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Fotografia: Sérgio Afonso
Publicado a: 03/05/2021

Paulo Flores: “As novas gerações já estão a beijar na boca e esqueceram-se dos traumas da descolonização e da independência”

Fotografia: Sérgio Afonso
Publicado a: 03/05/2021

Passados 46 anos sobre a independência de Angola, Paulo Flores celebra a conquista da nação, mas, como sempre nos habituou, canta as estórias de um povo que se vê esquecido pelos seus heróis. Independência é um álbum de verdadeiro semba: a alegria do ritmo dilui-se nas calemas que se abatem sobre o povo, em melodias que embalam as ancas e tocam no coração.

A historiografia faz-se assim: um novo registo, seja um livro ou um disco, recupera, resume e descodifica o que vem de trás, arejando as ideias que o tempo vivo e presente não permite organizar. Independência é o mais recente trabalho de Paulo Flores, o 17º de originais de uma carreira com mais de 30 anos, iniciada nos anos 80 com apenas 15 anos de idade, que serviu de mote para uma conversa com alguém que trilhou o kizomba à procura do semba e se tornou num dos maiores ícones de angolanidade em África e na Europa. Flores, agora com 48 anos, uma idade que parece curta ao pé da sua importância para as expressões musicais mwangolé [“angolano” em quimbundo], parece carregar em si todo o conhecimento de uma expressão iniciada por Liceu Vieira Dias e os N’gola Ritmos, nos anos 40, e da qual, nos últimos 20 anos, também tomou parte ativa — como ele de ligação entre o futuro do semba e o seu passado, e como contribuidor ativo para a sua modernização e perpetuação.

Em conversa com o Rimas e Batidas, Paulo Flores não partilhou só as histórias por detrás deste novo disco, com apresentação marcada para o Coliseu de Lisboa a 21 de Maio, mas reflectiu sobre 46 anos de Angola, 20 anos de paz, 70 anos de semba, e o dia-a-dia de uma nação que lhe serviu de berço, e da qual partiria, aos 3 anos, para uma vida nova em Lisboa. Independência é tudo isso: um documento autobiográfico; uma janela para a vida de um povo pobre numa nação rica; uma independência que ainda não se conquistou, não de forma completa e que chegue a todos, mas que não adia a alegria única de quem encontra na música a resistência para as maleitas da vida. O progresso tem sido malembe malembe [devagar devagar] e Paulo Flores narra essa realidade como ninguém. Narra, também, o orgulho que é poder fazer esse caminho livre da opressão colonialista e com o orgulho de se ser angolano, independentemente da cor da pele.

Independência é feito com tudo o que define Paulo Flores — a ligação aos antigos e os olhos no futuro; semba de “kota”, com tudo o que a modernidade lhe traz de bom; o design de Gonçalo Guimarães, com a capa a reflectir o legado soviético que definiu o MPLA de José Eduardo dos Santos e o atrevimento de separar “In” e “dependência”. Atrevimento esse que se insinua na alegria da música de uma maneira muito angolana: “Principalmente nas décadas de 60 e 70, os sembas em quimbundo, como alguns que eu recuperei, cantava-se sobre estar cansado de porrada, cansado de ir para a cadeia, pedia-se ao colono para seguir o seu caminho, mas toda a gente dançava. Os portugueses também. O ritmo é imenso! A minha música tem muito isso, essa nostalgia, e as melodias vão sempre para essa cor e carregam essas histórias. Eram mensagens veladas, que eram passadas com o ritmo de dança, como eu acabei por fazer.”

E continua a fazê-lo. Quando canta, em “Esse País”, que “esse país tá bom/ tá favorável”, com dedilhados harmoniosos e uma guitarra solante, fá-lo a contar a história da zungueira (vendedora de rua) que foge do fiscal (em Luanda, a venda na rua é proibida, mas continua a ser um grande meio de subsistência para o povo) e acaba atropelada. E remata: “Ninguém sabe o nome dela/ Ela não é nada/ Juro não é brincadeira”. A ironia ouve-se e quase se perde no gingar do batuque e no brilho do dedilhado na guitarra. E o próprio sabe isso sobre a sua música mais recente: “as pessoas dançavam a música, sentiam a música, e depois é que começavam a ouvir.”

Em “Njila Ia Dikanga”, num dueto com Yuri da Cunha, a ironia perde-se, mas a alegria não, e é nessa tensão se cantam as verdades:

“Os cambas lá da vila
De mim ninguém se lembrava
Muitos mudaram de vida
Mudaram até o sonho
Que a gente sonhava
Mas eu voltei
Casa já não é casa
Lelu já não é maza
Riqueza já não é café
Marido pode ser mulher
Conterra já não é conterra
Chão já não é terra
Fome já não é guerra
Mas eu voltei
Cmaba já não te avisa
O carro agora é o biva
Miséria já paga IVA”

“O tema com o Yuri da Cunha é o que representa melhor o feeling deste disco”, diz-nos, explicando, como ninguém, como é o povo angolano. “Nós temos uma capacidade para rir da nossa própria miséria que eu acho que não é normal para os outros. A ‘Jeito Alegre de Chorar’ é inspirada numa cena que eu vi de alguém que estava bem estabelecido na vida se dirigindo ao seu jeep [em Angola, quem tem capacidade financeira anda em carros altos, que resistam aos “quebra-molas”, que são lombas altíssimas, e que possa resistir às provações da época das chuvas, que vai de Novembro a Maio] e vê o lavador de carros na rua a dançar, com aquela alegria mesmo genuína. E o gajo começa aos bafos com o outro: ‘mas estás alegre porquê, se tu vives na miséria?’ É que aquela alegria não é fingida. É mesmo natural. E contagiante!” Nestas músicas, por isso, “acontece uma coisa que é Angola”, um balanço especial entre ritmos alegres e melodias que parecem mexer-se noutro ritmo, mais enigmático e triste, onde se escondem as “malambas da banda que não tem igual”, como o próprio canta a certa altura.

Independência não é, por isso, um disco tradicional de semba. Não só porque há muitas latitudes sonoras abordadas ao longo dos 10 temas que o compõem, abraçando Guiné, Cabo Verde, Portugal, como se inspira no rap, no gumbé, na kizomba, e reflecte um Paulo Flores dinâmico, polivalente, que puxa a rouquidão à Bonga, ou se atreve numa voz límpida, tão ocidentalizada e a aludir às linguagens pop. Diz-nos que “quando [terminou] é que [percebeu] o que estava ali. Não tinha nenhuma intenção no que estava a fazer além de ilustrar as minhas letras. E o disco também é bom por isso, porque criativamente tive muita liberdade. Fiz muito como a voz me saía em cada canção e estava a aceitar todas as vozes que me apareciam”. Pisca-se o olho à herança deixada pela família Vieira Dias, claro, e “Semba Original” não deixa dúvidas disso, mas Paulo Flores também sabe, e de uma forma tão africana diz a verdade na voz dos mais velhos: “O tio Carlitos [Vieira Dias] disse-me que o semba somos nós que o estamos a fazer.”

Também por isso, há, admite, uma “Paulização” do semba. “Ali estou a fazer um semba que é mesmo meu, que já bebeu de tudo, do tio Carlitos, de todos os que eu ouvi, mas já é meu, tem um swing próprio. Não é para dançar, mas é dançável. É meu”. Um semba “paulizado” e construído também com os “kotas”. O título Independência não engana ninguém — partilha o título com o icónico disco de capa amarela de Teta Lando. E não é só isso que tem em comum com esse registo: Joãozinho Morgado, também conhecido como rei dos tambores, parte da Banda Maravilha e, mais para trás, d’Os Bongos, tocou em ambos os registos. Também d’Os Bongos, e dos lendários Kiezos, Boto Trindade também empresta a sua guitarra a algumas canções deste álbum, que é de Paulo Flores, mas também de quem veio antes. “Esta minha ligação com os ‘kotas’ sempre existiu. Agora, se calhar, sou mais eu o kota nas ligações que eu tenho com as outras gerações.”

É um denominador em toda a carreira de Flores, que goza de uma unanimidade entre o povo angolano como poucos, não só por ter revitalizado o semba, mas por ter abraçado as novas gerações, e as novas vozes. “Eu costumo dizer-lhes que eles é que me salvam”, conta ao Rimas e Batidas. É uma lista grande de que podemos falar: dos antigos Bonga, Carlitos Vieira Dias (filho de Liceu Vieira Dias, denominado como pai do semba), Carlos Burrity, Eduardo Paim, Boto Trindade e Joãozinho Morgado às novas vozes de Titica (kudurista transsexual e ícone LGBT angolana), Prodígio, Yuri da Cunha, entre tantos outros. “Eu gosto de estar perto de todos aqueles a quem reconheço talento, ou algo para dizer diferente, ou até a incompreensão que a sociedade tem para com eles e eu vejo uma luz transformadora. Eles transmitem-me tanto carinho que acaba por ser natural. São poetas, são alma caridosas, transformadoras, com energia de luz e de força. Uma coisa que se calhar eu já não tenho tanto. Reconheço-lhes muito talento, muita humanidade, e é isso que me faz ficar por perto. E é com a juventude que nós temos alguma possibilidade de melhorar as condições em que vivemos.”

Contudo, apesar da naturalidade com que o semba lhe sai da voz e da guitarra, não aconteceu sem aprendizagem, com as gerações dos antigos. Nascido no Cazenga, em Luanda, mudando-se para Portugal aos três anos, uma condição que lhe valeu a dupla nacionalidade, também acarretou as suas dificuldades. A de estranheza de quem cresceu com o semba e o via esquecido (“quando fui para Angola [nos anos 90], notei que os próprios antigos cantores diziam que o semba não valia a pena fazer e isso era um pouco estranho para mim”), e de quem, por isso também, não teve oportunidade de o praticar. “Foi [nessa altura] que eu fui entendendo [o que era o semba]. Mesmo se eu tocasse aquele ritmo que eu vou chamar de diáspora, que sobreviveu aqui [em Portugal] e toda a gente entendia, quando eles [Eduardo Paim e a Banda Maravilha] faziam os dedilhados, os acordes mudavam um tempo antes para aquilo dar certo. Eu só sei que na minha própria música, quando eles começavam a tocar, eu cantava errado. Eu cantava certo à nossa maneira ocidental, mas ali eu estava sempre fora. E até conseguir acertar nisso demorou muitos anos.“



[A cura do semba]

Este condão para cantar a história do mwangolé comum é característica de Paulo Flores. Não apenas neste disco, mas em toda a sua carreira. “A independência [de Angola] vai fazer 46 anos, eu vou fazer 49. Eu sou um filho, produto dessa conquista que se procura que seja inteira até hoje. E depois ia sempre de férias para Luanda. Chegava lá e encontrava todos os contrastes. Era o outro lado do ‘muro de Berlim’: era o bloco do leste, o partido único… um contraste incrível. Como criança sentia-me sempre deslocado e essas coisas tocaram-me muito. De alguma maneira, traumatizaram-me, mesmo.”

Entre estas histórias — das memórias dos avós à música do pai –, ia cantando as dores do angolano comum. Agora, também como angolano comum, sem “fazer política” ou “formar partido”, como diz em “Esse País”, continua a cantar o que sente sobre “o país onde nasceu meu pai”, conforme canta Prodígio em “Amanhã (11 de Novembro)”. “Esse disco fala disso tudo: do amor que não tem cor, das pessoas todas que ficaram pelo caminho e cujas histórias foram apagadas. É uma independência emocional minha, dos meus próprios traumas, de viver entre os dois mundos.”

O semba também pode ser uma cura. O que leva o povo a dançar a dor embora. E tudo isso está cravado nas memórias e opiniões de Paulo Flores. Ao longo da conversa com o Rimas e Batidas sucedem-se os episódios e expõe a sua mágoa pelo estado do país, estórias com que também pinta este disco. Desde o alento que sentiu com a saída de José Eduardo dos Santos do poder, que relembra com o seu regresso à Rádio Nacional de Angola, onde gravou o seu primeiro disco (“Quando voltei lá, com 43 ou 44 anos, e olho para a foto à entrada e pela primeira vez não está lá o Zé Eduardo… eu próprio fiquei com uma sensação de alívio. As lágrimas vieram-me aos olhos”), ao distanciamento que sente entre governo e população (“Conta tudo menos o bem estar do cidadão”).

Pesa o recente episódio de chuvas torrenciais em Luanda, onde dezenas de mortos, feridos e desalojados ficaram sem resposta do governo, pelo menos até que houvesse uma reacção internacional às calamidades que se abateram sobre a capital de Angola. “Eu estava a ver as chuvas e bateu-me uma ideia de cantar uma música que eu nem quero gravar, porque começo a pensar que até eu estou a explorar a misérias das pessoas. Um gajo entra em tilts, como se diz. Disse ao meu filho para tocar comigo esse improviso e cantei essa música, pensando no chaffeur de praça, que era uma coisa que havia antigamente: ‘Chaffeur de praça, trombudo reparou/ Se você quer ver seu amor/ Atravessa a lagoa a pé’. O chaffeur não queria atravessar à chuva as poças para ir para o musseque. E eu comecei a pensar no que seria o chaffeur de praça hoje. ‘O tempo passou/ Nada mudou/ A chuva caiu e a gente morreu’. O chaffeur, trombudo, continua a não querer me levar para ver a minha namorada.”

É certo: Angola, como se dizia também sobre o Brasil, não é para principiantes. JLo (João Lourenço) não tem uma herança fácil. Paulo Flores, contudo, diz que “quem precisa, de facto, está a sentir cada vez mais fome, cada vez mais miséria, os preços inflacionados. Não são momentos que nos permitam celebrar os 45 anos de independência.” Mesmo assim celebrou-a à maneira do semba: com alegria, sem deixar de cantar as tristezas. “Acaba por ser um pouco das canções do Teta Lando, ainda a serem bastante actuais. De alguma maneira nós estamos sempre esperançados.” E canta-nos isso na canção com que encerra Independência, “Roda Despedida do Semba”, um tema que já carrega toda a riqueza da carreira de Paulo Flores e onde se ouvem os sopros secos, a lembrar um afrobeat, e uma guitarra cristalina, solante, a desafiar a harmonização do baixo, com a limpeza e modernidade que as dificuldades dos tempos antigos não permitiam:

“Na volta na derradeira ida
Se preveja vinda destemida
Tão linda tão linda tão linda
A sombra é esquebra
Da mulemba
Numa roda consumada
Despedida
De semba”



[Um pé cá, outro lá]

Desde ’76 que Paulo Flores se pode chamar de português. As mudanças que hoje vivemos, Paulo fez parte delas, e assistiu a tudo bem de perto. “Eu estava à espera há já muito tempo. Eu cheguei com 3 anos e ainda tive muito tempo para me sentir inserido e me sentir parte. E também para poder construir esta sociedade em conjunto [com Portugal]. Hoje em dia, as novas gerações já estão a beijar na boca e já se esqueceram dos traumas da descolonização e da independência, e é aí que nós nos socorremos.” 

Não disfarça a esperança que estas novas gerações lhe inspiram, bem pelo contrário. Nelas depositada toda uma responsabilidade que, entre palavras vai deixando escapar que também lhe pertence. “Sinto que as novas gerações têm noção dessa mudança e são o grande impulsionador para que as coisas aconteçam.”

Coisas que têm acontecido, reconhece (“Antes de mim, este trabalho sempre foi feito. O África Tentação e os que cá estavam”), e que fazem de Lisboa a cidade especial que é. “Lisboa, para mim, sempre foi o lugar bom para eu voltar. Fosse para onde fosse, era aqui que eu chegava e me sentia em casa. E hoje Lisboa significa isso para o mundo inteiro. Esse pulsar de criatividade de vários lugares e de várias culturas, essa mestiçagem que finalmente se assume como, no fundo, sempre foi. Felizmente, ela hoje é celebrada assim, sem complexos.”

É tempo, também, de nós celebrarmos Paulo Flores pelo que é: angolano lisboeta, português do Cazenga. Um elo de ligação entre gerações, culturas, expressões, e que carrega tanto a herança dos mais velhos como a esperança das gerações que lhe sucedem. Independência é tudo isso.


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