cá ter vindo em 2006 para o concerto de Laurie Anderson, que juntou também os hábeis cantores de Chirgilchin — as gargantas multivocais de Tuva. Há qualquer coisa de fascinante aqui, neste lugar, e que nos faz voltar agora para Dullmea para um concerto também com base na voz.

Dullmea que é o alter-ego de Sofia Fernandes, que se apresenta com uma discografia que, desde 2016, a coloca nos trilhos da exploração das possibilidades da música vocal e da electrónica. Presta-se a apresentar novo disco, outro outro, que há-de acontecer dentro de um par de semanas, neste mesmo ano em que já revelou Ñe’ẽsẽ, álbum que assenta na recolha de elementos naturais para criação sonora, e com Wien – Torino – Mindelo – São Tomé, viagem feita das itinerâncias sónicas desses lugares. Todo um propósito para inscrever a música de Dullmea no programa do Space Festival. Da sua voz cumulam-se outras mais expressões sónicas, moduladas nos comandos que dispõe como tapete pronto a fazer viajar. Talvez até pela própria disposição no palco-estrado, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, de imediato nos remete para uma música meditativa. O campo do escutado subscreve a evocação. Trechos sonoros adiante aproximam-nos irremediavelmente dos campos de uma música vocal hindu, onde habitam mestres como Pandit Pran Nath, cúmulo das ragas sem fim. Dullmea bebe dessas fontes, inspira-se na ancestralidade do canto das culturas, acrescenta camadas às que sustêm as que aqui inscreve no espaço sonoro. A electrónica permite-lhe arrojos, desenhar padrões rítmicos que alimenta, alimentando-se deles mesmos. É uma música ao fim ao cabo autotrófica. A música de Dullmea, na derradeira função, transporta, leva para além lugar, permite inspirar e expirar como deve ser, retoma dos ciclos essências na procura do transcendente. Para seguirmos os ensinamentos, embora sem esse propósito, da mestre em funções diante de nós, apenas e só no exercício de um espectáculo musical.



O Castelo e a sua igreja ficam para trás no tempo, numa noite cálida deste primeiro de Novembro. O dia que faz ecoar na noite as palavras do poeta: “Um traço, um berço / Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância / Erva fálica pelo caminho […]”, como na música “1º de Novembro” dos Mão Morta, dos seminais músicos da banda Adolfo Luxúria Canibal e Miguel Pedro. Entramos sempre com redobrado prazer nos encantos do Teatro Esther de Carvalho, na fachada que sustém os baixos-relevos de Silva Taborda por um lado e Almeida Garrett por outro. Mas dentro, em palco há uma floresta de luz LED, disposições cénicas entre postos emissores vermelhos numa concepção de Constança Soutinho para receber a música de Miguel Pedro. Sonofobia como pano de fundo, como sustento de uma vinda a palco, não como nesse disco a solo, mas trazendo a companhia para o acrescento com a guitarra de Jorge Coelho. Coelho que já havia pisado este mesmo palco, neste mesmo festival em 2022, com Ry Vuh. A surpresa do lugar ficou para Miguel Pedro, estreante neste reduzido espaço, mas de enorme grandeza no campo das possibilidades. E a prová-lo está a música que se ouve a preencher o espaço das luzes. Começo com “Pedras”, tema que abre também o álbum que este dramaturgo sonoro inscreveu no catálogo da Revolve em 2023 nos domínios da electrónica exploratória. Neste disco partindo de um instrumento como veículo para essas veredas, um espécime de guitarra, indomável. Que se explora na horizontal, que tem mais pontos de actuação para além das cordas. Um instrumento atípico, chama-se guitarra por simplificação e de chaos por melhor definição. Entrando no imaginado processo de composição deste Sonofobia, perguntamo-nos quem conduz quem, se esta estranhíssima guitarra o músico ou o contrário. É provável que este terreno fértil se faça desse constante medir de forças, desafiando o tal medo do som que o nome intitula. Tilintares cósmicos, passos em volta de uma floresta espacial que este espaço cénico inscreve no espectro do vermelho, na vertical. Passagem á luz branca, intermitente no acompanhar da cadência, trazida justamente com “Passos”. Percorremos a floresta de luz, entrecortados pelos LEDs. Música que acompanha as programações trazidas, que lhe dá profundidade e vastidão. A guitarra, ainda assim mais convencional de Coelho, é feita de tensão latente, num deixar rasto, indica o caminho percorrido, é memória. Deixamos de ter os pés assentes e passamos a voar, junto com a “Borboleta”, tema que transposta para uma visão de um lugar desde os intrépidos bateres de asas sonoros, e ouvem-se campos florais, brisas de néctar. Mais adiante neste tempo, percorrendo o espaço desta música de Miguel Pedro com Jorge Coelho, faz-se notar uma “Maré”, uma vastidão, como a melhor definição do espaço, e constata-se que este “teatrinho” é além do que mostra a dimensão física. Fim de prestação em palco com “Sirene”, aviso em forma de cascata de ecos que esta primeira viagem, deste concerto, e deste primeiro de dez dias de Space Festival assumia o desfecho.

No final de tudo, os três gatos que se abeiraram para saber o porquê do burburinho junto ao Teatro, desafiaram e lograram umas festas no dorso felpudo e bem cuidado. Cada um segue na busca de alimento, tudo à medida dos seres que povoam as baixas densidades, como o escutado e vivido por nós, já em si tanto.


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