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Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 05/05/2023

Uma música que se faz de memórias e feridas mal resolvidas.

Silk Nobre: “Quis fazer zoom na década de 70 e ir buscar a questão dos retornados que nunca foram, só vieram”

Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 05/05/2023

Silk é naturalmente Nobre. Nobre de nascimento e de postura. Nobre porque honesto. Nu – como se mostra ao mundo na capa do seu primeiro disco em nome próprio e real: Diz à Mãe que está tudo bem. A frase escolhida para o título tem todo um mundo dentro, feito de memórias doridas, de experiências de vida, de encontros e desencontros. E de uma profunda descoberta identitária. O músico que conhecemos de forma tão exuberante em Cais Sodré Funk Connection, em que vestia a pele de um teatral James Brown à portuguesa, parece agora despir tudo e assumir a sua história real como o seu mais profundo retrato. Neste álbum, Zeca e Bonga, o semba e a balada, as cadências vincadas e as palavras arrancadas à história de vida juntam-se num trabalho muito singular. Tão singular quanto Silk Nobre, um homem que foi ao fundo de si mesmo e veio de lá com uma história para cantar.

Conversámos com livros à volta, na Ler Devagar, na LX Factory, nesta Lisboa que Silk ama e onde chegou, já lá vão uns anos, só com a roupa que trazia no corpo. A tal que agora despiu.



Então e essa cachupa, como é que correu esse momento comunitário em que apresentaste este teu novo álbum?

Acho devia ser sempre assim, nos bastidores dos concertos [risos].

Sempre assim?

Sempre assim! Cachupa, família, amigos, improvisação, malta a tocar rabeca Travadinha. Apareceu lá o Vitaleno, que está agora a fazer um trabalho sobre o Travadinha e que visitou a casa da mulher do Travadinha, em Cabo Verde. Nós já nos conhecíamos há algum tempo e ele sabia o meu pai era grande um grande amante de Travadinha e que ia estar presente na cachupa. Então convidou um guitarrista grego, que apareceu no final do lançamento, e tocaram Travadinha, Papa Joachim, as pessoas começaram a cantar, a improvisar… Foi mágico!

Estavas a dizer que antes dos concertos devia de ser sempre assim, ou até mesmo na sessão de gravação de um disco, não é? Conta-se muito a história de que, para a Amália, uma boa sessão de gravação começava com os músicos a chegarem ao estúdio aí por volta das 10 horas, ela chegava com um mini-fogão, tachos e ingredientes, e fazia uma feijoada. Depois comia-se, contavam-se histórias, bebiam-se uns copos e lá para as 3 da manhã, se tudo corresse bem, começava-se a gravar. Eu acho que isso depois sente-se na música. E é exactamente por aí que eu quero começar esta conversa: ouvindo o teu disco, o que se percebe é que isto não são só X pessoas a gravarem — e hoje em dia, se calhar, já não se grava como antes, com toda a gente dentro do estúdio ao mesmo tempo —, este trabalho está carregado de histórias e de experiências e entende-se bem que tem uma bagagem que não é só musical e não é só poética. Há ali qualquer coisa de emocional que é muito profunda neste disco. É uma leitura correcta?

Eu ouço o disco todos os dias por motivos diferentes. Vou lá buscar… É como se conversasse com uma pessoa diferente e cada música representa um sentimento, uma história, uma personagem. É mais do que… É uma história pessoal. O zoom que eu quis fazer foi na década de 70 e ir buscar a questão dos retornados que nunca foram, que só vieram. Havia bastantes e tu conheces esta história. Falar sobre a ponte aérea e dizer que as pessoas traziam uma bagagem cultural é um eufemismo, porque vinham com a mão no bolso, sem nada.

Eu falei em bagagem emocional, na verdade. É mais emocional do que…

Exactamente! Vinham sem nada, mas com uma bagagem emocional, uma cultura, uma vida… Lembras-te que se ouvia jazz em Moçambique e em Angola? E ouvíamos James Brown a partir das rádios da África do Sul. E Cabo Verde também tem aquela ligação com o Brasil. Havia uma cultura que, na altura, Portugal não tinha. Essa bagagem, de repente, entrou na sociedade portuguesa, mas entrou com pessoas que vinha com aquele olhar… Lembro-me de fotografias de malta quando chegava ao aeroporto, com aquela esperança que tu hoje vês nos refugiados que chegam da Ucrânia — cansados, cansados, mas têm aquela esperança nos olhos… “Escapámos com vida! Vamos começar num sítio diferente.” Essa esperança estava aqui. Esta fotografia na capa do disco é ainda lá. Eu estou na barriga da minha mãe. O meu pai tirou-nos esta foto já nos últimos anos, já a perceber…

Esta foto foi tirada quando?

Eu nasci em ’71 e nós chegámos a Portugal em ’79. Portanto, esta foto é tirada em ’70/’71.

E foi tirada onde?

Búzio. A última zona em que nós estivemos foi Lichinga, em Cabo Delgado, onde havia ataques terroristas há algum tempo.

Tu tens memórias desse tempo? Conta-me um bocadinho da tua história de vida.

Os meus pais casam em Cabo Verde, ambos com 24 anos. Apaixonaram-se no liceu.

Ambos cabo-verdianos?

Ambos cabo-verdianos. A minha mãe engravida e eles casam. O meu pai, na altura, trabalhava para o estado português.

Ele fazia o quê?

Era administrador. Ele foi colocado em Moçambique. Havia a tradição de muitos cabo-verdianos… Havia um liceu muito bem desenvolvido em Cabo Verde e tu consegues ter a noção de que Cabo Verde tinha alguma cultura. O professor do meu pai era o Baltasar Lopes da Silva, que era um tipo formado em Coimbra, que era bem cotado.

O teu pai tem um cargo na administração pública e é colocado em Moçambique?

Sim. E ficou lá 20 anos.

O nome que era dado a essas pessoas era “integrados”, não era?

Era. Havia uma espécie de… Por serem mistos, faziam a ponte com a comunidade. Eram os intermediários do estado português para com as comunidades. Eles faziam essa ponte. Nasceram seis filhos. A Luciana nasce em Cabo Verde, que é a mais velha, e o resto nasce em Moçambique.

Tu nasceste em Moçambique e sais de lá aos oito anos?

Exacto, com oito anos, em 1979.

Que memórias tens então desse tempo e dessa vida ainda em Moçambique?

É a felicidade total. É a infância, o andar descalço — eu nunca usava sapatos. Era o fugir de coisas que nos apertavam, o trepar às árvores, a escola traumática — sentávamo-nos no chão, cantávamos o hino… São os bombardeamentos em casa, é o fugir. No dia em que estavam a bombardear a nossa casa, a minha mãe diz que nós corríamos, mas não saíamos do mesmo sítio, tal era o medo. Ela tem esta imagem clara. Ou então, quando havia bombardeamentos, o escondermo-nos debaixo da cama ou dentro de um armário. Temos galos e mazelas. Mas também temos aquelas histórias fantásticas, das cobras, de conviver com a caça, com a zebra e com a girafa. São oito anos em África completamente… Wow! Estás a ver?

Eu sei que aos oito anos ainda não tens uma consciência do que é a tua identidade muito formada. É uma coisa que acontece naturalmente mais tarde. Mas olhando retrospectivamente para esse tempo, como é que alguém com a experiência numa família destas se entendia? Era uma família portuguesa, uma família cabo-verdiana, uma família cabo-verdiana em Moçambique, uma família colonial? Como é que vocês se viam?

Como milhares de portugueses e cabo-verdianos, era uma família que tinha encontrado o paraíso em África. De repente Moçambique era o El Dorado, em que havia tudo — cultura, dinheiro, avenidas lindas, mulheres bonitas… Toda a gente descreve a fase de ouro de Moçambique.

Havia grandes pintores.

Havia!

O Malangatana, que eu conheci.

O Malangatana! O Guedes, um artista plástico que tem um design muito engraçado e inspirou um dos cartazes do “Back to Africa”, o single. A cultura macua, os escultores, os macondes. Não havia bandas, eram grupos de baile. Ou seja, as pessoas juntavam-se à volta de um grupo de percussionistas e não havia bandas, a malta dançava. Era a cena do marrabenta, mas depois havia a cena tribal, que era uma maravilha. O único pattern que eu sei tocar numa conga é de Moçambique e eu não sei de onde é que ele vem [risos]. Eu pego numa conga e faço aquilo automaticamente, é uma coisa que sai, estás a ver?

Está no ADN.

Está-me entranhado. Exactamente.

E essa felicidade de quem cresceu no paraíso, de repente muda radicalmente, em ’79, quando vocês regressam, ou não?

Muda em ’74. Eu tenho uma memória da noite do 25 de Abril, porque era o aniversário do meu irmão. Houve ali uma noção de que as coisas iam mudar.

A notícia chegou lá imediatamente?

Chegou imediatamente. E a minha mãe ansiava por isso. Ela estava farta daquele domínio que existia, que era castrador. Sentia que as pessoas não tinham oportunidade nenhuma. A minha mãe era professora do ensino primário e tinha contacto com a população. O meu pai também — tinha contacto com a população enquanto administrador. Eles sentiam que havia uma grande vontade de mudar. Mas quando nós saímos de lá, tivemos de renunciar a nacionalidade moçambicana para ter a portuguesa. Havia essa cisão e nós tínhamos de fazer a escolha. “Vocês querem viver? Têm que optar.” Isto é-nos colocado pela FRELIMO. “Quem quer ir embora, renuncia a nacionalidade moçambicana, escolhe a portuguesa e tchau.”

Há relatos de que a FRELIMO faz, historicamente, uma distinção entre os portugueses. São bem-vindos para ficarem, mas aqueles que exerceram algum tipo de poder poderiam vir a ter problemas.

Exactamente.

Havia essa ameaça que, aliás, não era assim tão velada quanto isso.

Não, não.

Foi muito explícita.

Foi muito explicita. Foi nessa altura que encontrei o gigante Manjacaze, nos últimos dias em Moçambique, em Lourenço Marques. Encontro um gigante a sair de um jipe Land Rover — um homem de 2,45m. “O que é aquilo? É um gigante!” Encontrei esta personagem que tinha um manager português e o exibia em feiras. Eu e as outras crianças íamos ver e cumprimentávamos, fascinados, a comer gelados.

Lembro-me das notícias sobre ele.

Esta música, “Azul Terylene”, eu dedico-a ao gigante Manjacaze, que usava uma balalaika azul terylene, que é a cor da esperança e conta a história de uma semente que cai em Moçambique, que faz nascer um gigante que é a democracia. Era essa esperança. Eu projecto no gigante essa ideia que o povo é que é o gigante. “No chão de Moçambique caiu uma semente, cresceu até ao céu e nasceu o Manjacaze / De coração gigante…” É uma homenagem, também, a essa parte, nesse zoom que eu faço na década de 70. Mas tu percebes que era Sol de pouca dura. Quando chegas cá, levas com uma bofetada passados alguns meses, porque não tens onde dormir — a família foi dividida em casas de três tios; as miúdas ficam numa casa, os rapazes noutra e os meus pais noutro sítio. Há uma separação da família. Esta família que estava aqui nesta foto, unida, é separada por causa da guerra. Começa uma história de…

Na verdade, é estranho: separam-se por causa da paz, não é? A guerra manteve-os juntos lá, mas ao virem para Portugal é aí que a separação acontece.

Exactamente.

É quase um paradoxo.

Há esta música, “Eles Diziam”, que já teve outro nome. Era “Vai Para a Tua Terra”. O Hernâni Miguel, que foi o meu primeiro manager, disse: “‘Vai Para a Tua Terra’ não! Estou farto de ouvir essa frase! Muda-me isso!” [Risos] Chama-se “Eles Diziam” porque conta a história de quando nós chegámos a Lisboa. Eu estou com a minha família e íamos visitar as minhas tias que viviam em Almada — a mãe do Carlão e do João. Apanhámos um eléctrico — vivíamos ali na Duque de Loulé…

Tu és primo do Carlão?

Directo, sim. A mãe dele é irmã do meu pai. É a tia Nené. Para irmos ter com eles a Almada, tínhamos de apanhar o eléctrico até ao Cais Sodré e ouvia-se: “Preto volta para a tua terra!” Nós não percebíamos o que se passava. “Nós não estamos na nossa terra? Qual é o problema?” Eu tenho irmãos com carapinha, mais escuros. E apesar de Moçambique ser um país muito racista por causa da proximidade com o Apartheid, aquilo era incrível. Os meus pais contam-me uma história de quando chegam a Moçambique, em que entram num hotel e vêem “whites only”. O meu pai e a minha mãe são ambos “cabritos”. Diziam-lhes: “Vocês aqui não podem entrar.” Foi ai que se aperceberam do racismo pela primeira vez na vida, porque em Cabo Verde não há racismo – lá a cor não te define. Mas em Moçambique havia, por causa da proximidade com o Apartheid. Aos 24 anos eles sentem o que é o racismo pela primeira vez. E eu sinto o racismo pela primeira vez quando cá chego e ouço isto. “Vai para a tua terra, preto!”



Tu demoras um tempo assinalável a contar esta história, se pensarmos há quanto tempo tens uma carreira musical. Passas por várias etapas, tens as tuas bandas de funk — tens pelo menos três capítulos nessa feliz história — e também andas por outros projectos paralelos. Mas quase que te guardaste este tempo todo em que tens estado na música para pôr a tua história num disco, que é este Diz à Mãe que está tudo bem.

É. E nem de propósito: porque eles diziam que é um “espiritual negro”, onde eu cresci, nos bancos da igreja baptista a cantar gospel. Foi uma das primeiras igrejas baptistas e tinha uma ligação com o Martin Luther King e os direitos civis nos Estados Unidos.

Mas dirias que há neste disco alguma coisa que tu trazes dessa bagagem que entretanto construíste nos teus projectos anteriores?

Tudo! Toda a base é funk e soul. Mesmo os funanás são funk e soul. É tudo música de intervenção.

Faz-me aí uma visita panorâmica a esse lado da tua carreira. Começas com os Funky…?

Funky Messengers! Com o Theo Pascal… Começa antes, com o Shout — sou fundador com a Sara Tavares e o Dale Chappell. Eu conheço dois americanos que marcam a minha vida, ali com 16 anos. Um era o palhaço profissional que inventou esta coisa do “Dr. Palhaço”, que é o Mark Mekelburg. O outro o Dale Chappell, um maestro que trouxe essa bagagem musical e a exigência também no teatro. A malta juntava-se numa coisa chamada Mocidade Para Cristo, em que juntavam os jovens todos que estavam a querer bazar das igrejas por causa do fato justo, conservador e não sei quê. “A fé tem de ser em acção e isto está-nos a castrar. Temos que abrir as asas.” Então encontramo-nos todos. E há uma história de excelência musical em todas as igrejas com a malta do gospel, porque são muito exigentes e…

Tocam à séria.

Tocam à séria! “Se é para Deus, tem de ser o melhor. Siga!” Eu apanho com essa escola. Nessa altura conheço a Sara Tavares, e estou a cantar no coro de gospel e a dançar hip hop.

Estamos a falar do final dos anos 80?

Estamos a falar do final dos anos 80. Vamos a Cabo Verde numa turné com a Sara Tavares. Tocávamos funk. Só mais tarde é que ela ganha o Festival da Canção. Eu tinha um grupo de dança de hip hop de rua chamado F.D.M. — havia o filme Filhos de Um Deus Menor, nós éramos os Filhos de um Deus Maior. Juntávamo-nos quatro putos, na rua, umas rimas e uns beats… É uma história engraçada. Mas adiante.

Portanto, Shout é o teu primeiro capítulo a sério?

Exactamente. Depois vêm os Funky Messengers, com o Theo Pascal, e já aí era funk e soul. Orlando, Tiago Machado, a Carmen, uma cantora que agora está a fazer a cena dela a solo também, o Elias Kakomanolis… Ali era o centro em que estava já a fervilhar uma cena funk e soul portuguesa. Conhecíamos os Blackout, do Beto Medina e da Kika Santos. Os músicos que tocavam black music conheciam-se todos e trocavam experiências. Gravámos um disco. Depois passa um tempo em que eu decido ir para o conservatório. Pensava, “estou muito verde, preciso de ganhar ferramentas.” A minha ideia era realmente emigrar — ir para Londres ou Estados Unidos.

O que é que estudaste no conservatório?

Teatro e Cinema. Faço dois anos no conservatório que correm muito bem, mas é nessa altura que os meus pais me dizem: “Queres ser artista? Então põe-te a monte!” Ou seja: “Faz-te à vida. Faz-te à estrada. Pega nas tuas coisas e…” [Risos]

Que é para veres como é difícil.

“Queres crescer?” São dores de crescimento, não é? Este disco fala sobre dores de crescimento.

E o capítulo seguinte ao do conservatório é Mister Lizard?

É Mister Lizard, com o Anthony John. Passo dois anos em Londres, depois entro numa companhia de teatro chamada Teatro da Garagem, que me dá uma bagagem literária — a música e a literatura estão sempre unidas na poesia. Nós tínhamos um compositor maravilhoso, que era o Daniel Cervantes, completamente desconhecido e tinha uma banda de rock que fazia as bandas sonoras para as peças de teatro. E as peças eram muito únicas e maravilhosas. Eu cresço como actor. Começo a perceber como é que se diz um texto, como é que se analisa um texto, o que é que é dramaturgia, como é que se faz uma peça de teatro, o que é que são capítulos. Começo a estudar os gregos, Odisseia. Começo a perceber o que é uma ordem aristotélica para um trabalho com princípio, meio e fim. Começo a perceber como é que se conta uma história e começo a ganhar ferramentas para poder contar a minha própria história. Tudo no teatro, que foi a minha casa durante 12 anos, em que tenho um salário mensal e me dá uma estabilidade enorme para poder crescer. E há uma família que se cria ali. Eu gosto desta coisa da família, porque nós não fazemos nada sozinhos. Essa companhia do Teatro da Garagem permite-me crescer como performer. Eu junto a cena da dança à do teatro e do speech… “Espera aí! Estou a começar a ganhar aqui alguma coisa!”

Eu ia exactamente perguntar-se sobre isso numa questão que tinha aqui planeada e que metafóricamente é muito forte: pode-se argumentar que nesses projectos — Funky Messengers, Mister Lizard e um bocadinho também em Cais Sodré Funk Connection, com aquela coisa dos fatinhos — tu também estavas ali a representar um papel, mas tu aqui… Tu estás nu neste disco.

Sou um artista nu. Completamente. Sabes que toda a gente tira fotografias a um artista quando ele está no palco, mas para ganhares a confiança de um artista para lhe tirares uma foto destas… Tem de haver uma intimidade. Aqui ele está a nu, como veio ao mundo.

Não há máscaras, não há adereços, não há nada. Não há mentira. Não há ilusão.

É. Aqui sou eu. Eu tinha vontade de fazer isso já há muito tempo e finalmente… Estou tão feliz. Mesmo os meus irmãos, os meus pais, os meus amigos estão super-orgulhosos, estão super-contentes por isto. Dizem: “Isto é uma coisa tão bonita.” As pessoas identificam-se com estas histórias, com as danças, com os momentos das festas no Areeiro, nas barracas, o pessoal com uma grande narsa… A primeira vez em que eu ouço esta música que está no CD, a “Tio António” — “Tio António quando trabalhava nas obras de uma plantação que pertencia a um…” Ele levou com um pau nas costas. O pessoal ria-se com esta história do escravo que tinha levado com um pau nas costas. É no Areeiro com amigos – a Cachuca, o Miguel Sobra, o Sérgio Gomes, o Rui Pinto, malta que dançava e que pertencia ao Shout — que ficávamos a dançar até às cinco da manhã, a beber jolas, a divertirmo-nos… As pessoas dizem: “Velhos tempos, que maravilha.” Os tempos do África Tentação, do Paulo Flores, do Bonga, daquelas festas africanas todas malucas. Esse tempo já foi. Esse tempo está ali. É um zoom que eu quis fazer, por exemplo, com a “Sucrinha”, que parece que estou a brincar com o pitch do vinil e a voltar ao passado.

Nesse projecto pré-Silk Nobre, acho que é justo dizer dizer que Cais Sodré Funk Connection é um capítulo muito, muito importante.

Muito.

Tenho de te fazer esta pergunta: porque é que chegou ao fim a tua participação nesse projecto?

Claro. Havia histórias para contar em português e em crioulo. Mas uma parte deles queria manter-se no inglês e na cultura anglo-saxónica. Alguns fizeram isso com Fogo Fogo, fizeram o seu caminho. Eu queria fazer esta fusão que pudesse viajar com esta dimensão, em que podemos ser aquilo que nós somos.

Nas entrevistas com bandas inglesas invocava-se muitas vezes, nesses momentos de decisão, a expressão “diferenças artísticas”. É um bocado isso que me estás a descrever, não é?

Não só. Acho que também tinha chegado a altura de contar esta história. Porque a cisão não acabou o namoro, a relação continua. Falamo-nos e existe uma…

A parte pessoal está intacta.

Está absolutamente intacta. O que interessava era eu focar-me nisto.

Então há um momento em que tu paras e dizes: “Ok, esta história de Cais Sodré chegou naturalmente à sua conclusão. E o que é que eu vou fazer agora?” É aí que estas memórias todas te assaltam?

Já lá estava tudo, antes. Eu queria mais. Não bastava fazer o copy-paste do James Brown ou da Etta James. Tínhamos que entrar por aí fora. Queria mais. Queria contar outras histórias. Apesar de ter estas características… Eu queria arriscar, sair daquele registo e descobrir outras vozes, ir para fora da zona de conforto. O “Câmera Lenta”? Eu nunca cantei assim. Tu só sabes o que é o amor quando ele acaba. Eu nunca abri assim o meu coração, de uma forma frágil. “Quem é que está a cantar?” “É o Silk.” “A sério?” Alguns dizem mesmo que a “Câmera Lenta” é a favorita deles. Outros dizem: “O ‘Alguidar’ é o hino da paz, para que a guerra acabe.” O mundo como um alguidar é um bocado utópico. Esta ideia de… Há bocado falávamos no Tremor, de irmos para o campo e, de repente, figumos desta multidão no LX Factory. Há um ano isto estava deserto. Nós sentimos a vontade de estar sozinho e isolados. Isso fala o “Alguidar”. Mas essa vontade já existia em Cais Sodré.

Já tinhas essa visão, não é?

Já, já.

Mas há também um momento em que, depois de decidires que está na hora, te perguntas: “com quem vou construir este novo capítulo da minha aventura?” Fala-me dos recursos humanos que tu recrutaste para este projecto.

Quando acaba Mister Lizard e começa Cais Sodré Funk Connection eu conheço, também, gente com quem formo uma banda chamada Funk do Boi. Era a puta da loucura. Nós alugávamos um espaço, íamos para um spot, fazíamos uns flyers e tocávamos umas músicas. Era uma loucura. Tínhamos liberdade total. Aí conheço o Pity, o Tatanka, uma geração de músicos que vem da Linha de Sintra e que vem beber…Cais Sodré é importante porque é o Tiago Santos. Eu cruzo-me com o Tiago Santos no Bicaense e: “Tu estás em Mister Lizard, porque é que a gente não faz uma banda? Tu és o funky master. Porque é que não juntamos uma malta e fazemos uma banda?” Cais Sodré Funk Connection é esta cena, nasce desta fusão de Cool Hipnoise com malta que a gente conhecia. Não havia secção de metais. Era o Tiago Santos na guitarra, o Rui Alves, o João Gomes, o Francisco Rebelo… Começa assim. Ns altura tinha três bandas e uma delas é Funk do Boi, que já fazia o “Tio António”, o “Eles Diziam”. Ou seja, andei a maturar estas músicas com Funk do Boi, porque em Funk do Boi era eu. Só que isto precisava de uma dramaturgia, porque havia músicas em inglês, músicas em português — dividíamos. E Funk do Boi porquê? Porque o boi tem dois cornos, um era o Tatanka, outro era eu. Ele formou Black Mamba e seguiu o caminho dele. Mas quando o boi marrava… [Risos] Era uma coisa muito gira, porque a gente juntava rock com funk, com soul… O Pity vem dessa leva.

Para fazer este disco tive apoio. Eu já tinha estado numa fase em que tinha tido algumas ideias, mas não tinha um fio condutor. De repente penso, “mas este disco é o quê? Parece que tiveste a namorar com uma mulata e os filhos sairam todos com carapinha.” Todas as músicas têm um toque de black power. Não é anglo-saxónico. Isto não é americano. Há aqui uma fusão de afrobeat com soul e não sei quê. Isso agrada-me. E essa é a dramaturgia feita pelo Pity e pelo Ivo. Se vamos fazer algum disco, ele tem de fazer sentido. E perguntas tu: “A música africana em Portugal tem sucesso? Tem poder económico para quem o faz?” Nós pensamos que existem festivais de world music lá fora que estão dispostos a ouvir isto. Essa é que é a grande verdade.

Já que abres essa porta: não achas que há um paraxodo imenso, por haver inúmeras histórias como a tua, uma cultura de pessoas que regressaram, e não existir um único festival de música africana em Lisboa?

É muito estranho. É uma boa pergunta. Porque é que não há? Já houve. Havia pequenas bolsas. Sabes o que é que acontece? Eu já falei disto com mais malta: a palavra “África” está associada a um lado que as pessoas associam à pobreza, associam à dissensão, a trauma, a feridas mal resolvidas. Este disco permite resolver alguns traumas e conversar sobre as coisas sem peso. Este disco quer exorcizar esses… “Ah, aquele tio meu que morreu, coitado, alcóolico porque teve um desgosto na guerra e veio traumatizado.” “Ah, eu também conheci uma pessoa que veio de Moçambique e não sei quê.” Estas histórias surgem quando se começa a ouvir estas músicas.

Mas é isso que eu acho extraordinário neste teu disco: é a primeira vez que eu, na música popular, estou a ouvir estas histórias. Porque é que a palavra retornado e a experiência do retornado nunca entrou na música popular portuguesa? Tanto quanto eu saiba.

Por causa do trauma. É a coisa mal resolvida. E há retornados e há outros que só vieram. Os que sairam de Portugal, foram para lá e vieram para cá guardam uma mágoa. Têm uma dorzinha de que não falam nem querem falar.

Eu acho que toda a nossa experiência colonial é uma ferida ainda aberta.

E neste tempo… Já estamos a uma distância suficiente para começar a falar das coisas com amor, com compaixão.

Um dos problemas da música popular portuguesa é o estarmos constantemente a tentar reinventar a roda. No sentido em que, “como é que se canta o amor? Como é que se canta a solidão? Como é que se cantam esses grandes temas da humanidade?” E nós já temos 300 mil canções sobre estar apaixonado, 300 mil canções sobre passear de mão dada à beira do rio, mas não havia canções sobre chegar a Lisboa no final dos anos 70 só com a roupa no corpo. Não havia canções sobre isso. E nós sabemos que essa é uma história real que nos aconteceu, a nós enquanto país. Não me aconteceu a mim, pessoalmente, mas eu andei na escola com gente assim. Eu tinha 6 anos em ’75, quando fiz a primeira classe, portanto faço todo o meu percurso escolar com gentes com este tipo de experiência. O meu pai esteve na guerra na Guiné. Eu costumava dizer ao meu pai: “Não percebo. Os americanos inventaram todo um género cinematográfico com o Vietname. Fizeram mil filmes sobre o Vietname, escreveram-se mil livros, mil canções… E nós não fazemos nada com a nossa experiência traumática com a guerra colonial. Não há canções sobre isso. Não há livros — ou há uma meia dúzia. Um documentário ou dois — mas demorou muito tempo. Da tua geração, que são as tais crianças que chegam sem saber bem a que mundo pertencem, é a primeira vez que eu sinto haver alguém a expressar-se desta maneira. E isto não é uma pergunta — apenas um convite para tu continuares a contar a tua história.

Quando eu faço uma homenagem ao José Mário Branco com um “epá, tenham calma”, ou quando interpreto o “Alguidar” naquela toada do Zeca Afonso… O Zeca Afonso tinha passado por Moçambique, eu sabia da relação dele com África. Envolviam-se nos movimentos de independência na década de 70. Toda a força política que vinha dali… Toda a música que foi feita nessa década é incrível e faz parte do cancioneiro.

Lembro-me que na primeira vez que me mostraste o disco, na Casa Independente, eu citei-te imediatamente o José Mário Branco. “Isto é uma vénia ao Zé Mário. Que pinta.” Lá está, é isto que distingue esta história. Não é apenas africana, não é apenas portuguesa, é uma mistura dessas duas dimensões e dessas duas experiências. Esse retrato de uma geração é que acho que está muito vívido, muito claro aqui, neste disco.

Está. Há pessoas que às vezes estão… “Eu tenho de ir à Torre do Tombo!” Nós todos temos uma Torre do Tombo e se calhar temos de ir todos à Torre do Tombo perceber o que é que se passou, antes que a torre dê um tombo.

Às vezes são as caixas de sapatos onde se guardavam as fotografias num armário.

É, é. Este espectáculo ao vivo vai ter essa componente visual. Nós vamos recuperar essa ideia das fotografias, desse arquivo, das snapshots das pessoas a vir e toda essa imagem. Mas a minha alegria é que eu já tenho uma filha de oito anos e quando eu vou à Loja do Cidadão… A primeira música, por exemplo, chama-se “Duna” e começa comigo e com a minha filha. Eu fui tirar o passaporte — entretanto também já tenho nacionalidade cabo-verdiana e também gostava de ter a moçambicana — e ela diz-me “pai, chegou a tua vez.” Eu uso essa brincadeira: chegou a tua vez. “Ah, sou eu?!” Parece que há essa coisa do “põe-te na fila” na indústria musical. “Põe-te na fila e espera pela tua vez.” E só chegou agora.

Já tiraste a senha?

Tirei [risos]. Por isso é que eu digo que só foi agora. Porque até hoje as pessoas, “espera aí, pá!” O discurso moderado do Martin Luther King… Ele já dizia: “O que fode esta merda toda são os moderados.” “Ainda não chegou a tua altura, tem calma.” E um gajo morria…

… sem que nunca chegasse a altura. Olha: no momento em tens o disco finalizado, as misturas e o master estão feitos, mesmo ainda antes do disco existir fisicamente, fizeste uma sessão com a família para lhes mostrares o disco, ou não? Isso aconteceu?

Aconteceu. O processo foi uma aventura. Fui criando todas as músicas com o Pity e com o meu pai. Nós fomos para estúdio e tínhamos um trabalho a montar as coisas… Queríamos que houvesse uma língua viva, que era o crioulo. Que não fosse só português e que também houvesse crioulo. Nós tínhamos que afinar o crioulo. Não podia ser o crioulo de Sotavento, podia ser do Barlavento. Há certas expressões idiomáticas… “Atenção que o crioulo não tem feminino, é só masculino. Atenção à pronúncia. Se isto for ouvido em Cabo Verde, como é que eles vão reagir? Atenção, porque há muita gente a fazer este tipo de trabalho e tu nunca cantaste em crioulo.” Houve uma quantidade de questões que eu tive de resolver e esse trabalho de mostrar as músicas foi sempre acontecendo.

Houve um processo.

Houve um processo e esse processo “dramatúrgico” aconteceu com o Pity. A responsabilidade foi dele, na produção. Financeiramente, para fazer este projecto tivemos o apoio da SPA, que foi fundamental, da GDA no princípio… Há uma história engraçada. Eu conto à GDA que o projecto é a contar a minha história, que sou o Silk Nobre e não sei quê. Eu pego numa pequena contribuição que eles dão e vou comprar uma bicicleta eléctrica, porque eu percebi que tinha de pedalar muito [risos]. “Se vais fazer um disco tens de pedalar muito, pá!” Essa bicicleta eu uso-a até hoje para pedalar. Tivemos também a parceria da Peer Music, também entrou, e montar esta equipa que está aqui, neste disco, é o “Machimbombo do Amor”. É uma espécie de um autocarro cheio de amor. As pessoas que estão no projecto acham o projecto bonito, dizem-me “o teu disco está do caraças!” O Hernâni, “epá, já passei o teu disco seis vezes aqui no restaurante e está uma gaja com o Shazam à procura e diz que não encontra.” “Mas ainda não saiu, Hernâni!” O disco está em venda exclusiva na FNAC, mas há um tipo que está a vender na Feira da Ladra e que me diz: “Traz-me os vinís que eu vendo-os na Feira da Ladra. Os camones só querem comprar disto. O teu disco vai correr o mundo inteiro.” É isso que eu quero, celebrar, dançar e pensar sobre estas coisas que são fracturantes. Resolver as mágoas através da dança. A música não é só abanar a bunda, também é pensar. Este funk e soul… O “Sabe Sabe” é uma história de amor, o “Back to Africa” é uma coisa maravilhosa, o voltar a África – mas voltar com Manu Dibango, com Bonga, com Bee Gees…

O disco está pronto e tu, como homem de palco até pelo lado do teatro, hás-de já ter pensado — estavas, aliás, a levantar-me o véu quanto a isso — na apresentação ao vivo. Como é que isto há-de funcionar em cima de um palco?

Vai ser uma grande paulada. É uma experiência. Vamos convidar as pessoas para fazer uma experiência connosco, uma espécie de vodu musical. Há uma música, “Não Abuses”, que tem um Moog electrónico… Aquilo é uma coisa corrosiva, parece rock industrial. É uma coisa que, de repente, te convoca para estares atento, porque ficas perturbado com aquele som. Fala dos falinhas mansas, que conseguem tudo, dão-te a volta, são eloquentes, têm uma grande lábia e estão prontos para te manipular com a sua conversa. Nós vivemos num mundo em que… Voltando ao espectáculo ao vivo: ele tem uma base electrónica. Mas eu quero que seja uma base que possa viajar pelo mundo inteiro, que possa, de certa forma, ser leve para mim…

Que caiba numa mala de cabine, não é? Não precisa de ir para o porão.

Vai o Marinho connosco para a coboiada [Risos]. Vem o Pato. Vamo-nos divertir. Ainda por cima, tocamos no festival Kalorama logo para abrir. Não podia ser melhor. Isto é um festival internacional. É mesmo a dizer: “Bem-vindos. Estão prontos?”

No palco quem está ao teu lado?

O Pity no baixo, a Catarina Archer nas teclas e voz, o Ivo… No disco tivemos a participação do Armando Tito. Ele é muito importante, porque traz um tempo solar ao disco. Ouves uma paulada e, de repente, ouves uma guitarra e voltas à terra e descansas. O vinil não tem isso, mas o CD tem, o que é óptimo. Ouvir o CD é diferente de ouvir o vinil. Dizem que o wasabi te limpa o palato — a guitarra do Armanto Tito limpa-te e estás pronto para outra experiência musical, para outra emoção. Cada música tem uma intenção diferente. Então vamos montar uma espécie de peça de teatro em que existe texto, imagens, vídeo, uma secção rítmica forte, existe uma componente lírica com a Catarina Archer. Dependendo da situação nós podemos recorrer… A participação do Miroca Paris, por exemplo: ele trouxe uma panóplia de ritmos africanos que é absolutamente demolidora. Ele é uma enciclopédia de livros africanos, de funk e de soul. A participação da Sara Tavares… O “Azul Terylene” até parecia um tema amaldiçoado. O tema não acontecia. Há músicas aqui que foram…

Arrancadas a ferros?

Fogo! Estamos a falar de coisas sérias. Por isso é que ninguém fala sobre estas épocas. Isto está cheio de vodu, a década de 70. “Porque é que a música do ‘Azul Terylene’ não sai?” Estava pronta no estúdio e perdeu-se. A artista que tinha sido convidada não se identificava porque tinha uma coisa mal resolvida e sentiu uma experiência esquisita. Isto tem um peso… Estamos a falar da história de um personagem que espiritualmente não estava resolvido, que foi explorado, morreu. As pessoas diziam: “Essa música tem um vodu aí qualquer.” Tivemos que mudar e trabalhar a música. Por isso é que falamos de… Cahora Bassa significa “o trabalho acabou”. O rio, quando acaba, está lá a barragem. O rio Zambeze… Este rio chega aqui e produz electricidade. A vitrola a girar e vai em forma de aerograma pelo mundo inteiro. Para mim é uma metáfora incrível.

Já não ouvia a palavra “aerograma” há muito tempo. Nós vivemos num tempo diferente da música portuguesa. Eu lembro-me de uma primeira fase em que ouvi falar muito ligeiramente de Tubarões e depois do Bonga e do Dany Silva. Era a única presença africana que eu me lembro vívida na música popular portuguesa. Depois há um grande deserto em que a música popular portuguesa parece que fica muito branca. E se havia alguma nuance africana, estava tão disfarçada que não se percebia. Hoje o teu primo Carlão, rosto num programa de televisão de grande audiência, o Dino d’Santiago é rosto noutro programa de grande audiência, há artistas como Matias Damásio a seduzirem as donas de casa deste país a torto e a direito, experiências como Fogo Fogo… A africanidade parece que foi finalmente assumida. De repente estamos a ouvir um banger do Carlão e o sample é de Bulimundo. Demorou tempo a chegarmos aí. Sentes que este disco aterra na nossa cena musical num momento novo ou ainda há muito para desbravar?

O próprio Emanuel usa o ritmo africano nas suas canções.

Usa ou apropria?

Como quiseres [risos]. Porque realmente puxa o pezinho para dançar. Há melhor forma de resolver as coisas do que a dançar, a cantar e a beber um copo para celebrar a vida? Não existe. Tudo passa. O que é que fica? O que é que importa? É aquilo que fica cá dentro, que é a nossa batida cardíaca, que está ligada a África. Os meninos que tiveram babás africanas, em Portugal, ouviam aquela música secretamente. “A minha babá ouvia Bonga! Gostava daquele som e não sei quê.” Está completamente enraizado na cultura portuguesa a cena africana. Pode ter esta ou outra capa, mas está completamente… Isso é maravilhoso.

Há bocado mencionavas que a tua filha está com oito anos. Dentro de dois anos chega ao liceu — agora não se chama liceu — e lá vai ter História de Portugal. Já a preparaste para esse momento? Para os “descobrimentos” e para o quão “incríveis” nós fomos?

Eu espero que ela descubra [risos]. Ela está numa escola triligue, internacional, e o programa curricular é outro. Fala sobre as questões de uma forma diferente – não tem mapa cor-de-rosa nem bandeira dos 500 anos de escravatura. São questões que ela está… Ela ouve este disco, gosta e canta. Canta a “Sucrinha”, essas coisas, e vai-se apercebendo. Ao ouvir o “Eles Diziam”: “Pai, isto aconteceu mesmo?” Ela fica ali a encaixar nas gavetas dela, a organizar o mundo na cabeça dela. Há sempre a esperança de que a nova geração traz um olhar novo. Ela traz essa felicidade e essa forma de ver o mundo


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