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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/04/2022

Pensar o panorama enquanto olhamos para um novo relatório.

A eterna questão da diversidade (ou falta dela) nos cartazes dos festivais em Portugal

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/04/2022

Nos últimos anos, o tópico da diversidade nas mais variadas áreas tem sido amplamente debatido e analisado pelo mundo fora. É uma discussão muitas vezes polémica, divisiva e reactiva, mas igualmente urgente e incontornável neste percurso que visa criar uma sociedade mais justa e funcional para todos nós.

Como se subentende neste artigo de Teresa Colaço, esta discussão no panorama musical português vai avançando aos solavancos, pontuada por insultos, ameaças e, muitas vezes, o já conhecido blacklisting aos que activamente lutam pelo progresso, apontando, corajosamente, o dedo às organizações e indivíduos que teimam em manter na sombra o trabalho artístico de mulheres, pessoas queer, pessoas racializadas, imigrantes e não só. 

Isto não significa que existe um esforço consciente e calculado de bloqueio das plataformas e oportunidades a esses artistas. No entanto, existe, de facto, uma falta de solidariedade e dever social que resulta na sua manifesta exclusão de cartazes e line-ups pelo nosso país fora.

Sendo um meio tão pequeno e estratificado, é também raro haver a solidariedade necessária entre artistas para alterar este cenário. O que, convenhamos, é compreensível – é difícil viver da música num país onde a palavra “artista” é usada como insulto, e onde ninguém se quer arriscar a queimar as pontes profissionais que lhes permitem pagar as contas ao fim do mês. No entanto, é através da união de todos os que trabalham neste sector que poderemos formar uma voz forte o suficiente para ser escutada, com a segurança de não colocar em risco a nossa subsistência.

A luta pela diversidade nos cartazes de eventos culturais em Portugal está visivelmente atrasada comparativamente ao ponto em que esta se encontra globalmente, onde a discussão deste tópico é tão comum nas redes sociais, e já teve tanto impacto, que há até quem lhe chame “ditadura do politicamente correcto” – o que, se pensarmos bem, não faz muito sentido. O “politicamente correcto” será o que está politicamente em vigor: um padrão transversal a vários aspectos da sociedade, a várias áreas e indústrias, onde uma pequena fracção da população tem uma probabilidade muito maior de concentrar em si acesso a recursos, privilégios e oportunidades, enquanto que quem não cumpre os requisitos para pertencer a esse grupo não só se vê privado desses privilégios e oportunidades, como ainda se vê alvo de agressões e discriminação por isso – e consequentemente uma maior dificuldade em encontrar estabilidade. 

Têm sido várias as iniciativas a nível mundial que acompanham e impulsionam o progresso da luta por iguais oportunidades na música. Boas práticas como riders de inclusividade entre cabeças de cartaz (e até nos GRAMMYs) são cada vez mais comuns, e quanto mais as normalizarmos mais benéfico será para todo o ecossistema criativo.



Uma das iniciativas a que queremos dar destaque são os inquéritos e relatórios apresentados pela female:pressure FACTS, que mede e analisa a presença de artistas consoante a sua identidade de género em festivais de música electrónica pelo mundo fora, e que publica os seus resultados desde 2013. 

O relatório FACTS 2022 revela que a proporção de artistas mulheres aumentou de 9,2% em 2012 para 26,9% em 2020–2021. A informação referente a artistas não-bináries mostra um aumento de 0,4% para 1.3% entre 2017 e 2021.

Portugal teve dos piores desempenhos no que diz respeito à diversidade de género nos seus cartazes de música electrónica, a par do México e da Rússia.

O relatório deste ano inclui uma secção onde são abordados outros tipos de discriminação onde se incluem o racismo, o capacitismo e o idadismo, como planeiam mapear e analisar melhor essas questões neste contexto e partilham ainda as perspectivas valiosas de artistas que entrevistaram de forma a entender melhor a dimensão do problema. De leitura obrigatória, além das indicações específicas de como melhorar as nossas abordagens consoante o papel que desempenhamos no panorama cultural, para organizadores de eventos e festivais, bookers, artistas, jornalistas e também enquanto membros da audiência. Alguns elementos da organização dos festivais envolvidos neste relatório falam também do impacto positivo que uma curadoria mais diversificada teve, tanto no festival como nas comunidades artísticas locais.

Facilitar e democratizar o acesso a espaços, recursos e conhecimento, a formação e sensibilização de staff acerca destas temáticas, a contratação de pessoas das comunidades para fazer curadoria de festivais, noites e eventos, são algumas das medidas fundamentais para que as melhorias não sejam meramente cosméticas.

O apelo que fica explícito é o seguinte: não reduzam a cultura, a arte, bem como todo o seu potencial transformador do pensamento colectivo, a um negócio enraizado numa indústria sem escrúpulos. 



É justamente a partir dessa visão redutora e competitiva que germina a sensação de escassez que nos leva a, instintivamente, proteger aquilo que consideramos ser só nosso, mas que na verdade pertence a todos nós. Qualquer meio artístico se expande e enriquece através da multiplicidade de histórias, culturas e percursos individuais e colectivos que o compõem – negligenciar essa diversidade é assinar a certidão de óbito desse meio.

A ausência de consideração e respeito por essa incontornável pluralidade cultural reflecte-se depois em ambientes menos acolhedores e seguros para uma grande parte do público que pretende frequentar esses eventos.

É difícil ignorar a injustiça – e a hipocrisia – especialmente quando a maioria dos géneros musicais mais populares e rentáveis são criados, ou largamente influenciados por culturas e pessoas marginalizadas, que por demasiadas vezes se viram privadas dos devidos créditos e lucros das suas criações.

O apagamento histórico e cultural do contributo de mulheres, pessoas racializadas, pessoas queer, pessoas neurodivergentes, etc, é de longa data, e é da responsabilidade de todos nós mudar essa narrativa – especialmente quem se encontra em posições de maior poder e influência.

É uma perda imensa para a música, uma linguagem riquíssima e antiquíssima, retirar-lhe a sua capacidade única de nos conectar independentemente do nosso percurso e lugar na sociedade, de gerar sustento para todo o tipo de comunidades – especialmente aquelas excluídas ou em constante situação de precariedade no mercado de trabalho tradicional por não se encaixarem nos rígidos moldes impostos pelo mesmo. Acima de tudo, do seu poder de expandir a nossa consciência coletiva, de reforçar o nosso sentimento de pertença, de transcender as barreiras que criamos entre nós fruto de um condicionamento individualista que contraria a nossa própria natureza.

Apesar deste tópico continuar a ser menosprezado tanto pelos meios de comunicação com maior alcance como por muitos agentes culturais de grande influência, felizmente existem cada vez mais núcleos a tomar a iniciativa na mudança deste paradigma. Têm surgido eventos que, além de serem uma lufada de ar fresco em termos de programação e de criarem uma plataforma para divulgar o trabalho de um variado leque de artistas, oferecem ainda um espaço seguro para a sua audiência e uma energia inigualável. 

Eis alguns dos colectivos, projectos e eventos que têm line-ups diversificados, ou que envolvem e cuidam da sua comunidade e que valem bem a pena acompanhar e apoiar: Plano V, Dengo Club, Vogue PT Chapter, Kebraku, Mina Suspension, Arvi, Tremor, Troublemaker, Kaptcha, Maythey, a Festa da Gigi, Pyrats, Príncipe Discos, Arcana, Moonshine, Rama em Flor, the Blacker the Berry, Rádio Quântica, Planeta Manas, Juicy Porto, Lovers & Lollypops, Palco Ruc, Mãe Solteira Records, Na Tchada, MaracujáliaFestival Impulso – faltarão certamente mais uns quantos, e esperemos que muitos mais surjam entretanto. 

E lembrem-se: enquanto audiência, a decisão de onde investir o dinheiro e a atenção também é determinante para esta (r)evolução cultural.


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