Não queremos fazer da chuva actor principal deste filme, mas quando o cenário se pauta por relva — e, consequentemente, lama — em (praticamente) tudo o que são palcos, esse não deixa de ser um factor determinante na nossa experiência diária. A boa notícia é que a pluviosidade parece mesmo ter arredado, o que nos deu uma margem de manobra mais folgada para bater todo o terreno. E a oferta programática deste terceiro dia de festival veio precisamente ao encontro dessa renovada disponibilidade.
Há sempre falhas por onde pegar, e esta edição, reconfigurada em termos de nome, espaço e até duração, não tem sido poupada a críticas pelos festivaleiros mais exigentes. Mas justiça seja feita à organização (que no fundo não tem feito mais do que cumprir o seu papel) no que aos horários diz respeito. Regra geral, os artistas têm subido a palco à hora exactamente marcada, o que nos penalizou perante um ligeiro atraso em relação a Pusha T: à chegada ao palco Super Bock já os graves se ouviam a estalar à distância, prenúncio nada favorável para as nossas expectativas moderadas sobre o rapper nova-iorquino.
Irónico que, mal cheguemos ao vale relvado do referido palco, Pusha T atire, “We Don’t do festivals”. Não só os faz, como até os encabeça a dobrar: na memória ainda guardávamos os relatos de uma actuação relâmpago no Super Bock Super Rock’17 que se viu compactada de maneira a que King Push apanhasse um voo a tempo de tocar noutro país no mesmo dia. E isso já nos trazia de pé atrás às suas intenções para com o Parque da Cidade.
Melhor ser surpreendido pela positiva do que o contrário. O truque é manter as expectativas moderadas, para não haver desilusões. Nesse estado de espírito, a hora reservada ao autor de It’s Almost Dry (2022) — disco que serviu de barómetro do público a meio caminho da actuação — revelar-se-ia bastante satisfatória. Don’t get me wrong, como se diz na terra de Terrence Thornton: aquele que se fez à estrada do hip hop a bordo de um Lincoln Continental descapotável dos anos sessenta, com o irmão ao volante e Jesus Cristo no banco de trás (falamos de Lord Willin’, célebre disco do duo Clipse, editado em 2002 pelos irmãos Pusha T e No Malice) continua a ser, por estes dias, uma grande referência no rap norte-americano. Agora, houvesse menos teatro interactivo com o DJ Yoo Q! e incentivos aos, aqui, desapropriados mosh pits, e mais MCing ao estilo do Bronx, e teríamos rumado ao concerto de NxWorries de barriga cheia.
— Paulo Pena
Foi como puro abastecimento em plena auto-estrada que NxWorries subiu ao palco Vodafone do Primavera Sound para, ao comando de Knxwledge e Anderson .Paak, ressuscitarem num novo formato o fenómeno “diva” que a disco e o funk nos ensinaram tão bem nos anos 80.
Apesar de NxWorries contar apenas com um álbum, um EP e alguns singles editados, o seu trabalho ao longo dos últimos sete anos (desde que lançaram o seu mais recordado trabalho Yes Lawd!) tem vindo a estar na boca e nos ouvidos do mundo. Por um lado, o groove inabalável de .Paak que circula em si quase como pela corrente sanguínea e, por outro, ao abrigo de toda uma carreira premiada como produtor, Knxwledge, capaz de libertar em palco o óbvio inesperado.
Todo o concerto do super duo americano foi acompanhado pelo pôr-do-sol mais bonito que o festival viu durante os últimos dias e, numa viagem pelos seus últimos singles “Where I Go” e “Daydreaming”, acarinhadamente dedicada a um público insaciável, a evilness inocente que .Paak transpira é a sua maior capacidade para comandar um serão de puro deleite. A ordem de acontecimentos que culminaram na apoteótica performance de “Suede” contaram com momentos em que Knxwledge liderou a mistura para batidas de canções que ficaram na memória da VH1. Desde Lenny Kravitz a Bobby Caldwell e, sem nunca deixar escapar os momentos mais únicos, o ressuscitar da voz de Whitney Houston com “I Wanna Dance With Somebody”, também projetada nos visuais, tornaram todo o concerto na cereja no topo do bolo do festival.
— Maria Carvalho
Escuridão total às 22h. Depois um painel com traços brancos em movimentos e piscares glitchy, que pouco a pouco se levanta e deixa uma dupla a descoberto. Dois candeeiros lançam um par de focos de luz que incide na vertical e escorre sobre os corpos de Neil Tennant e Chris Lowe, quase como se o concerto fosse decorrer num qualquer parque nos subúrbios de Londres — “Onde as ruas não têm nome”, conforme cantariam num medley que junta o êxito dos U2 a “Can’t Take My Eyes Off You”. Ambos envergam uma máscara metálica que lhes faz ganhar um par de antenas, a fazer lembrar um diapasão que lhes assenta na testa. A julgar pela afluência em torno do palco Porto, os Pet Shop Boys estão mais do que afinados com o enorme legado que carregam na cena synth pop, um movimento que ficou para sempre cravado na história cultural dos anos 80 e parece estar a ser recuperado por algumas das maiores estrelas da actualidade musical, de The Weeknd (vimo-lo ao vivo esta semana) a Charli XCX.
Os rostos do par não ficariam tapados por muito tempo e, ao nível da disposição espacial e das funções que assumem no espectáculo, Tennant surge do lado esquerdo e dá uso à voz, enquanto que Lowe opera um teclado e exibe os habituais óculos escuros e um boné com um garrafal “BOY” estampado acima da pala. Abrem o concerto com “Suburbia”, “Can You Forgive Her” entra de seguida e não bastou muito mais para percebermos ao que vínhamos. Muita gente vibra, mas os Pet Shop Boys parecem não ter nada de novo a acrescentar a um repertório que ficou parado no tempo, fazendo desta actuação uma réplica de algo que já foi visto e escutado vezes sem conta ao longo das últimas décadas. A nível visual, nota-se o esforço em dar algum dinamismo à coisa, mas tudo sabe a conceito pós-datado. Fica a intenção registada e a nós resta-nos esperar que os seus maiores clássicos nos convidem para algumas danças ao longo do alinhamento.
Umas quantas músicas depois, antes de começarem a tocar “Left to My Own Devices”, o palco entra em “obras”. Quatro indivíduos vestidos de operários da construção civil retiram os dois candeeiros e, a partir deste ponto, Tennant e Lowe deixam de estar sozinhos, juntando-se a eles mais três músicos — um par de teclas mais uma bateria e secção de percussão electrónicas são somados à equação. Foi através desta formação que o grupo inglês deu aso a outras canções mais sonantes do seu catálogo, com “Domino Dancing” ou os covers de “Go West” e “Always On My Mind” a serem os mais bem recebidos pelo público. O melhor, como é habitual nestas coisas, fica sempre reservado para o fim: “It’s a Sin” foi interpretado ainda no formato de quinteto, já “West End Girls” surgiria após mais uma breve paragem, que retirou os outros instrumentistas novamente do quadro e voltou a colocar os dois artistas principais debaixo das luzes dos candeeiros, tal como tinha começado. Depois de agradecerem aos que por ali passaram para os ver, os Pet Shop Boys ainda nos brindaram com “Being Boring” antes do adeus definitivo.
— Gonçalo Oliveira
É o “problema” dos grandes festivais: vamos de ideias fixas num roteiro que passa por aquilo que tão bem conhecemos e que tanto queremos ver que esquecemos o princípio básico da música — descobri-la. Não fosse, então, King Kami estar escalada ao palco Bits, e quem vos escreve não teria, provavelmente, entrado no pequeno pavilhão reservado às batidas mais verticais desta edição do Primavera Sound.
Engraçado como a transição dos grandes palcos para o espaço de clubbing do recinto acentua tanta diferença na amostra de festivaleiros. Mudam as gentes, as roupas, as danças e as motivações. Arriscamo-nos a garantir até, a julgar pelo que pudemos decifrar dos poucos semblantes sem óculos escuros, que nesta hora e picos as dezenas de espectadores estavam, exclusivamente, concentradas no set em alta rotação. Mas atenção: isso não se deve apenas à cadência especialmente acelerada das batidas apropriadas ao espaço em questão. Estamos em crer que “o funk jogado-na-nossa-cara” e o “tecnobrega de bolinha vermelha”, a que já em Abril passado havíamos assistido aquando da segunda edição do Sónar Lisboa, foi determinante — como aliás ficou patente logo na primeira fila, onde iam surgindo cartazes e panos com o nome da DJ brasileira sediada em Portugal — na entrega de um dos públicos mais genuínos que encontrámos até agora nestes três dias de festival. E os sorrisos tímidos, descaídos pela carioca reservada perante uma plateia rendida, foram a derradeira prova disso mesmo.
— Paulo Pena
Tínhamo-lo visto há quase um ano, na edição de estreia do Rolling Loud na Praia da Rocha, em Portimão, e essa primeira impressão havia sido francamente positiva. Vê-lo, porém, enquanto cabeça-de-cartaz de um festival como o Primavera Sound não deixou de nos surpreender à partida. Ainda assim, tendo sido um dos poucos grandes artistas alocados ao palco principal a não vedar o acesso da imprensa ao fosso, as primeiras filas confirmavam a aposta do festival no rapper britânico: uma mancha de gente nova, aspirantes a jovens-adultos que tomam o drill como a sonoridade predilecta da sua geração — que vibra igualmente com temas desde “goosebumps” a “Look At Me!”, escolhidos a dedo pelo DJ responsável pelo aquecimento da plateia bons minutos antes da subida de Central Cee a palco.
E ele lá sobe, para lá da uma e meia, logo com “Loading” a dar por terminada a espera. Entra sozinho, confiante, oleado, entre jactos de fumo e labaredas. E para alguém da dimensão do rapper de West London — como faz questão de nos especificar ainda a princípio — o formato minimalista de concerto de rap entre MC e DJ é mais do que suficiente para dar conta do recado. Ainda para mais quando a plateia, desde a primeira fila até lá atrás, mostra uma surpreendente agilidade a replicar o slang londrino — descodificado a certa altura nos versos repescados da rubrica “LA Leakers Freestyle”.
Não são as multidões de Kendrick Lamar ou ROSALÍA, mas há muita gente a ver — e a acompanhar — o autor de 23 (2022). E quando a actuação parece estar a atingir o seu pico de intensidade, com o público já na mão do artista, entra “Doja” (o seu maior êxito até à data) para dar o show por encerrado. Acabamos assim? Depois de uma saída desinteressada ao som da fresquíssima “Sprinter”, nem um verso de viva voz deste novo tema para a despedida? Pedia-se mais do que cerca de quarenta minutos (apesar de tudo, bem conseguidos) ao nome em maior evidência no penúltimo dia de festival.
— Paulo Pena
“Pueblo de desacato”, jovens, tigres, “perras”, minha amada comunidade LGBTQ+: o partido PPL trabalha arduamente por e para vocês, para que se sintam livres, para serem quem realmente são, livres de se expressarem como vos dá na gana e livres de amar quem quiserem. A única lei deste partido é o amor, porque do amor nasce a liberdade. Sejamos livres, vamos todos amar-nos, vamos todos beijarmo-nos.
Rebentava as duas da manhã no palco Plenitude quando os ecrãs começaram a emitir um comunicado. Com postura política, Tokischa em campanha, o mais recente ícone do dembow surgia diante de um jurado de homens vestidos de fato para anunciar o que aqui acaba de ser citado.
Não tardou até que a rapper dominicana saltasse para cima do palco acompanhada pelos seus bailarinos para instalar aquele que tem sido por muitos anunciado como “um fenómeno musical polémico”. Depois de ter cruzado caminho com artistas como Rosalía e Madonna em “Linda” e “Combi Versace”, respectivamente, as adversidades para Tokischa culminaram na faixa “Perra” cantada com J. Balvin. Sobre feminismo e o poder da subversão da misoginia, o Rimas e Batidas sentou-se por breves minutos com a rapper antes da atuação para conversar um pouco.
Tokischa, ex-trabalhadora do sexo assumida, não deixa que nenhum comentário a impeça de seguir em frente naquele que é o caminho que manifestou para si: “As pessoas tendem a colocar rótulos em tudo. Quando os nossos pais nos trazem a este mundo dão-nos logo um nome por isso para mim parece-me algo bastante normal que as pessoas atribuam nomes àquilo que cada coisa representa na sua própria perspectiva. Por isso, o que quer que seja que as pessoas digam sobre mim, isso não vai definir quem eu sou.” Confiante da importância do seu trabalho na atualidade, Tokischa tem como intenção inspirar todas as pessoas que passem por todas as dificuldades pelas quais passou e que nada seja impeditivo para suceder e mostrar ao mundo a realidade da comunidade LGBTQ+.
A tour Popola Presidente, que irá acontecer pela Europa nos meses de Junho e Julho, conta com um concerto de uma força afrodisíaca que permite tanto a libertação para alguns, como o choque para outros. Debaixo alguma chuva que molhou a plateia, Tokischa performou todos os gestos que, para quem não entende a força da emancipação e do empoderamento, possa alimentar os comentários tão extremos que têm vindo a rondar a sua carreira.
Também durante a entrevista, aquando de uma pergunta sobre a sua fama e sobre o poder político que dela advém, a rapper assumiu que: “Isso [a fama] acaba por ser um poder político porque aquilo que eu faço com a música não é socialmente aceite e, por isso, torna-se uma denuncia social. Por isso sim, acho que a fama pode ser um poder político.”
Desde nudez ao voguing, a voz de “Delincuente” e “Estilazo” segurou o palco durante apenas 45 minutos para provar que nada está aqui para a impedir e, na realidade, segundo as suas próprias palavras; “O que quer que seja que estou a viver agora, é algo que eu manifestei através da minha mente, foi algo porque lutei desde o princípio por isso sim, sempre soube.”
— Maria Carvalho
Chegados ao palco Vodafone, às duas da manhã, há fumo, muito fumo a ser emanado a partir da estrutura reservada para os artistas. E onde há fumo, há fogo, não é assim? Poeira só não havia porque, apesar da chuva estar a dar-nos algumas tréguas, a terra ainda está húmida. Mas há muitos pés a calcar o terreno ao som dos Darkside. Por cá, a esperança era alta para ver Nicolás Jaar e Dave Harrington em acção, mas a conversa sobe automaticamente de tom ao percebermos que a banda passou de dupla a trio com a inclusão do baterista e percussionista Tlacael Esparza. Apesar de nunca terem composto material directamente vindo das suas agora três cabeças, presentearam-nos ontem com Live At Spiral House – a versão ao vivo, com direito a nervo e músculo adicional, de Spiral, o último álbum de originais lançado em 2021, que à data apenas contou com o input dos dois membros fundadores do projecto.
Se esse disco-concerto ontem começou por nós escapar por entre o frenesim que é conciliar a presença num grande festival com os afazeres do dia-a-dia, à noite não tivemos melhor remédio do que vivencia-lo bem diante dos nossos olhos. E que poção esta que os três xamãs da electrónica de dança mais aventureira resolveram oferecer-nos. Só a bebe quem quiser, pois claro, mas os efeitos secundários são demasiado aliciantes para quem quer que seja se deixar ficar de fora do transe colectivo que se gerou por este canto do Primavera Sound. Com os os four on the floor vindos do bombo sempre bastante presentes, usados como base da fórmula, outros ingredientes foram-se manifestando ao longo de todo o processo de cozedura. É impossível não sentir o experimentalismo rock que pinga da guitarra distorcida de Harrington, tal como há um lado bastante espiritual e tradicional que emana das peles mais exóticas escolhidas por Esparza para integrar o seu drumkit. Nicolas Jaar é o nosso guia ao longo do fabrico, quer pelos cânticos entoados ao microfone que nos indicam os passos a seguir, quer pelo controlo de qualidade feito a partir do computador e da mesa de mistura.
Numa noite meteorologicamente mais calma, os pingos quando caiam eram grossos e funcionavam quase como terapia de acupuntura, pressioando-nos certos pontos-chave ao longo da nuca. A sensação é ten out of ten e a trip passa por momentos de maior aceleração, outros mais lentos, umas vezes mais concretos, outras de maior abertura quanto à expansividade dos sons. Mas há algo que se mantém sempre, do início ao fim do alinhamento: o som ao vivo de Darkside aponta tanto ao corpo como à cabeça, quase que a obrigar-nos a balançar as pernas e o tronco enquanto deciframos com a mente problemas de matemática quântica que ainda estão por resolver.
— Gonçalo Oliveira
No mesmo dia em que lançava o mais recente álbum Guy, Jayda G tomou controlo do encerramento do palco BITS durante o penúltimo dia de festival. Por toda a coincidência e expectativa debruçadas sobre as suas mais recentes produções, o rosto da DJ e produtora canadense tornou-se mais reconhecido depois do seu recente DJ Set no Boiler Room, ao ponto de já ter a sua imagem presente em plena Times Square. Depois de um Grammy Awards para Best Dancing Record com “Both Of Us”, e a sua intervenção em “Cool” para o álbum de remixes de Dua Lipa, todo o mundo levantou as orelhas para a ouvir e esperou pelo momento em que pudesse, em plena pista de dança, levantar a vista diante de si.
Que Jayda G é uma produtora de house music aclamada, já sabemos. Que a sua energia incontrolável e presença na cabine domina, dá para notar. No entanto, que Jayda G é manifestamente adicta do exagero ousado de efeitos em cada faixa que transita, pode deixar alguns ouvintes confusos com a capacidade técnica de mistura. Amadorismo ou opção? Não se sabe. Quem fica aceita a rapidez com que acelera tudo o que lhe convém, talvez porque efetivamente Jayda G carrega um misticismo e força únicos que compete a poucos DJs.
O final da noite arrancou com a faixa “People” de Moodymann, mas foi em “New York Express” de HardHead que a DJ acelerou rumo a uma intensidade inesperada, no entanto desejada por quem a queria ver. Para contrapor e equilibrar com o encerramento da noite anterior, Jayda G curou desde o house ao techno, groovando sempre com vozes do r&b e, em momentos especiais, com mensagens que importam guardar.
— Maria Carvalho