pub

Texto: ReB Team
Publicado a: 01/06/2022

De Regis a Shabaka.

#ReBPlaylist: Maio 2022

Texto: ReB Team
Publicado a: 01/06/2022

Paradoxos, exercícios complexos de desconstrução interior ou entradas pouco lineares para outras dimensões da vida: agarrem nestas escolhas da redacção e levem-nas convosco para casa (seja ela onde for).


[Regis] “Untitled 1”

O patrão da malograda Blackest Ever Black não desistiu da música com o fim do seu selo — e existindo um deus ou mais a quem possamos agradecer, que seja esse um dos motivos. Regis, um dos nomes charneira dos technos de graves protuberantes, reaproxima-se da editora britânica Osiris Music para um single a dois tempos, sendo o originalmente intitulado “Untitled 1” um deles. A lista de elementos base do techno está lá, mas cheio das nuances a que o veterano da electrónica nos habituou. Os kicks abusivamente graves, compassos em 4/4 e samples cheios de negrume e fel são os lugares-comuns do género a que Regis atribui o seu toque de Midas ao quebrar cadências aborrecidas com elementos rítmicos em contratempo e em omissões estratégicas de elementos percussivos aqui e ali, só para nos fazer o displante de não nos aborrecer; a produção, claro, ajuda a que tudo trema e o corpo, obviamente, vai atrás. Guardem os bocejos para outro technão, que este é totalmente techsim.

– André Forte


[Kendrick Lamar] “Auntie Diaries”

O Alexandre Ribeiro já o explicou por aqui, melhor do que eu saberia fazer. Em Mr. Morale & the Big Steppers, Kendrick Lamar cortou o filtro para tentar comunicar com verdade. E ao fazê-lo decidiu falar com as entranhas expostas e de coração aberto, representando-se, perante quem o ouve, com a máxima honestidade que conseguiu. O que não é pouco, diga-se de passagem, para alguém que vive no tempo da exposição total e no centro de todos os holofotes – esse lugar onde tantas vezes a pressão mediática convida à encenação permanente; e onde demasiadas vezes a falsa empatia parece colher mais louros que a honestidade. Por isso mesmo, ao decidir cortar o filtro com frontalidade, Kendrick Lamar expôs também muitas das suas contradições. “Auntie Diaries”, a 15ª faixa do álbum, é a melhor expressão disso mesmo. Lamar abraçou, sem receios, o desafio de trabalhar sobre a tensão entre a educação religiosa, conservadora e fóbica em que foi educado, e as relações de profunda intimidade, amizade, amor e companheirismo que toda a sua vida partilhou com o seu tio e a sua prima, pessoas transgénero, cujo processo de mudança de identidade de género nem sempre compreendeu. Toda a música vive dessa tensão crescente, de quem reflete, em retrospetiva e no presente, sobre o seu processo de crescimento, reconhecimento e aprendizagem. Fazê-lo com honestidade e sentido autocrítico não é coisa pouca, volto a dizer, quando seria mais simples ignorar o assunto, replicar três hashtags ou repetir meia dúzia de slogans sem significado. Ora é justamente porque o seu esforço é honesto, que as críticas que lhe são dirigidas devem ser abraçadas sem receios. É que apesar das boas intenções, Kendrick Lamar foi muito pouco cuidadoso em algumas opções que fez: o uso excessivo e pouco ponderado que faz de expressões de insulto homofóbico e transfóbico (uso, esse, que dificilmente admitiria se fosse um branco a usar a n-word para falar do seu processo de desconstrução do racismo), mesmo que por razões instrumentais à narrativa, mostra que devia ter dedicado mais algum a tempo a pensar no assunto; tal como a falta de cuidado nas referência à identidade de género (quando, por exemplo, canta “My auntie is a man now/ I think I’m old enough to understand now/ Drinking Paul Masson with her hat turned backwards), revela que foi pouco sensível, ou que pensou pouco, sobre misgendering e deadnaming. Ouvir as críticas que lhe são dirigidas é importante, sobretudo para quem construiu uma música onde se sente, em cada linha, que se procura ter o coração do lado certo, mesmo quando isso implica uma rutura biográfica profunda. É por isso que não tem sentido alimentar a dicotomia entre a absolvição e a condenação. “Auntie Diaries” não justifica que se batam palmas ao novo “aliado” Kendrick pelo esforço que fez para desconstruir a transfobia; nem tão pouco que este seja implacavelmente condenado por ter ainda trabalho pela frente (não temos todxs?); muito menos autoriza as críticas que argumentam que há um “problema” nas comunidades negras com a transfobia, como se a branquitude, enquanto sistema de poder, não se tivesse também fundado na heteronormatividade. O que a música nos revela, acima de tudo, é um ser humano em formação: nem herói, nem vilão, é Kendrick Lamar a falar-nos, com honestidade, sobre os seus processos de desconstrução, as suas aprendizagens e as suas contradições. Não para as reproduzir, mas para as tentar superar. É alguém a tentar discutir os seus (e os nossos) paradoxos, a arriscar expô-los ao mundo, porque no fim da jornada, apenas quer escolher o lado certo. Se ainda houver espaço para o diálogo e para fazer da crítica um instrumento de trabalho coletivo, esta música é uma excelente matéria de trabalho para quem quer pensar as dificuldades, mas também as potencialidades, de tentar construir um mundo livre de ódio. 

– João Mineiro


[black midi] “Welcome To Hell”

Passou essencialmente um ano desde que os black midi colocaram cá fora Cavalcade, mas a banda britânica formada por Geordie Greep (vocais e guitarra), Cameron Picton (vocais, baixo e sintetizadores) e Morgan Simpson (bateria) já se encontra num novo ciclo em direção ao seu terceiro longa-duração, Hellfire, que tem data de lançamento marcada para o próximo dia 15 de Julho. O primeiro avanço foi revelado no início do mês e chama-se “Welcome To Hell”.

“Se Cavaldade era um drama, Hellfire é como um filme de acção épico”. Foi assim que Greep descreveu o próximo álbum dos black midi e “Welcome To Hell” não perde tempo em colocar-nos nesse caldeirão efervescente e claustrofóbico que é a música do grupo. Seguindo a sonoridade apresentada em algumas faixas de Cavacalde, como “John L” ou “Hogwash and Balderdash”, “Welcome To Hell” é caos ruidoso em forma de música, surrealismo a la Alejandro Jodorowsky apresentado via um noise rock intenso e desenfreado apimentado por toques bem presentes de um jazz mais avant-garde e um rock mais progressivo. Por outras palavras, “Welcome To Hell” é parte King Crimson, parte Primus e Cardiacs – e “Welcome To Hell” é de tal forma influenciado por Cardiacs ao ponto que só podemos concluir que Tim Smith (que infelizmente nos deixou em 2020) estaria mais que orgulhoso dos seus pupilos mais prodigiosos pela homenagem ao seu legado.

Como é que uma canção como “Welcome To Hell” arranja forma de ficar presa na nossa mente durante horas a fim após a ouvirmos? Não sabemos – é quase contranatura que assim o seja. Mas se o Inferno tem banda sonora deste gabarito, talvez não seja nada mau ir lá parar.

– Miguel Rocha


[Leikeli47] “Get The Riches”

O rap bossy e glossy de Leikeli47 continua na ordem do dia. A misteriosa MC de Brooklyn surgiu durante a década passada e colmatou a ausência do game por parte de Missy Elliot com banger atrás de banger, até cimentar o seu nome e servir de exemplo para outras que lhe sucederam, como Tierra Whack ou BbyMutha.

Depois de se ter esfumado dos radares durante o período mais crítico da pandemia, regressou este mês com Shape Up, o seu quarto longa-duração pela RCA Records, editora que a descobriu ainda em 2015. Fiel à sua sonoridade, Leikeli47 veio munida de baixos possantes e 808s ultra-saturados, pronta a tomar de assalto qualquer sistema de som com o mínimo de pujança e a colocar em sentido todo o rapper cuja letra não é tecida com o mesmo grau de detalhe com que a batida é polida, ao abrigo da música de club mais fora-da-caixa, algures entre o hip hop e o r&b mas assumidamente dançável e electrónica. Na penúltima faixa é com uma surra de bombos e um flow endiabrado que nos pontapeia até à saída.

– Gonçalo Oliveira


[Studio Bros] “Sundiata Keita” feat. Dandara

15 segundos foram o suficiente para ficarmos convencidos que, no futuro, Dands teria o r&b feito a partir de Portugal nas mãos. Esta foi a ideia com que ficámos quando, em Março de 2021, publicou um curto vídeo na companhia de Conductor (Buraka Som Sistema, Conjunto Ngonguenha) no Twitter. Esse tema ainda não saiu — e esperemos que não fique na gaveta –, mas, mais de um ano depois, a voz doce de Dandara entrou-nos, mais uma vez sem aviso, pela casa adentro, desta feita numa participação em “Sundiata Keita”, uma das canções do belíssimo álbum de estreia dos Studio Bros. O grupo formado por Famifox e Nunex descreve-a como “super talentosa” e uma “verdadeira força africana”, revelando pelo caminho que ela tem apenas 21 anos e origens guineenses. Nem precisamos de saber muito mais, honestamente — que venha esse EP de r&b que promete na sua página de Instagram.

– Alexandre Ribeiro


[Ana Moura] “Agarra Em Mim” feat. Pedro Mafama

“Agarra em mim/ Antes que eu morra” é a maneira como Ana Moura abre este sentido pranto de seu nome “Agarra Em Mim”. Num mote poético de último recurso (ou pedido), dramático como o mesmo se apresenta e como o fado tanto pede, inicia-se uma forma urgente de expor o que se sente, numa voz e palavras que prometem atingir (até encher) o caldo lacrimal das almas mais sensíveis. Juntemos a esta confissão a produção de Pedro da Linha e está montada uma das mais belas kizombas para se dançar a dois deste 2022.

E, entre lágrimas (literais e não-literais), e batidas são proferidas as seguintes linhas: “Só vai sobrar a faca/ Que os dois usamos/ P’ra nos amar”, mostrando como o fado de Ana Moura, por mais metamorfoses que sofra, não se separa de si e de como amar é também entregar a faca a alguém, à confiança, e esperar que não nos caiba a nós sofrer o corte.

Neste caso, esse objecto “cintilante” é depositado nas mãos de Pedro Mafama, que entra no beat pronto para a agarrar e assumir responsabilidades. “Desculpa se eu não agarrei em ti/ Quando tu ‘tavas a cair” é como Mafama responde, dito de forma que vem corroborar como tanto sentimento pode ser um leap of faith, harmonioso com o início do vídeo, onde vemos Ana Moura a cair do céu, grávida, com energia de divine feminine e voz de deusa.

O tom assertivo do autor de Por Este Rio Abaixo, com algumas nuances de rap, assenta que nem uma luva no instrumental, em que o distinto som da guitarra portuguesa e entoações da nossa música tradicional e da música árabe andam aos beijos com sonoridades mais modernas da chamada música urbana: uma tempestade perfeita para estas variações que são os “novos fados”, lembrando também outro artista que contribuiu para este som, Conan Osiris.

Esta música, assim como “Andorinhas” e “Jacarandá”, servem como vislumbres para o novo álbum da fadista que, segundo a própria, terá algumas das suas primeiras experiências a manipular a sua própria voz. Por enquanto, ficamos com este hino que exsude a sensualidade que há em nos despirmos do que sentimos e esperar que seja correspondido pelo meio de joelhos entrelaçados e braços à volta da cintura.

– Beatriz Freitas


[Wiki] “Home”

Half God, disco de Wiki inteiramente produzido por Navy Blue, teve edição em Outubro de 2021, mas continua bem presente em Maio de 2022. Caso para estranhar esta digestão lenta, quando o panorama musical nos empurra para a próxima novidade, seja ela de que escala for. 

Ainda assim, o rapper nova-iorquino ditou outro ritmo para aquele que se apresenta como o seu trabalho mais coeso (aqui mérito, também, de Sage Elsesser), maduro e aprimorado. O disco respira uma longevidade que não responde à urgência de o consumir sofregamente. Talvez por isso Wiki tenha estendido a revelação dos vídeos alinhados com os temas do álbum.

“Home” é a mais recente faixa a merecer destaque isolado com complemento visual, em que a simples e, por isso mesmo, brilhante realização de Broken Antenna estabelece um paralelo (se assim quisermos interpretar) pelos planos tripartidos, entre o antes, o agora e o depois que representam este trabalho do MC — por oposição à ideia original da mudança constante e inconformada, e à consequente falta de estabilidade subjacente à canção. Essa é uma ideia que casa francamente melhor em “Home”.

– Paulo Pena


[Ricki Monique] “FTG”

Podíamos perder todo o tempo do mundo a tentar adivinhar o significado da sigla “FTG”, mas sugerimos antes “perder” dois minutos e 20 segundos para ouvir a música com o mesmo nome. Ricki Monique apresenta um título abreviado para um tema em que abre o jogo e, em cima de uma batida que nos lembra uma versão mais descontraída dos BADBADNOTGOOD, discursa sobre a sua vocação para a arte musical e sobre se manter fiel ao seu sonho. Fá-lo de forma pacata mas nunca desarmada, pronta a disparar barras em todas as direcções. “It might crash/ It might burn it all seems/ This is what it feels like/ To have a motherfuckin dream”, palavras que Monique repete na música e certamente no seu diálogo interior. Podemos não saber o significado de “FTG” mas fica a certeza de que esta música é FTD (for the dreamers).

– Miguel Santos


[Shabaka] “Call it a European Paradox”

“Call it a European Paradox”, sugere Shabaka Hutchings no seu primeiro registo em nome próprio, o mais do que curioso Afrikan Culture, lançado pela “sua” Impulse. Acompanhado por Kadialy Kouyate na kora, Alina Bzhezhinska na harpa e Dave Okumu na guitarra, Shabaka — que agora deixou cair o apelido –, recorre a uma série de sopros tradicionais, incluindo flautas de bamboo japonesas, para nos apresentar uma proposta musical muito diferente das que foi libertando à frente dos Ancestors, Sons of Kemet ou The Comet Is Coming.

E é, de facto, de um complexo paradoxo que se trata: não só temos em modo reflexivo, espiritual e extático um criador que não se tem poupado a diferentes graus de propulsão para investigar os pulsos de África, das Caraíbas ou do espaço sideral, como o temos agora a tentar ligar-se à mais profunda vibração primordial do grande continente negro usando instrumentos orientais e uma perspectiva académica desenvolvida na Europa. Shabaka está consciente disso, mas tal não o impede de criar uma música profunda, que descarta o imediatismo percussivo em favor de uma mais interior demanda pela sua própria origem. Poderá estar aí parte da explicação para ter largado Hutchings do seu nome. 

– Rui Miguel Abreu

pub

Últimos da categoria: #ReBPlaylist

RBTV

Últimos artigos