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Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 02/08/2021

Entre São Paulo, Lisboa e o infinito.

Rodrigo Brandão: “A partir da hora que a cerimónia se inicia, quem manda é a música. Manda no meu corpo e na minha alma”

Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 02/08/2021

Ele também viaja no espaço. Noutros espaço. Rodrigo Brandão acusou pela primeira vez no nosso radar em finais de 2019, quando se mudou para Portugal e decidiu — em boa hora, diga-se — apresentar por cá o seu trabalho Outros Barato. A procura de sintonias musicais levou-o imediatamente a cruzar-se com músicos da nossa cena de jazz e música improvisada como Rodrigo Amado, Hernâni Faustino ou João Valinho, ao lado de quem já pisou alguns palcos em explosivas apresentações de exercício de liberdade pelo som e pelo sentido.

Mas Rodrigo, como se percebe cada vez melhor, é uma mente irrequieta e um poço de surpresas. Há um par de meses, um alerta no radar secreto chamava-nos a atenção para o projecto sucessor de Outros Barato, um álbum de título Outros Espaço em que Brandão se cruzava com membros da histórica Arkestra de Sun Ra, incluindo o seu decano actual, Marshall Allen, e alguns velhos amigos da cena musical mais canhota de São Paulo, como Thiago França. Para aguçar ainda mais o interesse, percebeu-se que essa seria a rodela que marcaria a estreia de um novo selo editorial, subsidiário da Groovie Records de Edgar Raposo: Comets Coming é o nome.

E de facto, há um cometa de brilho intenso a cruzar os céus de Lisboa nesse momento. A cruzar os céus porque Rodrigo não é homem de se deixar prender pelas leis da gravidade e sem precisar dos investimentos de Branson ou Bezos acaba de lançar um verdadeiro ovni para o espaço, um álbum em que a sua palavra falada e sentida se encontra com a música livre e espacial conjurada por uma tripulação de luxo. Gravado em São Paulo em finais de 2019, em Outros Espaço surgem, também ao microfone, Tulipa Ruiz e Juçara MarçalThiago França na flauta e saxofones alto & tenor, Guilherme Granado em sintetizadores e efeitos, Marcos Gerez no baixo eléctrico, Thomas Rohrer em soprano e rabeca, Paulo Santos na percussão. E além da banda base, neste registo há ainda que sublinhar a presença de alguns dos membros da encarnação presente da Sun Ra Arkestra: Danny Thompson (RIP) em barítono e bongo,  Elson Nascimento no surdo, Knoel Scott em tenor e soprano, e o lendário Marshall Allen em papel de líder, em sax alto e sintetizador, “conduzindo o colectivo em direcção ao desconhecido”, como se garante nos materiais de apresentação.

Com uma eloquência rara, cruzando-se no seu discurso uma sabedoria que nasce da prática e do estudo, Rodrigo Brandão falou ao Rimas e Batidas a partir da sua cápsula privada e deixou-se fotografar no espaço da Brotéria, em Lisboa, onde se encontra a exposição Íris da autoria do artista plástico Diogo Evangelista (a mostra de trabalhos em néon é visitável até ao próximo dia 11 de Setembro).



Comecemos por um “balanço” da experiência portuguesa: já houve concertos com músicos da nossa cena jazz, agora esta edição que inaugura um novo selo. Dir-se-ia que está a correr bem. Já se sente em casa?

A verdade é que entre as viagens que fiz ao Brasil desde que vim pra Lisboa, as duas quarentenas e todas as demais limitações impostas pela pandemia, a minha experiência até agora teve muitas quebras. Assim, sinto que ainda carrego algo de turista acidental.

Dito isso, celebro todo dia o facto de cá estar, e já percebi que isso aqui é um infinito de gavetas, cada qual com sua órbita, à espera de ser acessada. Quanto mais descubro, [mais] aumenta a noção da vasta gama que me espera estrada adiante.

Ontem à noite mesmo, o Edgar Raposo, da Groovie/Comets Coming, me apresentou um disco bem interessante, do Sei Miguel, gravado com um walkman em 1988. Há pouco assisti um concerto muito bom do Luís Vicente com o baixista dos Irreversible Entanglements na ZDB. Tem instrumentistas de jazz livre/música improvisada de alto nível aqui em Portugal, é [um] facto. Venho conhecendo cada vez mais a música e as pessoas que fazem essa cena acontecer, encontrando minha turma, tecendo parcerias, em ritmo orgânico.

Minha atenção primeira é inevitavelmente pra música, mas quanto à experiência quotidiana de modo geral, devo dizer que essa cidade tem sido um abrigo e um soro pra mim… apesar do vento constante que é navalha na carne tropical do pai! 

Falemos agora do momento, em 2019, em que dividiu o palco em São Paulo com todas aquelas feras — as brasileiras e as americanas. Como é que surgiu essa possibilidade, em primeiro lugar, e como é que pensou o espectáculo?

Tudo começou quando a equipe do Moers Festival foi a São Paulo assistir tudo quanto é concerto de artistas da cidade, no intuito de fazer uma programação especial dedicada a essa cena mais à esquerda de SP, pra edição daquele ano do evento. Eles já estavam negociando com Tom Zé, Clube da Encruza… mas isso tudo eu só soube depois. O que chegou como raio de luz no chakra central do meu peito foi o convite para me apresentar na noite de abertura do festival, em sessão de improviso junto ao Marshall Allen.

Lá, a conexão entre nós se estabeleceu instantaneamente, e fluiu formosa no palco, a ponto do jornal alemão estampar uma foto nossa na capa da edição do dia seguinte. No fim da noite, de volta ao hotel, ele me abraçou e disse: “Mais. Temos que fazer isso mais vezes”. Aquilo pra mim foi que nem diploma, sabe? 

Meses depois, quando se confirmou a ida da Sun Ra Arkestra para abrir o Sesc Jazz na Cidade Cinza, a gente aproveitou pra aprofundar esse encontro. Naquela altura, o Marshall trouxe também outros integrantes da banda que conviveram muito com Sun Ra em si: o agora saudoso Danny Ray Thompson, Knoel Scott e o meu conterrâneo Elson Nascimento. Do lado de cá, fiz questão de trazer a gang que já vinha trincando comigo, o núcleo central que gravou o meu trabalho de estreia solo: a turma do Hurtmold (Guilherme Granado e Marcos Gerez), do Metá Metá (Juçara Marçal e Thiago França), o Paulo Santos (do Uakti), o Thomas Rohrer e a Tulipa Ruiz. Ou seja: a escolha da formação foi bem natural e inclusiva. 

Quanto ao carácter do espetáculo, foi unânime entre o grupo a decisão de concentrar aquilo, de certo modo, na minha pessoa, pelo papel de catalisador que espontaneamente exerci… apesar da minha preferência ser, via de regra, por contextos colectivos. Assim, por conta da união com a Arkestra, ficou subentendida a ideia de pegar o Outros Barato e levar pro espaço. Melhor oportunidade e companhia não há, concorda comigo? E assim foi, como agora se pode ouvir no novo álbum. Por fim, vale citar o subtítulo. No intuito de explicar, de alguma forma, o inexplicável, escolhi nomear a série de concertos como Outros Espaço: Sintonia Cósmico Sónica.

Entre traduções de Sun Ra, homem que, como bem sabemos, veio do futuro, e adaptação de textos dos recreios de escola, da tradição do candomblé, coisas arcanas, portanto, há a ideia de tocar algo que existe fora do tempo, talvez até fora da consciência humana tal como é hoje entendida. Fale-me sobre esse processo de encontrar e seleccionar esses textos.

Adoro a ideia de atemporalidade. Se ouço um disco lançado há 100 anos, pela primeira vez hoje, ele é novo pra mim! Nesse caso em específico, foi algo que passou mais ao largo do pensamento racional. Houve consciência e escolhas durante o processo, sem dúvida, mas o que predominou, olhando em retrospectiva agora, foi uma espécie de febre da selva, em que escrevi muito, e fui intuitivamente encontrando os demais signos, símbolos e cores, em forma de textos, chants, e poemas como quem colecta samples pra uma imersão de beatmaking, liga? 

E quando você fala em selecção, é um termo certeiro, porque ela se dá em diversos níveis. Primeiro, tem o punhado de material escrito especialmente para o projecto, que se junta ao acervo autoral que venho acumulando ao longo da jornada, e forma a base do lastro lírico que foi pra estrada. Fora isso, tem as coisas que entram de acordo com o espírito de cada dia: o aniversário de alguma entidade, um facto histórico relevante, ou a notícia bombástica que acabou de ecoar.

Assim, cada uma das quatro apresentações que fizemos gerou o seu próprio processo acerca do que foi realmente pronunciado naquele microfone. Teve peça que eu só li na ocasião que foi registrada, por exemplo, e outras que em todas as vezes demandaram verbalização. Depois foi a seleção de quais trechos da gravação é que, juntos, constroem um contexto, contam uma história. Nessa fase sim, é um nível de pensamento prático, talvez até pra equilibrar toda a fluência livre das etapas anteriores. Pra falar a verdade, é a primeira vez que penso nisso. Te agradeço pela reflexão.

A sua entrega tem algo de teatral. Pensa-se na voz como uma ferramenta para comunicar o intelecto, mas é algo de muito físico também, certo?

Tem um aspecto físico intenso, sim. Mas nada é de caso pensado na performance. Creio que é o modo que a música mexe comigo. Essa é uma grande diferença da improvisação livre pra música que é previamente ensaiada, no meu entender: a concentração que a composição em tempo real demanda é alta demais, não sobra espaço pra sequer pensar em apertar o botão da mise en scène. Tudo tem tom de urgência no decorrer do ritual. A partir da hora que a cerimónia se inicia, quem manda é a música. Manda no meu corpo, manda na minha alma.

Há uma clara dimensão política nos textos, com temas como “Outros Coltrane” a destacarem-se nesse aspecto. Ser brasileiro implica nos dias que correm uma tomada de posição também. Mas em 2019 George Floyd ainda não tinha deixado de respirar, a pandemia ainda não se tinha exactamente manifestado. A quem dirigia então aquelas ideias?

Seja no Brasil devastado pela muito maldosa mentalidade bozo-nazista, nos EUA cuja sede de sangue negro parecer jamais diminuir, ou qualquer outro canto do globo, a real é uma só: as energias baixas que você listou estão fazendo hora extra no mundo. Todos aqueles que manipulam, enganam, oprimem, matam, massacram, torturam e chacinam vem trazendo sua presença nefasta, exercendo o ódio, com requintes de crueldade, há muito tempo.

Os porcos que assassinaram Fred Hampton na crocodilagem são os mesmos que se sentiram à vontade pra sufocar o Floyd em praça pública. São, ainda que em diferentes corpos, os porcos que se fizeram feitores durante a era da escravização dos povos africanos. Assim como são os mesmos porcos do Doi-Cod, verdadeira máquina de moer gente que reinou sem limite durante a velha ditadura militar tupiniquim, cujos resquícios seguem respingando país afora enquanto você lê.

Nada disso é novidade, porém tem um tsunami de barbárie em curso, em proporções nunca dantes vistas, pelo menos por mim, nessa encarnação. 

E aí, é o papel da arte olhar adiante, apontar o drone robocop quando desponta no horizonte, antes que possa por em acção suas múltiplas metralhadoras apontadas à população, numas de alertar quem está desatento, entretido ou vacilante, para que consigamos driblar a chuva de chumbo.

Assim, as minhas flechas verbais já miravam a testa desses agentes do espírito opaco, com a benção dos Orixás, de Marighella e Marielle.  

Os aliados musicais neste álbum são incríveis: a vanguarda de São Paulo, de um lado, quem veio de Saturno, do outro. Que tipo de direcção ou estruturação musical houve antes das gravações, da apresentação do show?

A direção foi toda feita pelo Marshall. Conduzir a banda em pleno improviso é uma especialidade dele. A partir da hora que o Danny Ray comentou isso, a gente pediu ao Allen que assumisse o leme da nave, o que ele fez com um sorriso no rosto. Através de sinais, deu instruções aos músicos, deixou as vozes à vontade, e foi formatando a melodia como quem extrai caldo de cana, na hora.

Antes de subir no palco, ele sempre dizia pra gente ficar atento ao espírito do dia, que o nosso compromisso maior é traduzir de forma fiel o espírito de cada dia. E também nos encorajava a escolher o caminho menos “seguro”. O mote era: “pouco me interessa o que vocês sabem… eu quero que toquem o que vocês NÃO sabem”! Sob tão certeira batuta, a malta toda caminhou contente, e o resultado fala por si.

Ainda se lembra da primeira vez que ouviu Sun Ra e a Arkestra? Sinto que a música de Ra nunca esteve tão presente como agora, com dezenas de reedições a terem surgido nos últimos anos. Mas se calhar no início do milénio era um nome um pouco esquecido…

Lembro como se fosse hoje! Foi em meados dos anos 1990. O amigo Daniel Bozio aka Dj DvBz me chamou pra uma sessão de cinema na casa dele. Eu já era notório aficionado no Funkadelic, e ele me disse que aquele longa era o percussor do conceito de Mothership Connection. Fui sedento e me lambuzei nas tintas, tons e sons do filme Space Is The Place.

Era a raiz quadrada do afro-futurismo, anos antes desse termo ser cunhado. Era um domingo à noite. Um Sun-day. Assim como a gravação d’Outros Espaço também aconteceu num domingo. Coincidência é coisa que não existe… domingo é dia de Ra, porra! Já faz uma data que toda semana, quando chega o sucessor de sábado, o primeiro disco do dia é dele, na vitrola lá de casa.

Mas concordo, é nítida a impressão de que quanto mais o tempo passa, mais relevante sua música se revela, mais novo o Sun Ra soa. Mais gente descobre o mito e a música dele, mais longe seus conceitos ecoam. Mais discos inéditos emergem. Espero que permaneça nesse ritmo!

O Rob Mazurek é outro grande fã de Sun Ra. De certeza que hão-de ter partilhado grandes histórias…

Sem dúvida! Aliás, uma das coisas mais preciosas, pra mim, é a oportunidade de ouvir histórias, lendas e relatos em primeira pessoa, na voz de quem viveu o caso em questão.

Mas o Rob tem um lance que vai além: assim como o Sun Ra, ele também possui a habilidade de perceber qual é o chamado de quem está à sua volta. Mesmo quando a própria pessoa ainda não sabe. Ambos têm esse poder de apontar o caminho correto pra cada cabeça. Vi acontecer com o Granado, e depois ocorreu comigo. Já tinha amizade com o Maza há alguns anos, durante meus dias de rapper, e chegamos a fazer bastante coisa juntos, como o disco Ekundayo.

Até que me encomendou um ensaio sobre São Paulo enquanto meca criativa no milénio que se iniciava. Eu escrevi, mostrei pra ele e, em resposta, me avisou pra voltar no dia seguinte pra gravar com ele, Guilherme, M. Takara, Matt Lux e Chad Taylor, o combo conhecido nas internas como Chi-Paulo Underground, por misturar integrantes de duas das bandas mais prolíficas do Mazurek, o São Paulo Underground e o Chicago Underground.

Fizemos o registro e foi tudo muito fluído. No dia seguinte, o Pharoah Sanders chegou na cidade pra um par de shows apoiado por essa formação. A química entre eles foi tão forte que acabou acontecendo muitas outras vezes, em diversos cantos do planeta, inclusive aqui em Portugal, aquando da apresentação no Jazz Em Agosto — foi gravada e lançada depois pela Clean Feed, como Pharoah & The Underground.

Mas, voltando ao meu ponto, a real é que o Rob, com toda sua larga generosidade, decidiu por conta própria falar com Sir Sanders, que gostou da ideia, e assim me fez subir com eles na segunda noite e interpretar o ensaio que eu tinha escrito. Foi assim que a minha carreira como artista de spoken word começou, naquele palco, ao lado de tamanho titã, em 2010. Soa surreal, eu sei. Daquele instante em diante, foi um processo tão gradativo quanto irreversível. A cada dia essa modalidade mais livre foi ganhando espaço na minha expressão, e o rap estruturado em versos de 16 linhas, com mapa de canção pop, foi perdendo terreno.

Quando voltei de Nova Iorque no começo de 2017, ao final dos trabalhos do BROOKZILL!, a ficha caiu. Desde então, venho voando. Mas quem mostrou o trajeto todo foi o Rob Mazurek. Emano constantemente um mantra de gratidão a esse mano.

O que sentiu quando leu o poema que o Rob escreveu certamente inspirado pela música deste álbum?

O poema foi inspirado na música, sim, faz as vezes de liner notes. Por tudo que te contei agora, somado ao poder das palavras por ele escolhidas, foi como uma descarga de energia da ordem de um relâmpago passando pelas minhas entranhas, nada menos.

O título, Outros Espaço, contém infinitas ideias dentro e fala da procura, da noção de dimensões alternativas, mas, ao mesmo tempo, na forma como decide escrever “outros espaço” em vez do gramaticalmente correcto “outros espaços” pode entender-se uma recusa de excessiva intelectualização e até uma referência à forma como falam as pessoas com menor formação académica. Num momento em que os ricos, como Bezos e Branson, estão a parecer reclamar o espaço, acha que o “povão” pode encontrar na música sua própria nave espacial? Uma forma de aceder a “outros espaço”?

Sim, a escolha de quebrar o plural é uma carta de intenções, um aceno à escola que me forjou. Tenho respeito pelo ambiente académico, mas a minha formação é de rua. Menos engessada, mais na ginga. Mas nada tem de novo nisso, é um artifício já usado por Mano Brown, Linton Kwesi Johnson, o hip hop norte-americano da golden era em geral… sou apenas mais um a levar essa tocha adiante.

No entanto,  já ouvi gigantes, como Ornette Coleman, darem uma ideia que se tornou recorrente pra mim: pra desconstruir a fórmula, é preciso conhecer a mesma de cabo a rabo, a ponto de se tornar parte integrante do seu próprio ser. Aí, e só aí, é que alguém adquire autoridade pra alterar a fórmula. Caso contrário, fica um troço genérico, que não se sustenta. Assim, essa saudação ao linguajar quotidiano, do povão, também contém amor e dedicação ao léxico tradicional. A beleza de uma não ofusca a outra. Mas é importante fincar bandeira no lado negro da Lua, porque é de lá que eu vim.

Como cheguei tão longe? Como todo e qualquer pobre louco universo afora. Com a nave espacial contida na minha mente, movida pelo combustível conhecido como música, conhecido como arte.

Como está a pensar apresentar este álbum em Portugal? Já começou a falar com músicos?

Quero apresentar pelos quatro cantos do país, das mais variadas formas possíveis. Adaptabilidade é um elemento fundamental, torna a liberdade vigente na prática. Mas vale ressaltar que a ideia é ter sempre o maior número possível de pessoas juntas na gira. 

Porém, uma coisa é certa: faço questão de ter quem me recebeu de braços abertos em Lisboa comigo nessa catiça. Rodrigo Amado, Hernâni Faustino, João Valinho e Carla Santana moram no meu coração! Tenho respeito e admiração em abundância por essa malta. Saboreio os sons que conjuram enquanto quarteto, assim como as tantas outras bandas que integram e/ou lideram. Me senti inspirado em cada ocasião que vivi o verbo com eles. 

Sem falar que alguns dos meus irmãos paulistanos pretendem dar um pulo aqui assim que possível. Imagino a gente tudo junto e misturado, e me vem a certeza vai soar sensacional…

Além disso, venho manifestando a minha vasta vontade de reencontrar a turma da Arkestra, agora em palcos portugueses, e tenho muita fé que esse sonho será realizado sim. AXÉ!

O facto de este álbum estrear um novo selo, Comets Coming, torna-o ainda mais especial. Como aconteceu essa ligação?

Mais uma vez, de modo natural. Conheci o Edgar no mesmo dia que você me entrevistou pela primeira vez, na loja da Groovie Records, no fim de 2019. De lá pra cá, nossas famílias se aproximaram, os erês formaram uma quadrilha, enfim… graças a essa amizade, e à experiência longeva dele, entendi que era a pessoa mais apropriada pra me aconselhar sobre como editar o Outros Espaço aqui. 

Ele pediu pra ouvir o disco, e depois me chamou pra conversar. Pra minha surpresa e alegria, disse que ele e a Flávia Diab pensavam em abrir um sub-selo voltado a material diferente da Groovie, e fizeram um convite irrecusável: lançar Outros Espaço em vinil, com capa especial e tiragem com variação de cor, como primeiro título da Comets Coming. Pra alguém que vive a vida em vinil, como eu, a resposta afirmativa foi imediata. A Marija Reikalas fez um trabalho em xilogravura, na arte da capa, que considero arrebatador. Desde o dia um o processo vem fluindo formoso, e eu só tenho a agradecer!

Há mais arquivos assim à espera de serem redescobertos?

Com certeza. Enquanto apaixonado por música, eu conto com isso! Sei, por exemplo que o França tem o registro de uma apresentação em dueto com o Tony Allen em multitrack de alta qualidade… Também já escutei uma tape inédito d’Os Tincoãs com Pedro Sorongo na percussão, acompanhados por coral e orquestra em 1980.

Você chegou a ouvir o álbum que saiu há pouco, colectando várias versões inéditas de hits do Tim Maia cantados em espanhol, que ele foi gravando ao longo dos anos, na intenção de um dia se lançar no mercado latino, mas não chegou a concluir? Eu sou suspeito, adoro O Síndico, mas achei incrível!

Como conheceu o Scotty Hard, que mistura o disco? Foi nos tempos de BROOKZILL!? Ele é um mago do som pouco reconhecido, penso…

Tem uma rima do Raekwon que diz: “He lowkey coz he OG”. De certo modo, essa linha descreve a conduta do Scotty Hard. Mas sua observação é perspicaz. Pra alguém tão talentoso, com uma estética de som própria, que trabalhou em álbums seminais de rap, como Wu-Tang Forever, Gravediggaz, De La Soul Is Dead, Critical Beatdown… um cara que assina a produção dos melhores discos do Medeski, Martin & Wood pela Blue Note… e tantos outros créditos… sim, ele é um daqueles segredos bem guardados da música urbana. Aliás, foi num diálogo em que ele se dizia frustrado por ter algumas de suas produções favoritas em condição de unreleased, que sugeri da gente compilar isso tudo e fazer um disco dele. O resultado é o LP Science Of Sesh, lançado em 2017, e eleito um dos melhores daquele ano pela Wire magazine.

Conheci o Scotty em 2002, na primeira vez que ele esteve no Brasil, para mixar o disco da Nação Zumbi. Nosso santo bateu no acto. A partir daí, a vida levou o mano pra lá constantemente, e sempre rolava da gente se encontrar. Em 2005, fui visitar o estúdio dele no Brooklyn e combinamos de produzir o próximo disco do meu grupo de então, o Mamelo Sound System, juntos. Daí em diante, colaboramos em muitos projectos, nos quais ele exerceu uma gama de funções, de músico, a produtor, passando por beatmaker, arranjador, DJ, engenheiro de gravação e de mixagem. Além disso, é um grande amigo, padrinho da minha filha, das pessoas predilectas no planeta pra mim.

Finalmente, em que futuros projectos anda já a trabalhar?

Estou nos estágios iniciais de um curta-metragem em áudio, feito em dupla com Thiago, também com pique de spoken, que vai ter colaborações com um grupo grande, que inclui o Edgar (autor do recém-lançado Ultraleve) e Marcelo Cabral.

Até o fim do ano deve sair um compacto do Ivan Conti, o mestre Mamão, baterista do Azymuth, com uma parceria entre ele e o Neto, do Síntese em um lado. No outro, quem tem a honra de construir canção com esse totem da música brasileira sou eu.


(N.R.: O Rimas e Batidas quer agradecer a disponibilização do espaço da Brotéria para realização da sessão fotográfica que acompanha este artigo, algo que não teria sido possível sem a inestimável colaboração do seu director, Francisco Mota SJ)

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