Felinos, trios perigosos, regresso de um grupo pop que brilhou no início do milénio ou protagonistas do rap tuga em reflexão sobre si mesmos e o que os rodeia: bem-vindos à época outonal no Rimas e Batidas.
[Doja Cat] “Rules”
Quando Amala Zandile Dlamini, ou Doja Cat, explodiu na Internet em meados de 2018 com o “hit” viral “Mooo!”, muitos apostaram que desapareceria com a mesma velocidade que aparecera nos nossos ecrãs. Com “Rules”, lançada no final de Outubro, a rapper norte-americana volta a provar aos desconfiados que chegou para ficar. Navegando num instrumental soalheiro, Dlamini vocifera a favor da objetivação de homens ricos com carteiras largas. Sem vergonhas, o vídeo que acompanha a feroz canção — que mostra a artista a conduzir uma máfia felina — faz-nos acreditar que um dia também seremos nós a banhar-nos nos euros de outrém, sem rodeios.
– Beatriz Negreiros
[Danny Brown] “3 Tearz” feat. Run The Jewels
Depois de apresentar um dos melhores projectos de 2016 com Atrocity Exhibition, Danny Brown está de volta com uknowhatimsayin¿. É um álbum discreto e mais curto que o seu predecessor que era frenético e singular, tal e qual como o seu autor. No entanto, tem alguns temas de destaque como “3 Tearz”.
Do quarto mágico de JPEGMAFIA surge a batida que serve de base ao tema. Ao jeito do seu artesão, a produção ouve-se com grão na mistura, e bombos e tarolas secos acompanham uma melodia arranhada de teclas. Brown cospe barras com um acompanhamento de luxo, El-P e Killer Mike, artistas estabelecidos também conhecidos como o mítico duo Run The Jewels, convidados que se mostram mais do que à altura.
Esta triple threat que mete inveja ao mais destro dos rappers discute um niilismo mundano, e o seu desprezo perante o infortúnio. Fazem-no de maneira soberba, desde o esquema rimático fantástico de Killer Mike, ao flow autoritário de Brown e passando pela referência a MF DOOM muito bem orquestrada por El-P. Tudo isto para provar que chorar sobre o leite derramado não é nem nunca será solução, e no final só nos resta concordar com esta premissa.
– Miguel Santos
[DJ Spoony] “Flowers” feat. Sugababes
Sem querer acusar ingratidão, diga-se apenas o óbvio: “Flowers” não é uma canção de Outono. Apesar do aquecimento global ter erodido as claras demarcações entre estações do ano, é estranho ouvir os violinos germinantes e a jura de amor vocal com perfume de cerejeira. O esplendor é inegável; contudo, as folhas lá fora amarelecem pelas gotículas da chuva. Talvez seja a lembrança de que certas coisas servem para qualquer época — como o sentimento da união, ou ainda o garage.
O regresso de um dos trios vocais mais expressivos e elegantes dos nossos tempos dá-se graças a DJ Spoony, que homenageia essa cena musical nascida em Londres, através do projecto Garage Classic. Se as Sugababes são associadas à maquinaria pop dos anos 2000, não foi assim que começaram. Em One Touch, as adolescentes Mutya, Keisha e Siobhan deram voz aos pruridos próprios da sua idade, só que anormalmente equipadas com maturidade, espírito crítico e, acima de tudo, harmonias com que edificar o céu.
Como nesse álbum, o melaço profundo de Mutya, o mel encorpado de Keisha e o doce refinado de Siobhan voltam a encontrar-se sob o pano de fundo do garage. Um tema de 2000, das Sweet Female Attitude, ganha uma roupagem orquestral e electrónica que, mais do que desafiadora, é um cenário onde a Primavera pode voltar a desfilar sob os nossos olhos. A Primavera de três vozes que — depois de, em 2013, a pop monumental de “Flatline”, com produção de Dev Hynes/Blood Orange, ter sido ignorada — parecem ter voltado para ficar.
– Pedro João Santos
[Plutonio] “Sacrifício”
Que Sam The Kid tem o toque de Midas, já sabíamos. Que Plutonio tem o dom de entregar todas as suas músicas num embrulho que chega sempre a milhões, também já sabíamos.
A verdade é que este tema é diferente daquilo que temos ouvido da parte de Plutonio nos últimos tempos. Está mais retrospectivo, como em “3AM”, mas menos gabarolas. Está mais sério, com menos risinhos e a enveredar por um estilo que lhe conhecíamos, mas nunca tão afinado como aqui. Parece uma evolução saudável e talvez assinale um novo ciclo para o rapper que aparece em “Sacrifício” num tom confiante e seguro sem artifícios e com um novo flow.
Fica apenas uma nota apreensiva em relação ao próximo disco, que partilha o título com o mais recente single: esperamos que esta personalidade não se misture de forma inorgânica com o Plutonio mais festivo que conhecemos e gostamos.
– João Daniel Marques
[FKA twigs] “home with you”
Um único pensamento intrusivo é suficiente para nos levar numa espiral decadente dentro da mente de alguém; o mais ínfimo detalhe é forte o suficiente para nos afogar. FKA twigs consegue capturar minuciosamente esta ruptura emocional em “home with you”, um dos singles de Magdalene. Tenebrosa, mas firme na sua execução, a música alterna entre versos voluptuosos e pesados – quase como se fossem falados -, e uma leve passagem de piano. Faz uma ponte perfeita entre a dor cavernosa de “Cellophane” e a bravata de “holy terrain”. Os versos iniciais são robóticos, distorcidos, um chamamento às produções industriais de M3LL155X. Aqui há uma raiva que ainda não teve oportunidade de chegar à superfície, talvez porque twigs manteve-la bem escondida ou então evitar qualquer frustração interna. A verdade é que se torna num momento catártico, uma carta aberta a quem lhe fez mal e a quem a uso para ganho próprio: ““The more you have the more that people want from you/ The more you burn away the more that people earn from you/ The more you pull away the more that they depend on you”. No entanto, consoante o desenrolar do refrão, os temperamentos mudam: agora, twigs mostra-se vulnerável, recuperando qualquer altura de auto-determinação: “I didn’t know that you were lonely”, reflecte. A culpa e a sua solidão acabam por dar o braço a torcer e arrastam-na como se fosse já um corpo sem vida. Há que encarar os medos e as inseguranças do passado, de modo a expandir os limites da dor de cada um. Mas este processo de recuperação começa dentro de si mesma e tal motivo é-nos revelado no último verso: “I never told you I was lonely too”.
– Miguel Alexandre
[Virtus] “Fosco”
Em 2018, Virtus fundou a Fosco Records, uma nova editora independente que nasceu no seio do colectivo Sexto Sentido. A promessa de um novo álbum e a curiosidade por parte do público em perceber quem seriam as vozes que o iriam acompanhar nesta aventura causaram uma grande expectativa e a habitual especulação que existe quando uma figura de culto do panorama musical assume publicamente uma mudança nos ventos que guiam a sua carreira.
Até ver, as novidades não abundam mas há agora uma certeza de que Virtus veio para ficar e está disposto a alimentar os nossos ouvidos com uma certa regularidade. “Sono Profundo”, “Ainda Não Tem Nome” e “Trapézio” (na companhia de SP Deville) foram sucedidas por um tema que carrega o nome da camisola que agora defende. Sem apontar o dedo nem assumir uma posição vincada dentro de uma qualquer facção — chega a ser cansativo as constantes linhas imaginárias que se criam, que separam o boom bap do trap ou o “puro” do sell-out — o rapper e produtor do Porto diz-nos, com todas as letras, para aquilo que vem. Não há promessas de datas nem compromissos com mais ninguém a não ser com os valores que a sua própria arte defende desde sempre. E isso vale-lhe o nosso total respeito sem exigir nada em troca. Até porque não perdemos nada em regressar uma vez mais a UniVersos durante a espera. Pelo contrário, vale sempre a pena.
– Gonçalo Oliveira
https://www.youtube.com/watch?v=VLrcJEmz_d4
[Hemlock Ernst & Kenny Segal] “North To South”
Samuel T. Herring tornou-se famoso no papel de vocalista dos Future Islands, mas, aqui que ninguém nos ouve, os seus melhores momentos acontecem quando veste a pele de Hemlock Ernst, o alter-ego em que assume a sua faceta de rapper. Depois de várias colaborações com nomes significativos do hip hop underground norte-americano tais como Madlib, billy woods, Milo, Busdriver, The Alchemist, Oh No ou JPEGMAFIA, o artista norte-americano uniu esforços com Kenny Segal, produtor que vive actualmente em Los Angeles, para o longa-duração Back At The House.
Logo a abrir o disco, uma viagem de “North To South” com um instrumental do “celebrado maestro da orquestração não-quantificada na modalidade hip hop” a projectar melancolia através da guitarra, drums e um som de synth que vai e vem como uma má memória que nunca desaparece. Nesse cenário, as palavras de Ernst criam uma narrativa sobre inseguranças, fama e sinceridade, uma letra em que todos os que têm alguma consciência própria e de grupo se podem rever, mesmo que as situações e as circunstâncias não sejam exactamente iguais.
– Alexandre Ribeiro