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Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 11/06/2023

De Yves Tumor a Blur.

Primavera Sound Porto’23 — Dia 4: novos fenómenos e heróis aclamados num dia claramente punk

Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 11/06/2023

As previsões eram favoráveis e ver um céu limpo ao olhar para cima fazia mesmo querer que o último dia do Primavera Sound ia decorrer sem a necessidade de voltarmos a vestir os impermeáveis. A única coisa que chove agora são as memórias de mais uma bela temporada de música vivida no Porto, onde pudemos ver em acção alguns dos nossos artistas favoritos e ainda descobrir nomes nos quais não tínhamos reparado antes. Antes da derradeira reportagem, esta é uma boa altura para pensar em balanços e recordar o que se escreveu por cá a propósito do primeiro, segundo e terceiro dia deste festival, em que vimos Kendrick Lamar e Baby Keem debaixo de chuva torrencial, nos rendemos a prestações de ROSALÍA ou Fred again.. e deixamo-nos seduzir pelos universos de Tokischa, NxWorries e Darkside. Já só ansiamos pela próxima edição.



Se na última reportagem aplaudimos a pontualidade dos espectáculos da edição deste ano do Primavera Sound, na noite de ontem trocaram-nos as voltas. Estava tudo cronometrado para uma ida rápida à casa de banho, que permitiria chegar a tempo e horas ao palco Super Bock, para o qual Yves Tumor estavam escalados. A verdade é que foi a partir de um cubículo sanitário que tivemos o desprazer de escutar “God Is a Circle”, uma daquelas malhas que queríamos certamente ter tido a oportunidade de dançar. Ainda foi possível desbundar durante os últimos segundos do tema que integra o mais recente disco de Sean Lee Bowie — Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds) —, editado há três meses pela sempre certeira Warp Records. Foi também desse último LP que saíram as músicas seguintes, “Echolalia” e “In Spite Of War”. Antes deste terceiro tema, resmungava-se ao microfone: “Metam a minha voz mais alta! Vocês conseguem ouvi-la? Esta é a última paragem da digressão e eu quero a voz mais alta!” Ainda nos ocorreu a possibilidade de que o caldo pudesse entornar a qualquer momento, mas tudo correu pelo melhor.

Num dia em que o rock e o punk ditaram as regras do jogo no certame, com um público certamente atraido por nomes históricos como New Order e Blur, foi bonito ver que há também muita gente a prestar atenção a nomes mais emergentes, tendo o espectáculo de Yves Tumor gozado de uma das maiores assistências do palco onde tocaram. Melhor ainda foi perceber que poucos foram os que viram a actuação através de um ecrã de smartphone, totalmente focados no que se estava a passar à vista desarmada e ao som que emanava das colunas, embalados não apenas pelos temas mais frescos, mas também por faixas de outros projectos anteriores, com Heaven to a Tortured Mind e The Asymptotical World à cabeça.

Já perto das duas mais cheias de canções interpretadas, apanhámos um novo susto depois de escutar um grande “thank you” que soava a despedida, ideia também sustentada por termos os cinco músicos a acenar-nos e as luzes a desvanecer em simultâneo. Tudo não passava de uma “Parody”, e a nossa confiança para com Yves Tumor ia decrescendo após uma nova partida. A fé na música? Essa manteve-se inabalável e acreditámos sempre na escolha do repertório trazido para este concerto. Ainda assim, não podemos deixar de sublinhar a tristeza pelo facto de “Folie Imposée” e “Romanticist” não terem atravessado o Atlântico na bagagem da banda que teve Bowie como vocalista, Chris Greatti na guitarra solo, Gina Ramirez no baixo, Rhys Hastings na bateria e Yves Rothman na guitarra ritmo e componentes electrónicas.

Já perto do final, a figura principal do grupo ainda arriscou tocar um guizo enquanto cantava. E aqui o termo “arriscar” não é empregue para definir o grau de dificuldade que é manter um ritmo simples com tal instrumento de percussão, mas sim porque o chegou a bater contra a sua própria cabeça no clímax do tema, enquanto se deixava estar ajoelhado no chão do palco. Não muito depois, voltam a querer enganar-nos com um “ainda temos mais 10 faixas para tocar para vocês”, mas a credibilidade já tinha sido completamente destruída pelos episódios anteriores e o relógio fazia antever que a performance do quinteto estava mesmo a chegar ao fim. Para último lugar no alinhamento ficou “Kerosene!”, certamente uma das mais esperadas de todos os que estavam ali presentes a assistir. Nesta última, Bowie e Greatti passaram muito tempo colados à frontline da plateia, com o guitarrista a levar a coisa para um patamar de dimensão acrescida quando confiou nos fãs para o manterem elevado num crowdsurf enquanto aplicava os últimos solos com os dedos nas cordas. Antes de se despedirem, ainda se escutou um: “Este é o nosso último concerto de sempre! Vamos terminar a banda!” Uma vez punk, punk para todo o sempre.

— Gonçalo Oliveira



À terceira é de vez. No culminar de uma das edições mais longas do Primavera Sound, o último dia viu o seu palco Vodafone ser agraciado por uma das performances mais aguardadas do ano – New Order.

Quando Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris decidiram reunir-se para desconstruir e reconstruir um projecto sem Ian Curtis na frente de Joy Division, a ideia para New Order acabou por seguir um rumo que nos anos 80 se tornou revolucionário na club scene inglesa — guitarras e sintetizadores? Por favor, sim. Deixando para trás a estética sombria que avassalou a fase anterior, a banda emergiu das cinzas para (apesar de alguns hiatos e trocas de membros) se manter ativa até aos dias de hoje. Hits como “Blue Monday” e “Age of Consent” tornaram-se hinos eternos para muitos de nós.

O concerto de ontem visitou os seus álbuns mais importantes, tais como Substance e Power Corruption and Lies (dentro daqueles que foram os seus primeiros trabalhos), mas também um dos seus mais recentes álbuns Music Complete, de 2015, que conta com faixas memoráveis como “Restless” e “Academic”.

Apesar dos visuais não terem feito jus a todas as expectativas que provinham do público — e convém constatar que os visuais deste Primavera Sound, numa perspectiva geral, foram dos melhores de todas as edições — o que feriu mais as susceptibilidades de quem se moveu para ver New Order, foi o que aconteceu quando passavam 20 minutos da meia-noite. 

É um facto que, depois de tanta chuva e desafios técnicos e logísticos durante o festival, a força de permitir que as coisas continuassem a acontecer foi muita e toda a equipa do Primavera triplicou o seu esforço para avançar. No entanto, aquando da performance de “True Faith”, o som no concerto de New Order parou por completo. Só depois de três tentativas é que o problema se solucionou, forçando Stephen Morris a ir directo ao assunto para nos presentear com a tão aguardada e icónica música “Blue Monday” para, pouco depois, terminar com uma cover da mais famosa música de Joy Division, “Love Will Tear Us Apart”.

Apesar de toda esta situação ter provocado um misto bem grande de emoções, foi notória a insatisfação tanto por parte da banda como por parte do público que, claramente, queriam ter tido mais tempo de partilha. Morris despediu-se com bastante carinho do Porto e, esperamos incessantemente, para que uma próxima oportunidade possa ver esta ser compensada.

— Maria Carvalho



Metódica e infalível. O percurso académico de Marina Herlop pode ajudar a explicar o quão certeira é em palco, onde actua sozinha atrás de um microfone, um teclado e mais umas quantas peças de parafernália musical que a ajudam a alcançar um resultado que tem tanto de celestial como de sinistro. No tema de abertura, por exemplo, parecia estar a cantar sobre o que poderia ser o som de uma caixinha de música, que por vezes parecia vinda dum filme da Disney, por outras de uma película de terror vintage já em avançado estado de degradação. Seja qualquer for a frequência em que se alinha, soa sempre bem e facilmente encanta quem decidiu fintar Blur nesta recta final do festival. Foram poucas, é verdade, mas boas: estas cerca de 100 pessoas que se juntaram à sua frente estavam bem compactadas e faziam barulho a valer por 1000 cabeças que pudessem estar menos interessadas no assunto.

Entre a tradição da música catalã, as melodias e harmonias da clássica e a modernização através da electrónica, a cantautora assinou uma performance imaculada — de se lhe tirar o chapéu, mesmo. A voz alcança agudos que poucos conseguem sem vacilar, a técnica nas teclas é bem acima da média e a postura é a de quem está treinada com décadas de estrada, apesar de ainda estar bem no início da casa dos 30. “Não estou habituada a tocar a estas horas tão tardias,” chegou a dizer entre sorrisos. Mas a verdade é que não se notou mesmo nada.

Não sendo propriamente profundos conhecedores da sua obra, deixamo-nos encantar facilmente dadas as parecenças que encontramos com o trabalho que tem sido desenvolvido em terras lusas por Ana Lua Caiano. Em comparação com a portuguesa, Herlop é claramente mais evoluída do ponto-de-vista musical, mas não parece apta a desdobrar-se nos infinitos instrumentos que Caiano costuma trazer consigo para as actuações. Como consequência, nem tudo o que se escuta por aqui é tocado ao vivo — há uma boa dose de material pré-gravado trazido a partir de casa. Mas o que lhe sai das mãos e das cordas vocais em tempo real é, de facto, soberbo.

Quando demos por nós, os números da plateia já tinham, pelo menos, dobrado. Para quem arriscou vir aqui espreitar, foi difícil não se deixar ficar até ao fim. Cremos que há um futuro enquanto A&R em todos estes indivíduos, capazes de escutar nesta artista o mesmo que a PAN conseguiu. Foi pelo selo de Berlim — responsável por andar aí a caçar talentos como os de Amnésia Scanner, Beatrice Dillon, Eartheater, Objekt ou o próprio Yves Tumor numa fase precoce da sua carreira — que editou o seu mais recente Pripyat, peça de abstracionismo electrónico que esteve em destaque nesta sua passagem pelo Primavera Sound.

— Gonçalo Oliveira



A tão aguardada atuação de Blur no Primavera Sound aconteceu no palco principal, para marcar um retorno e evocar a nostalgia que só o grupo inglês, neste festival, podia ter evocado.

O que seria de Blur sem Damon Albarn? A sua carreira é riquíssima em histórias e lançamentos que ficarão para sempre no legado pop-rock que tem vindo a construir pelo mundo fora. Qualquer pessoa que ouça qualquer outro género de música, as crianças e as gerações mais antigas: todos nós, sabemos o que significa “Wo-ho” quando cantado naquele que é o tom inconfundível do refrão da “Song 2”. Assim que se ouve Albarn cantar, sabemos quem é, e sabemos quem é Blur. A banda já ultrapassou os trinta anos de experiência, uma incontável acomulação de álbuns lançados e uma energia soberba que lhes cabe na palma da mão.

Para encerrar o festival e deixar ecoar os trechos mais memoráveis do seu trabalho, a visita a “Beetlbum”, “Girls & Boys” e “Parklife” foram impreteríveis. No entanto, o que permitiu a este concerto diferenciar-se do anterior, há exatamente dez anos atrás, foi o facto da banda britânica ter trazido canções como “The End” — apoteótica e raramente tocada ao vivo — mas também a versão a capella de “Tender”, que nos deixou a todos em estado lascivo.

O final foi construído muito calmamente, tornando Blur uma das mais longas atuações do festival. Com mais calma do que a que lhe costumávamos conhecer, Damon Albarn irradia o público com a sua voz em “The Universal” para, ao terminar um concerto nostálgico, agradecer aos seus estimados fãs por ter podido partilhar a sua “estúpida música” com eles.

— Maria Carvalho



“Eu paguei 70 paus para ver Drain Gang” é uma declaração de interesses que não contávamos ouvir durante este festival. Mesmo balizados no espectro do rap, a música feita pelo conjunto sueco já extravasa o nosso raio de alcance, e palavras destas reproduzidas à hora que os Blur — banda responsável pela grande enchente no quarto e último dia de Primavera Sound deste ano — tocavam dão que pensar.

Afinal, que grupo é este que a meia hora de subir ao palco Plenitude tem já umas dezenas de inconfundíveis fãs em espera ansiosa? A organização comparava-os a uns Odd Future, mas este colectivo deve muito mais — não só pelas origens geográficas — a um Yung Lean (com quem já colaborou sob o mesmo selo editorial, aliás). Não é de estranhar, portanto, a adesão de uma massa adepta muito específica, que destoa do festivaleiro médio do Parque da Cidade, para lá das duas da manhã e depois dos grandes nomes do dia terem cumprido calendário.

A hora seguinte, já com a programação a dar as últimas desta 10.ª edição, viria a escalar em nós um sentimento de perplexidade por vários motivos: o quarteto composto por Ecco2k, Thaiboy Digital, Bladee e o produtor White Armor, divididos em palco debaixo de cores e luzes psicadélicas, vai apresentando um repertório bem mais vasto do que esperaríamos ver — e isso explica-se pela já considerável longevidade que alcançaram nestes (mal imaginávamos nós…) dez anos de carreira, longe dos serviços de streaming tradicionais, mas bem presentes no Soundcloud, plataforma que os caracteriza musicalmente, por sinal. Depois, porque, apesar do cloud rap ensopado em auto-tune (que nem sempre abona a favor de quem o usa, há que dizê-lo), estes rapazes de Estocolmo têm uma presença em palco contagiante — sobretudo quando furam o sub-género com batidas emprestadas pela electrónica. E ainda por, não obstante a falta de interacção com um público manifestamente entusiasmado com a sua actuação, não perderem o pulso à plateia que os acompanha quer com particular êxtase nas primeiras filas, quer com a atenção conquistada às restantes. Se a quem desta água continua a garantir que não a beberá em sede própria a coisa pareceu mais que bem, aos verdadeiros fãs — que ainda eram uns quantos — os “70 paus” terão valido, certamente, cada centavo.

— Paulo Pena


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