Pontos-de-Vista

João Mineiro

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No mesmo caminho.

Sete anos de Rimas e Batidas: razões fortes para continuar 

Este texto é sobre os sete anos do Rimas e Batidas, um projeto generoso que tem sido levantado com as mãos, com o esforço coletivo de muita gente. Para vos falar sobre ele, tenho de começar mais atrás, com uma curta história pessoal. 

Corria o ano de 2006, era eu um jovem adolescente que não gostava de ler e enchia os testes de erros ortográficos. Mas gostava de música e sobretudo gostava da rádio. Em particular de um programa que acompanhava religiosamente às sextas-feiras à noite, na Antena 3. Chamava-se Nação Hip Hop e quem o dirigia era uma voz misteriosa que se apresentava como Rui Miguel Abreu. Num dos episódios desse programa, a emissão abriu com o tema “Subúrbios”, antecipando uma entrevista com o rapper Valete, que por essa altura lançava o seu Serviço Público. Seguiram-se ainda, se a memória não me falha, os temas “Revelação”, “Monogamia” e “Anti-Herói”, intercalados num diálogo estimulante que me fez agarrar cada linha dessas músicas. Algures na entrevista, a conversa vai parar aos livros e Valete dá um conselho a quem o escuta: toda as pessoas gostam de ler, se escolherem livros sobre temas que as apaixonem. Eu segui o conselho, e como o que realmente gostava era das músicas que o Rui Miguel ali passava, juntei uns trocos e mergulhei no clássico Ritmo e Poesia: Os caminhos do Rap, de António Contador e Emanuel Ferreira. Foi o primeiro livro que li e, por causa de uma citação na abertura de um dos capítulos, seguiu-se A Geração da Utopia, do Pepetela. Nunca mais parei. Comecei a ler, a estudar mais, a ouvir mais música, a envolver-me politicamente. Ganhei nessa altura a vontade de estudar sociologia, curso que me trouxe para Lisboa, tendo as rimas e as batidas sempre por perto. 

Em certo sentido, e olhando em retrospetiva, talvez possa dizer que a música e o jornalismo me mudaram a vida. A música porque me abriu todos os horizontes. O jornalismo porque imprimiu reflexividade e sentido crítico àquilo que escutava, convidando-me a pensar os significados da arte e a sua relação com o mundo.  

Passaram dezasseis anos e hoje o mundo é muito diferente. É inegável que a música se democratizou, tanto no acesso, como na própria produção. Não só a pirataria não acabou com a indústria, como emergiram novas e inventivas sonoridades um pouco por todo o mundo. No entanto, nestas últimas décadas, também o mercado se transformou de forma acelerada, mudando estruturalmente os modos de consumo e relação com a música. A nova economia política streaming ampliou ainda mais a crise das mediações, nomeadamente do jornalismo. Sob a ilusão do acesso livre e generalizado à música, todas e todos nós somos aliciados para uma conformação algorítmica do gosto. Temos acesso e ouvimos mais música, sem dúvida. Mas o nosso rasto digital oferece ao mercado todos os ingredientes para que escutemos exatamente aquilo de que muito provavelmente iremos gostar. Se é confortável? Claro que sim. Mas não deixamos de adensar as fronteiras das nossas próprias bolhas. Um espaço público segmentado e construído à medida da nossa história, gostos, redes, hábitos e convicções, é o maior dos riscos para uma sociedade pluralista, diversa, democrática e capaz de se desafiar a si própria. 

Tudo isto tem a ver com o Rimas e Batidas e a sua história. Ao longo dos últimos sete anos, encontraram-se nesta revista dezenas de pessoas que generosamente colocaram os seus pauzinhos nas engrenagens. Desafiaram-se, e desafiaram-nos, a pensar para lá do conforto dos gostos adquiridos, dos hábitos herdados, das hegemonias culturais ou dos fenómenos comerciais de cada momento (ainda que nunca os ignorando). Arriscaram descobertas, misturaram-se com sons estranhos e nunca ouvidos, procuraram novas e desafiantes linguagens. Com esse gesto, todas elas e todas eles contribuíram para que o espaço da criação e da reflexão musical em Portugal fosse mais diverso, amplo, disruptivo e representativo. Para que tivesse mais cores que não a branca; mais línguas que não o português; mais géneros que não o masculino; mais corpos que não os normativos; mais sonoridades e formas de expressão poéticas, e até políticas, que permaneciam nas margens. A tudo isso se chamou música, sem qualquer rótulo adicional.

Não tenho dúvidas que nestes anos muitas culturas, sonoridades e artistas emergentes encontraram nesta casa um espaço de pensamento estruturado sobre o seu trabalho, mas também uma importante plataforma de visibilidade. Como nos mostra Questlove, a história da música ajuda a compreender a história de uma comunidade, tanto como a história de uma comunidade ajuda a explicar a história da sua música. Estou certo de que, quando se fizer a história da cultura deste início de século, o arquivo de reportagens, entrevistas, ensaios e críticas aqui publicados serão uma matéria-prima fundamental para se conhecer a nossa história coletiva. Na qualidade de leitor, que passou a escriba há apenas um ano, só posso agradecer a todas as pessoas que têm erguido esta casa e com quem tanto tenho aprendido.

Estou seguro de que não tem sido um caminho fácil. Projetar, editar, escrever, rever e ainda garantir a sustentabilidade financeira do projeto, exige tempo, esforço e demasiadas horas roubadas ao sono. Por isso mesmo, e sendo um aniversário, não devemos ter falsas modéstias: quantos órgãos de comunicação social independentes, e com tão escassos recursos, conseguem num ano publicar 95 reportagens, 67 críticas, 42 ensaios e 175 entrevistas

O Rimas e Batidas está de parabéns por mais um ano de história, mas ninguém aqui terá ilusões quanto à enorme dificuldade que significa manter vivo um órgão de comunicação com estas características. A crise do jornalismo e das mediações é inescapável e faltam-nos recursos. Quem aqui escreve fá-lo por compromisso com a arte e com os outros, muito para lá dos seus day jobs, e porque acredita realmente neste projeto. Mas todas e todos queremos escrever mais, dar espaço a mais artistas, cobrir mais concertos e sobretudo encontrar todas as mudanças que a música experimenta, projeta e antecipa. 

O José Mário Branco, a quem é sempre imprescindível regressar, fartava-se de insistir que na arte nunca há neutralidade, porque as obras não existem no vazio e para lá da comunidade. O mesmo se aplica ao jornalismo. O jornalismo faz escolhas e responde por elas. No Rimas não se alimentam polémicas estéreis para gerar clickbait, mas não temos receio das polémicas que importam e que fazem avançar debates, como quando aqui se escreveu sobre a hegemonia masculina dos cartazes, ou sobre o mito de que só não há diversidade na programação porque não há mulheres ou pessoas negras a criar determinados tipos de música. Acima de tudo, é a música que nos move e temos orgulho de nestas páginas terem saído argumentos centrais sobre a música contemporânea e a diversidade dos seus sons, corpos, histórias e imaginários. 

Tendo consciência do nosso lugar de fala, sabemos que falta diversidade a esta redação. A escrita é também ela um lugar de poder simbólico, e nesse aspeto temos muito caminho por percorrer. Provavelmente temos também de abraçar o desafio de extravasar a própria escrita sobre música, e discutir mais todo o seu ecossistema: os modelos de negócio da indústria; a precaridade laboral dos diferentes profissionais do setor; os desafios das políticas públicas de cultura; a conversão ecológica da indústria musical e do setor da música ao vivo; ou até as experiências de organização associativa, sindical e política dos músicos. 

Vivemos tempos difíceis e que convidam pouco ao otimismo. Porquê continuar o Rimas, sete anos depois? Porque a música mudou a vida de todas as pessoas que aqui escrevem e de tantas outras que nos leem. E porque a música tem sido uma das mais sensíveis, belas e emancipadas formas que a humanidade inventou para falar entre si e sobre si própria. Uma espécie de oásis, fonte de vida que nos permite viver no deserto sem com ele nos reconciliarmos. Sete anos depois, as fundações continuam sólidas e muito caminho há pela frente. Resta-nos aproveitar a viagem e fazer escolhas de que nos possamos orgulhar. Vamos a isso?

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