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Fotografia: Raquel Moreira
Publicado a: 06/07/2022

À boleia de todos os sentimentos (ao mesmo tempo).

Sónia Trópicos: “Ninguém entendia o que eu fazia porque não estão habituadas a ver mulheres atrás de um computador a produzir música”

Fotografia: Raquel Moreira
Publicado a: 06/07/2022

O percurso de Sónia Margarido – que é como quem diz, Sónia Trópicos, esse alias artístico que tanto fica no ouvido – é no mínimo interessante de analisar. Vinda de um background de design e ilustração, a artista natural da Margem Sul começou a fazer brincadeiras como produtora com a ajuda da iniciativa Beats by Girlz em 2020, ano em que começou a publicar os seus primeiro sons no SoundCloud

A história podia ter ficado por aí, mas, na verdade, isso foi apenas o início. Em 2021, Sónia Trópicos foi a vencedora da open call Pulsar, um concurso promovido pela Cosmic Burger destinado a mulheres criadoras na área da música electrónica e do qual resultou a criação do seu curta-duração de estreia, Astral Anormal.

No comunicado partilhado com a imprensa, Astral Anormal é descrito como uma “celebração do espectro de emoções humanas no seu pleno”, partindo muito da ideia da emancipação da mulher como motivação para a criação do EP. O resultado é que Astral Anormal soa como se os beats fossem uma pintura – um pouco aquela velha máxima apresentada por Brian Eno, de fundir as duas artes num ponto intermédio –, o desenho de emoções que vão desde a introspecção mais minimalista à raiva mais pujante, perdidas no meio de uma estética kitschtuning, “quase chunga”, como a própria nos indicou, que tem a proeza de juntar, de alguma forma, o universo da Margem Sul a uma Alfama gentrificada. Talvez até sejam mais uns novos fados a serem tocados e cantados.

Com o intuito de saber mais sobre este Astral Anormal e entender o percurso ecléctico de Sónia Margarido enquanto artista, o Rimas e Batidas sentou-se à conversa com ela num café na Graça para trocar uns quantos dedos de conversa numa tarde quente de Verão.



Queria começar a entrevista a tentar perceber como chegaste aqui. Vieste de um background em design e ilustração e em 2020 começaste a publicar sons teus no Soundcloud. De onde surgiu o bichinho para começares a produzir música?

Então, eu acho que sempre tive interesse em música no geral. Sei lá, já guardava sons, já tinha algumas referências, já apanhava coisas e pensava em construções musicais, mas acho que nunca tinha assim grande representatividade. Ou seja, nunca vi muitas mulheres produtoras, acho que nunca me tinha ocorrido que eu podia [produzir]. Além de que o meu background não sendo musical, achei que tinha de ser super boss da música para fazer alguma coisa. Em 2020, mesmo antes da pandemia, descobri um grupo de miúdas que se chamava Beats by Girlz, e eram aulas grátis ou com donativos, e tu podias ir às aulas e aprendias a mexer no Ableton. Comecei a ir às aulas, antes já tinha visto uns tutoriais no Youtube, comecei a aprender as cenas de forma autodidacta, e basicamente fui construindo as coisas e tudo o que aprendi da música, depois apliquei… Fui aplicando.

O teu primeiro som, a “Solta”, foi incluída pelo El Nando numa das suas TURBO Sessions para a Vodafone FM. Como é que isso aconteceu? Deu-te motivação para continuar o percurso?

Eu acho que sim, porque eu não estava à espera. Eu soltei aquilo [a “Solta”] e fiquei surpreendida e super grata, até lhe mandei uma mensagem. Acho que me estimulou, mas nunca pensei que pudesse vir a fazer um EP ou assim. Mas deu-me vontade de continuar a fazer sons, acho que sim. Foi bué fixe, tu não estás à espera, não é? Gostei muito.

Isso foi em 2020. Em 2021, participaste na open call Pulsar, um concurso promovido pela Cosmic Burger destinado a mulheres criadoras na área da música eletrónica, e acabaste por vencer. Como é que tudo isso aconteceu?

Na altura, eu já estava a pensar fazer um EP porque já tinha alguns sons produzidos e queria continuar a produzir mais e apresentar um trabalho mais consistente, e uma amiga que também entra no álbum, a Labaq, mandou-me o concurso e disse, “Olha, devias participar nisto, porque acho que é a tua cara”, e eu participei sem expectativas nenhumas. Fiquei surpreendida quando fui selecionada, acho que me fartei de chorar na altura, fiquei super emocionada. Além de que depois também estava a passar por uma fase super transformativa na minha vida e esse processo veio acrescentar mais a todas as coisas que estavam a acontecer. Foi surpreendente, mas acho que foi o que eu precisava para tornar a cena um bocadinho mais séria.

Que faixa submeteste à open call [Pulsar]?

Submeti… Já não me lembro bem quantas eram [para submeter], mas acho que submeti duas ou três. Submeti a “Barca”, que é um remix da “O Pastor”, dos Madredeus, foi a “Tarraxinha Malandra”, que é um remix da “Chiquinha Tarraxinha”, e a “Cravos”, que está também no EP.

Da tua vitória neste concurso, resultou a criação deste teu EP de estreia, Astral Anormal, que dizes no comunicado de imprensa ser a “celebração do espectro de emoções humanas no seu pleno”. Como é que foi enquadrar todo esse espectro de emoções num só projecto?

Então, eu acho que, por estar a passar por essa fase de vida bastante transformadora, em que estavam a acontecer muitas coisas ao mesmo tempo, pensei que havia várias coisas que eu estava a sentir na altura, e que já era uma coisa que venho a pensar há algum tempo, que é: tu olhas para um sentimento e tendes a catalogá-lo como uma coisa boa ou uma coisa má, e eu acho que nem sempre tem de ser assim. Às vezes, há coisas que tu tens dentro de ti que podem estar a existir ao mesmo tempo. Do género, houve uma altura, uma vez ou duas, que eu estava a rir tanto e comecei a chorar logo no segundo a seguir, de tristeza, quase como se tivesse apanhado boleia. Não sei, acho bonito navegar por esses sentimentos e, como estava a navegá-los na altura, quis transportar isso para a música porque achei que seria um apoio para os beats e para as referências que queria explorar. Achei que daria um toque fixe ao EP.

Essas transições imediatas entre emoções ouvem-se no EP. A “Além da Dor” e a “Mar Alto” são faixas contemplativas, enquanto a “Vadia Metálica” soa a raiva. É muito punk. Como é que foi transmutar essas emoções para os teus beats?

Basicamente, cada uma delas tinha uma intenção. Com, por exemplo, a “Além da Dor”, eu já queria que fosse uma coisa mais sentimental, e havia uns samples que queria explorar, e depois consegui perceber que aquilo dava a intenção que queria, que era uma coisa mais melódica, mais… Pá, eu acho que, para mim, é das minhas músicas favoritas porque é bem triste. Acho que é aquela melancolia que os portugueses têm de ir abaixo, de ir ao fundo do poço, mas depois tem aquele beat que te vai puxando para cima, que era o que eu estava a precisar na altura. Depois, a “Vadia Metálica” era uma coisa que eu queria que fosse mais experimental, e que fosse uma cena que tivesse várias referências portuguesas. Não se nota bem, porque são subtis, como por exemplo, tem uns adufes lá para o meio, e queria explorar essa cena do conceito de vadia porque vadia é uma cena meio negativa. Eu lembro-me que a minha avó me chamava vadia por andar, sei lá, fora de casa, ou alguma coisa assim. Então, queria também fazer essa brincadeira com a palavra vadia e com a própria intenção e misturei coisas portuguesas com uns beats mais fortes. Foi a música mais experimental nesse processo. E a “Mar Alto”… A “Mar Alto” foi uma música que deu imensas voltas. Não tinha nada a haver no início. A minha base de partida, e eu nem sequer gosto muito de contar isto porque acho que depois puxa um pouco para baixo a música… O poema da “Mar Alto” foi um poema que o meu avô me ensinou, que é um ditado popular, e o meu avô desenvolveu alzheimer nos últimos anos, e eu trocava esse poema com ele para ver qual era a evolução da alzheimer até ele não me conseguir dizer isso de volta. E então, pronto, foi um bocado homenageá-lo também a ele. Na altura [no início], tinha um sample de guitarra portuguesa horrível, e pedi ao meu amigo, o Renato [Sousa], para fazer um sample – e ele fez – e acho que a música se transformou a partir daí.

A “Além da Dor” lembrou-me algo, esteticamente, que o Pedro da Linha poderia fazer. É muito onírica.

É assim, todos os produtores que estão a aparecer agora e que já são consistentes na cena portuguesa inspiram-me. O Pedro [da Linha] é uma dessas pessoas porque acho que são pessoas que também exploram os sons lusófonos, os beats. Parecia que a música pop e a electrónica, em Portugal, no geral não era muito desenvolvida, e eles vieram abrir esses caminhos. Essa [a “Além da Dor”] em especial não foi inspirada em nenhum deles, mas acho que se calhar como as referências podem ser parecidas, acaba por ir ao encontro. No entanto, várias pessoas me disseram, na altura, que parecia Kate Bush. Várias pessoas diferentes. Eu não acho, mas várias pessoas disseram!

 Bem, não pensei nisso a ouvir, mas-

A “Running Up That Hill”!

Isto é culpa de Stranger Things?

Não! Já me disseram isto antes. Disseram-me isto quando eu mostrei, foi quê, em Março ou assim. Mas agora Kate Bush voltou em força por causa disso, é verdade.

Falaste aí da questão dos sons lusófonos e não querendo necessariamente encaixar a tua música num estilo ou movimento, alguns momentos do EP e outra das tuas faixas, a “Barca”, lembra-me os novos fados cantados por um Pedro Mafama ou Rita Vian. Essas explorações sonoras são uma influência para ti?

Eu acho que sim. Eu gosto muito de ver outras pessoas a fazer esse processo porque eu acho que vem tudo do mesmo sítio. Tu tens o fado, que é uma cena que, apesar de ser uma [cena] grande e dar para várias abordagens, estava a precisar de se adequar basicamente, sei lá, às novas tecnologias, às novas referências, a todo o panorama que está a ser transformado em Lisboa. Então, acho que ter pessoas a fazer isso me inspirou. E acho que todos sentimos um bocado essa necessidade de lavar um bocado a cara e trazer uma nova abordagem ao fado, que é uma cena bué fixe que a gente tem, mas acho que tem potencial para ser explorado.



A “Recreios de Vampiros”, com João Pissarro, é um bom exemplo disso. Parece que estamos numa Alfama a contemplar um passado que não é assim tão passado. E às vezes penso nos “novos fados” como uma gentrificação simpática da cena do fado [risos].

Essa música com João Pissarro foi inspirada na “Os Vampiros” do Zeca Afonso. Ou seja, tem várias alusões a esse conceito-

E o poema cantado é muito-

Interventivo.

Exactamente. É electrónica de intervenção.

Exacto. E eu acho que foi bué engraçado por causa disso. Eu tinha a minha abordagem electrónica, de explorar essa cena portuguesa, e ele trouxe essa cena do Zeca Afonso, e foi uma fusão engraçada por causa disso.

Ainda sobre o teu EP, a “Safadinha Triste”, a música com a Labaq, chamou-me à atenção porque é muito dançável. Lembra-me algo que a Marina Sena podia fazer. Como é aconteceu a colaboração com a Labaq e como foi criar essa faixa?

A Labaq é uma pessoa que, para mim, é super especial porque a gente já trabalhamos juntas há muito tempo. A gente começou por fazer videoclipes juntas e depois acabámos a fazer música e a eu mostrar-lhe as minhas coisas e ela, pronto, mandar-me o concurso [Pulsar], etc. Então, para mim, gostando imenso do trabalho dela, perguntei-lhe se ela não gostava de participar no EP, e ela disse logo que sim. E a referência que eu lhe dei foi uma coisa que fosse tipo uma safadinha triste a cantar, estás a ver?

Que é o título da música [risos].

Ya, que acabou por ser o nome da faixa. Tipo, do género, alguém que está um bocado na merda, mas que está a tentar seduzir ao mesmo tempo [risos]. Epá, e ela depois fez essa letra e esse som, aplicou a voz dela, e pá, acho que transmitiu completamente as palavras-chaves que eu lhe mandei. Pronto, foi um processo bué engraçado. Foi três trocas de e-mail e aconteceu.

É um highlight do EP e transmite bem essa sensação de safadinha triste.

É, estás a abanar um bocadinho a raba, a dançar, e a chorar. É um mood. [Risos]

Falaste já nesta conversa da “Cravos”, uma faixa que tinhas publicado em 2021 no teu SoundCloud, que, entretanto, surgiu no EP com a colaboração de um artista chamada AYAS. Sentiste que fazia sentido criar uma nova versão da “Cravos” para o EP?

Eu não senti necessidade de criar [uma nova versão da “Cravos”], mas aconteceu. Basicamente, em Fevereiro eu era para ter ido a Maiote, que é uma ilha ao pé de Madagáscar, e ia estudar um conflito local – porque aquela zona é uma colónia francesa, tem muitos refugiados, pessoas que não têm documentos nenhuns, etc. Entretanto, aconteceram porcarias na minha vida [risos], as coisas mudaram de rumo e não pude ir. Mas um amigo meu foi e conheceu lá o AYAS. Ele vive lá em Maiote, e faz rap, e entretanto, eu entro em contacto com ele via esse meu amigo e ele fez acontecer. Eu quis-lhe dar o beat e quis incluí-lo. Foi quase um encontro que nunca aconteceu, e pronto. Não foi uma necessidade [fazer uma nova versão da “Cravos”], mas foi uma coisa que acabou por acontecer por essas circunstâncias.

A adição do AYAS distingue muito a versão do EP da versão do SoundCloud. É uma versão muito mais punk.

Ya. Acho que ele tem uma abordagem bué… Não sei, tem bué força. Curti bué da voz dele e, pronto, quis também o incluir para lhe dar esse boost.

O teledisco da “Mar Alto” chamou-me à atenção pela sua estética e pelo imaginário que pretendia transmitir. Como é que foi trabalhar com o Pedro Estêvão Semedo na criação do videoclipe?

Então, eu já conheço o Pedro há muitos anos e já trabalhámos em vários videoclipes. Ele nunca tinha feito um vídeo para mim, mas, como éramos muito próximos, ele conhecia a minha linguagem, a minha estética. Conhecia as minhas referências. Conhecendo muito bem o trabalho um do outro e eu tendo já ajudado com direção artística, com produção e outras coisas, acabou por ser natural ser ele a pessoa que fosse fazer o vídeo. Tanto ele como o resto das pessoas acabaram por ser assim porque são tudo pessoas próximas que eu conheço e com quem trabalho já nessa área. Montei um mood board e acho que tanto ele como o resto da equipa acabaram por perceber exatamente o que é que eu queria. Foram dois dias divertidos, porque houve bué motas e bué poeira [risos]. Foi fixe.

E o que é que pretendias transmitir com o videoclipe da “Mar Alto”? Tinhas alguma coisa pensada ou foi só algo mais pelas vibes?

É assim: vibes sempre! Mas tem lá várias referências de várias coisas. Eu, pronto, fui criada na Margem Sul, e então gosto dessa estética — que acho que agora já está um bocado diluída, mas foi a estética com que eu cresci –, de uma cena mais tuning, quase chunga, e quis trazer isso. Depois, também tive algumas referências de um dos meus realizadores favoritos, que é o Alejandro Jodorowsky. Depois, a cena do aniversário… Isto foi tudo uma grande misturada de referências. A cena do aniversário tinha a ver com que eu odeio fazer anos e quis representar isso. Matar o bolo e estar bué triste enquanto toda a gente à minha volta está feliz. Acho que acabou por bater tudo uma coisa um com outro apesar de ser um grande mix de coisas.



Gosto muito do [Alejandro] Jodorowsky. O The Holy Mountain [A Montanha Sagrada] é grande fritaria de filme.

Então, as referências são daí! São meio subtis, mas ya.

Toda essa estética que referes é um bocado kitsch, de certa forma.

Ya.

É cool apresentar-se de forma kitsch outra vez?

Acho que sim. É bué fixe tu dares nova cara às coisas.

O [Pedro] Mafama tem o seu quê de kitsch, o David Bruno é extremamente kitsch.

Mas, lá está, é um kitsch assim com um bom gosto.

Quando pensei na cena do kitsch no videoclípe da “Mar Alto”, pensei logo no vídeo da “SAOKO”, da Rosalía.

[Risos] Pá, eu juro! Eu juro que antes de fazer um EP já tinha dito que se algum dia fizesse um videoclipe queria várias motas, queria vários piões. Mas, ya, a Rosalía depois veio e realmente pôs esse cunho, mas, em minha defesa, e eu adoro a “SAOKO”, eu já tinha essa ideia também por causa das referências Margem Sul.

Motomami versão portuguesa!

Exacto! [Risos] 

Agora a Rosalía está a berrar “Saoko, papi, Saoko” na minha cabeça outra vez.

O álbum dela [Motomami] é incrível. É bué fixe. Também é bué experimental e é bué a desconstrução-

O El Mal Querer também já era uma desconstrução também.

Sim. Mas é bué engraçado ver artistas que são pop e que já têm uma carreira arriscarem tanto. Eu acho que [o Motomami] é um álbum que havia a possibilidade de muitas pessoas não gostarem daquilo. 

Além de produtora, no mundo da música, também és DJ. Como é um DJ set de Sónia Trópicos?

O meu DJing ainda está assim um bocado numa fase inicial, apesar de, pronto, como eu disse antes, sempre fiz pesquisa musical. Sei lá, meio que sempre guardava músicas porque sim, sem intenção, então acabo por ter assim já algumas playlists. E o que é que é [o DJ set de Sónia Trópicos]? Eu tento pôr algumas coisas mais experimentais. Gosto muito de explorar várias versões de funk, afrobeat, produtores basicamente lusófonos e, depois, sou daquelas pessoas que vai chafurdar o Soundcloud em busca de versões alternativas de música que gosto. No último DJ set que fiz, acabei com a “Desfolhada” para aí [risos].

É uma boa música para acabar [risos]. A guest mix que fizeste para as Turbo Sessions da Vodafone FM tinha lá uma versão funk de uma música do Lil Nas X, ficou-me na memória isso.

Sim, da “Montero [(Call Me By Your Name)]”, para aí. É isso, lá está, gosto bué de procurar versões alternativas de coisas. Eu não sei se tu conheces, mas há um canal de YouTube que tem versões forró de várias músicas.



Não sabia que isso era uma coisa!

É uma coisa e é incrível! Sou super viciada.

Como é que vais encadeando as faixas no teu set? É algo pensado à priori ou vais pelo mood da cena?

Bem, se for ao vivo, vai um bocado no feeling. Normalmente, vou com uma playlist preparada, mas pode ser mais ou menos transmutável, não é uma coisa muito rígida. Se eu fizer em casa como fiz para a Turbo, já é uma coisa mais pensada, algumas partes com narrativa.

Falaste há pouco da tua relação com a Margem Sul e sei que, artisticamente, criaste uma relação com a cidade de Setúbal. Foi lá onde cresceste?

Eu cresci na Margem Sul, num sítio chamado Jardia, que fica no Montijo, e em Setúbal vivi os últimos cinco anos. Agora estou em Lisboa.

Nesse período que viveste em Setúbal, colaboraste com alguns artistas, como os Um Corpo Estranho, enquanto designer, e chegaste mesmo a fazer a tua primeira exposição a solo em 2020 numa sala da cidade. Que influência é que teve Setúbal — e a Margem Sul — no teu desenvolvimento enquanto artista?

Bom, eu acho que a Margem Sul… Lá está, tu hoje em dia vês mais pessoas a ir morar para a periferia por causa dos preços em Lisboa. Vivendo lá desde pequena, nós sempre fomos um bocado os excluídos, ou seja, a oferta cultural estava toda muito em Lisboa e, então, tudo aquilo que acontecia na Margem Sul era uma coisa muito mais DIY. Tu é que fazias acontecer as coisas dentro das tuas comunidades e em Setúbal senti muito isso ainda. Porque, apesar de ainda estar dentro da Margem Sul, não estando aqui na linha — estamos mais para dentro, quase já junto do Alentejo –, acaba por ter um nicho bastante forte em que as pessoas se apoiam imenso e convidam umas às outras para os projetos. Eu sempre fui uma pessoa do DIY e fazer as coisas acontece. Foi fixe, porque a comunidade lá é bué supportive.

Ou seja, isso ajudou-te a encontrar um espaço para evoluíres enquanto artista?

Eu acho que sim, porque as pessoas ao saberem que tu tens um projecto ou que fazes certas coisas, também depois te desafiam a isso. Por exemplo, a exposição a solo não era uma intenção minha, mas fui desafiada pelo Gabinete da Juventude [da Câmara Municipal de Setúbal], e acabou por ser uma cena super fixe que aconteceu. Acho que ficamos uns para os outros e estimamos uns aos outros, e isso ajudou a desenvolver.

Numa conversa recente que tive com A garota não, ela falou-me da quantidade de artistas talentosos que surgiam em Setúbal, mas que não tinham chance de emergirem porque Setúbal “tem um hype musical fraco”. Que é que achas que falta para haver mais olhos a olhar para Setúbal como um lugar cultural efervescente?

Essa pergunta é muito boa. Para mim, por acaso, sempre foi uma incógnita como é que não havia mais pessoal em Setúbal a sair, e sempre achei que era por causa dessa proximidade não-próxima com Lisboa. Porque, imagina, tu tendo concertos, se calhar não te vais deslocar até Setúbal para ir ver um concerto que não conheças já à partida. Mas, não sei, acho que Setúbal tem bué talento. Mas depois acho que há artistas que puxam artistas, como por exemplo A garota não. Tenho uma paixão por ela, adoro-a. Acho que ela é uma pessoa que realça muito isso, traz as pessoas com ela, acabam por ter mais visibilidade e acho que depois um puxa o outro. Pronto, acho que com o tempo isso também se vai diluindo. Também com esta expansão, com esta descentralização da capital, acho que possa talvez acontecer.

Essa cena das deslocações… Não ajuda que não haja transportes para voltar depois da Margem Sul sem ser o automóvel às horas que termina um concerto. Ou para voltar de Lisboa para a Margem Sul.

Exactamente. Há vários empecilhos para fazer essas coisas. Como, por exemplo, tendo também uma cena mais cultural aqui [em Lisboa], tens mais pessoas interessadas aqui que vão se preocupar em ver coisas só porque sim para descobrirem. Enquanto na Margem Sul, o pessoal acaba por fazer coisas mais seguras, que as pessoas já conhecem, dentro de um nicho mais seguro. Coisas tipo os transportes acabam por ser realmente empecilhos que não favorecem muito isso.

Essa parte da programação lembrou-me de uma história que a Cátia [A garota não] me contou – ela trabalha na divisão de Juventude da Câmara de Setúbal – sobre ter de programar um evento para o Fórum Luisa Tódi, em Setúbal, e tinham a obrigação de esgotar a sala. E para isso as apostas têm de ser seguras para que isso aconteça.

Pois, exacto. Mas eu acho que também já devíamos ter ultrapassado essa fase. Claro que tu tens de ter nomes para vender o cartaz, não é? Mas acho que tu tens de ter uma cultura de obrigar as pessoas a descobrirem coisas e não estarem sempre no seu canto seguro habituarem a verem as mesmas coisas de sempre. Acho que podes ter um nicho das duas coisas a acontecer.



No início desta entrevista, mencionaste logo o problema de haver falta de representatividade de mulheres produtoras. Num ensaio publicado aqui no Rimas e Batidas, em Abril, falava-se da falta de diversidade nos festivais em Portugal. Em particular, uma secção do ensaio chamou-me à atenção, indicando que, de acordo com o relatório FACTS 2022, elaborado pela female:pressure FACTS, que mede e analisa a presença de artistas consoante a sua identidade de género em festivais de música eletrónica pelo mundo fora, Portugal tem dos piores desempenhos no que diz respeito à diversidade de género nos seus cartazes de música eletrónica. Que mais barreiras se podem derrubar para que esta tendência se inverta?

Há várias frentes. Deixa-me pensar… Que barreiras é que a gente pode derrubar, não é? Para já, acho que as pessoas quando fazem os cartazes, sei lá, há aquela narrativa que tu queres as pessoas que têm talento e que não deves ir pelo género, mas eu acho que isso… Às vezes tens de ter o cuidado e tens que ter o olho de realmente ver quão diverso é o teu cartaz — isso começa a ser uma preocupação. E mesmo para os promotores, que querem produzir os próprios cartazes, acaba por ser benéfico para eles também estar a trazer essa inclusividade. Acho que é bom para todos. Depois, não sei se uma coisa boa também não seria apostar na educação porque acho que a educação em Portugal ainda é muito convencional e muito afunilada, e acho que ter mais pessoas a chegarem-se à frente para fazer as coisas e dar a cara pode ser uma coisa fixe. Como, por exemplo, até no futebol. No último ano, houve muito mais [gente a] falar na seleção feminina portuguesa de futebol do que ouviste falar, sei lá, nos últimos 20 anos — nunca tinhas ouvido falar –, e eu acho que isso se aplica em várias áreas e na música também. Depois, acho que é ir aparecendo pessoas que também consigam desconstruir um bocadinho as cenas. Sendo um país pequeno, nós estávamos sempre habituados ao mesmo e a lugares confortáveis. Imagina, uma mulher quando vai para a música, à partida, já vai ter de ser uma cena meio pop, meio performativa, vai ter que ter um certo tipo de corpo. Ou seja, mesmo tu sendo uma mulher e entrando assim na música, já é uma cena muito fechada. Acho que havendo mais pessoas que se apresentam de formas diferentes, isso também pode ir abrindo caminhos – embora eu acho que falte muito, não é? Gostava de ter uma solução de génio, mas-

Problemas destes não têm solução de génio, infelizmente.

[Risos] Eu acho que teres uma educação que ensine, sei lá, sobre toda a diversidade do que é o ser humano e menos esta educação quase católica que a gente ainda tem, acho que também pode abrir os nossos espectros e isso pode ajudar na forma como consumimos música, futebol, como consumimos qualquer coisa, porque às tantas tu nem sabes que estás aberto a ouvir certo tipo de coisas com certo tipo de pessoas até tu seres exposto a essas coisas.

Mas é engraçado que dizes que existe essa ideia ainda da mulher na música como ter de fazer a música pop, mas depois é consequentemente desvalorizada por fazer música pop.

É um beco sem saída. 

Na altura da Eurovisão, houve discussões nas redes sociais sobre Portugal ter dado os 12 pontos à canção de Espanha [“SloMo”, da Chanel], que era uma canção pop, que não era autêntico.

Que ela estava a vender o corpo e não sei quê, que ela estava a dançar. E com a Anitta agora, não viste? Foi a mesma coisa. Mas eu acho que as pessoas reclamam muito depois também quando têm meio medo assim das coisas a acontecer. É um abanão, estás a ver? Eu acho é que é muita difícil para quem está do outro lado ter que lidar com essas coisas porque estás a desbravar um caminho, não é? Então, é lixado. Eu quando comecei a fazer música, eu dizia que era produtora. As pessoas perguntavam-me se eu cantava, e eu, “não, sou produtora”. Perguntavam-me se eu era DJ. “Não, eu sou produtora!”. Ninguém entendia o que eu fazia porque não estão habituadas a ver mulheres a produzir música, atrás de um computador a fazer música. Onde é que eu queria chegar com isto? Acho que é um bocado ingrato, mas tem que haver sempre pessoas que vão desbravar x caminhos e mexer [com] certas coisas, e hoje em dia acho que ainda temos muitas coisas para desconstruir.

Iniciativas como a open call Pulsar podem ajudar com essa exposição?

Acho que sim — devo muito a eles [à Pulsar e à Cosmic Burger]. Eu ia lançar isto [o EP] de qualquer das maneiras, mas o apoio que eles me deram foi um passo muito maior e sem eles acho que não tinha conseguido chegar aos sítios também que cheguei porque eles ajudaram-me imenso. Essas iniciativas são sempre importantes e acho que também devia de haver mais do estilo. Sabes que, na altura em que eu participei, tive amigos meus a dizer-me: “Ah, mas isso é um bocado injusto, um concurso só para mulheres?” Mas eu acho que apesar de ser uma cena baseada no género, é uma cena que acaba por ser positiva porque, realmente, se não houver essas oportunidades-

É discriminação positiva.

É uma discriminação positiva, exactamente. Acho que são oportunidades importantes.

Entretanto, desde que colocaste cá fora o Astral Anormal, já foste tocar ao Musicbox, em Lisboa, no passado dia 24 de Junho. Como foi essa experiência?

Opá, acho que foi fixe [risos]. Eu sendo uma pessoa que está a produzir estou sempre mais em casa, no computador, a fazer as cenas na minha zona confortável, e, então, o Musicbox foi um bocado uma cena desconfortável, mas pela positiva, porque é o mostrar do meu trabalho e de estar ali num sítio mais vulnerável e eu gosto desse sítio onde estou vulnerável e desconfortável. Não tenho medo de assumir isso e aproveito esses momentos para crescer enquanto artista ou produtora e agarro em todas as minhas inseguranças e tudo o que eu passo nesse momento para depois aplicar e crescer mais. Então, acho que foi uma oportunidade bué fixe, fiquei super contente. Eu sou super exigente comigo e queria que fosse melhor, mas acho que é um processo, não é? Mas curti muito, diverti-me, e o feedback do pessoal foi fixe.

Fica para o fim aquela pergunta meio chata: o que se segue no futuro para a Sónia Trópicos?

Basicamente, quero continuar a trabalhar e a evoluir, porque acho que isto é um início bastante bom, mas acho que ainda tenho muita margem para explorar e muita margem para evoluir. Já estou a começar a pensar num segundo trabalho. Desta vez, gostava de fazer uma coisa um bocadinho mais extensa, uma cena que fosse mais um álbum. Quero acabar de cimentar isto um pouco, ainda gostava de fazer mais um videoclipe para uma das músicas do EP, e quero começar a tocar mais como DJ e estar também mais em palco, não só atrás do computador. Então, é isso, estou a fazer isso, a apalpar terreno, a ver onde me leva, a trabalhar já para dar seguimento.


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