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Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 20/12/2022

Lidar com a dor em canal aberto.

Papillon: “Nós temos muito mais a ver com a nossa criança interior do que com o adulto que projectámos ser”

Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 20/12/2022

É com o som do despertador que se inicia a música “Desperta.” de Papillon, tomada rapidamente de assalto pela frase: “Quero voltar para a ilha”; de imediato, como pede aquele pensamento intrusivo de “só mais cinco minutos”, fechamos os olhos e somos remetidos para o início da nossa existência. Também à nascença “despertamos” de um sono profundo para uma realidade abrupta, neste que é o primeiro, mas certamente não o último — nem o pior — choque de realidade a que alguma vez vamos estar expostos. O tempo passa, ousamos dar os primeiros passos, nunca sozinhos, para os braços de quem se assegura de que não perdemos o balanço, mas mais uns “bombons” depois e deparamo-nos com a altura da vida em que largamos as mãos de quem sempre nos amparou e seguimos o caminho, mesmo que a medo, guiados pelos nossos maiores sonhos e pela presença eterna dos que nos ficam na alma.

Transformando este ciclo da vida em arte musicada, Rui Pereira apresenta agora Jony Driver, um álbum denso e pronto para causar impacto através da voz mais intimista que lhe ouvimos até aqui. Determinado a purgar dúvidas, inquietações e ensinamentos, ao longo de 13 faixas o rapper despe-se de qualquer artifício, mostrando a importância que reside no empenho em nutrir a criança interior que habita dentro de todos nós, aceitando-a com os traumas, adversidades e mágoas que venham com ela. Para curá-la, guiá-la e crescer sem a negligenciar ou abandonar, de todas as respostas trazidas pelo novo conhecimento surgem mais dúvidas, deixando-nos com uma das mais inquietantes de todas elas: o que fica depois do sonho? E o que é, na verdade, um sonho?

O Rimas e Batidas dirigiu-se aos escritórios da Sony Music Portugal para uma longa e intimista entrevista ao autor de Deepak Looper sobre todos os detalhes deste pedaço de alma que deixou em mais um disco.



Quatro anos depois de Deepak Looper surge Jony Driver. Foste lançando música solta neste intervalo, como é que isso influenciou o processo de fazeres este disco?

Influenciou bastante. Porque foram os “aperitivos”, digamos assim, escolhidos para entrar no universo do Jony Driver; e também foi o reflexo da aprendizagem de produção dos últimos anos. As pessoas pediam coisas novas, mal terminei o Deepak Looper já queriam um álbum novo [risos] e eu ainda não me sentia capacitado, sentia que precisava de aprender qualquer coisa, precisava de evoluir e esses singles serviram-me para isso: serviram-me para evoluir, serviram-me para experimentar coisas, houve coisas que eu senti que fizeram sentido e gostei e que tentei manter no disco a seguir. Aprendi muitas coisas boas, então a influência foi essa, os singles serviram essencialmente para aprender, evoluir e conseguir com isso trazer uma sonoridade diferente.

Há algum single que destaques dessa época? Que te deu outro andamento para o Jony Driver?

Pá, o “Coisa Leve” porque viaja muito. E o “Sweet Spot”.

Tanto que ficaram na setlist, ainda lá estão.

Tal e qual, exactamente! [Risos] Ou seja, são sons que me permitiram explorar. Esta coisa da viagem começou muito dessa fase de estar a experimentar e estar com o entusiasmo de aprender coisas novas e não me conseguir conter ou fazer só uma música — naquele espaço de tempo apetece-me fazer duas. O “Sweet Spot” tem essa característica, do beat switch, começa de uma maneira e depois vai para outro sítio e este álbum tem muito essa coisa do beat switch, que vem dessa experimentação.

Foram quatro anos seguidos a fazer este álbum? Assim que acabaste um, começaste o outro?

Primeiro terminei, depois respirei um bocado; a vida aconteceu e quando decidi fazer o álbum foi depois de perceber que já me sentia capaz de realmente fazer [um novo]. Foram dois anos nesta coisa dos singles e de experimentar e de aprender e os outros dois anos a começar a conceptualizar e a executar o álbum. Sobre o conceito, sempre o tive, só estava na dúvida com o título, porque o conceito, no geral, eu já sabia para onde é que ia. Depois é óbvio que a vida acontece, o plano nunca é fixo, nunca é estanque. Há coisas… eu digo sempre isto: estás a construir uma casa e já sabes como é que é a casa, mas não sabes a cor das paredes, não sabes que móveis é que entram. A estrutura já existe, o que falta é o resto. E o resto é o que eu vou descobrindo ao longo dos anos; e as coisas depois acontecem e casam de uma maneira interessante. 

Produziste várias das músicas e contaste com a colaboração de grandes nomes na produção como Charlie Beats, Holly, Slow J e até Boss AC. Houve algum mote que lhes tenhas dado para a direcção que querias com este projecto?

Não, não. A única pessoa com quem eu falei foi com o Charlie [Beats] porque eu e ele passámos muito tempo no estúdio e foi a pessoa com quem eu basicamente fiz tudo. Fizemos tudo, produzimos tudo; não quer dizer que produzimos de raiz os instrumentais, é aí que entra o [Slow] J, o Holly, o [Boss] AC. Porque foi mais numa ótica de… o AC há uns anos mostrou-me o beat do “Corpo Mente” e disse-me: “Mano, olha, tu aqui tens de fazer a cena mais especial, tem que vir mesmo do coração”; e eu fiquei com isso na minha cabeça, então quando chegou a altura, nem o Boss AC sabia, fiz o som e depois disse: “olha, lembras-te daquela coisa que tu me disseste? Tenho aqui uma cena”. Chamei-o para ele ouvir, ele ouviu, curtiu bué, tivemos uma conversa mega interessante, muito importante para mim a vários níveis. E depois eu adoro trabalhar com o Holly, porque o Holly [risos]… ‘tás a ver aqueles padeiros que deixam o pão na porta das pessoas? O Holly é esse padeiro: ele deixa-te o pão na porta e vai à vida dele [risos] e tu só vais lá e pegas o pão no saquinho e dizes: “O pão estava espectacular”. Foi assim que funcionou com o Holly, ele está sempre a enviar-me coisas, sempre a enviar beats e eu vou ouvindo e aquilo que eu sinto que faz sentido para a altura eu aproveito e fico contente. Mas adoro trabalhar com o Holly, porque ele é das pessoas que me arranja mais beats para ouvir e estou sempre a ouvir coisas dele. 

O que surgiu primeiro: os beats ou as letras? 

Os beats surgiram todos primeiro. Primeiro foram as ideias, depois foram os beats e depois foram as letras. 

Porquê os pontos finais na tracklist? Tem algo a ver com o DAMN. do Kendrick Lamar?

Não! Talvez? Não sei, acho que não. O conceito tem muito mais a ver com a forma como nós lidamos com a dor. A maioria das pessoas, assim como eu próprio, tem a tendência para esconder a dor, ou seja, é quase como meter um ponto final, é cobrir essa dor com alguma coisa. E o ponto final aqui é só uma metáfora para isso. E achei engraçada a maneira como poderia brincar com os pontos finais e com a questão da dor e tudo mais. 

Mas é algo assertivo? Como se estivesses a dizer que a dor acaba ali e ponto final?

A coisa mais bonita para mim é essa, é que o ponto final não é um ponto final, não é o fim. 

Qual é a tua interpretação desse ponto final?

É o que tu quiseres. Pode ser o fim, pode não ser um fim, pode ser só um ponto final, pode ser uma pausa ou estar a representar como representa no álbum: a dor. Pode ser algo que tu consegues viver com, pode ser algo que tu não consegues viver com. Então, eu acho que o ponto final para mim é isso, é uma metáfora, é um símbolo da dor, essencialmente, ou da forma como eu lido com a dor.

13 músicas, 13 símbolos no teu cabelo. O que significa esta capa para ti?

Olha, a capa significa essencialmente aquilo que eu me considero ser ainda. Ou seja, eu acho que ainda sou um bocado uma criança que ainda está à descoberta das coisas, que tem muitas coisas na cabeça; o disco fala um bocadinho sobre revisitar essa altura da minha vida, quase que fui transportado para aí. Sinto que eu e essa criança temos muitas coisas em comum, esses símbolos representam essas coisas. Há sempre uma dicotomia entre aquilo que a criança pensava na altura e aquilo que eu penso hoje em dia e é a ponte: a ponte que une como eu pensava antes e como penso hoje em dia. Quase todos os sons têm essa característica, são o reflexo da minha maneira de pensar antigamente com aquilo que eu penso agora e, se tu fores escrutinar verso a verso, o primeiro remete quase sempre a algo que eu pensava ou ao passado e depois vai evoluindo até chegar à maneira como eu penso, actualmente. E não é necessariamente a coisa mais esclarecida ou assertiva, eu acho que acabo sempre com mais perguntas do que [aquelas] com que começo [risos], mas tenho sempre uma certeza que é: ainda tenho de aprender mais sobre isto.



Sentes que todo este processo pode estar de certa maneira a “curar” a tua criança interior?

Yaaaaa! Sem dúvida. Toda esta questão da criança tem muito mais a ver com: eu cresci com o meu pai o tempo todo. E depois deixas de ter o teu pai e começas a lembrar-te de todas as conversas que tinhas com ele e toda aquela dinâmica de: o meu pai nunca deixou de me ver como uma criança. E quando eu me vejo privado do meu pai, cheguei à conclusão de que afinal ainda sou uma criança porque ainda preciso do meu pai. E é muito também esta dinâmica de: o que é que será que significa tu ainda precisares do teu pai? Acho que todos nós precisamos dos nossos pais, então fui revisitar esse meu estado de espírito; eu sempre quis tanto não ser a criança que acabei por vir cá parar de qualquer das maneiras, porque a vida assim me mostrou. É o que é, isto vai acontecer e é chegar à conclusão de que afinal ainda és uma criança, afinal ainda precisas do teu pai e gostavas que o teu pai estivesse aqui para te dar conselhos disto e daquilo e agora não está. E quando percebes essa cena, apercebes-te daquilo que estava a dizer há bocado: tens muito mais a ver com essa criança do que com o adulto que tu projectaste ser. E acho que chegar a essa realização é uma maneira muito mais honesta de eu começar a caminhar em frente; não posso caminhar em frente e negligenciar essa criança, tenho de olhar por ela e agora sim vamos avançar, já com uma perspectiva diferente da que eu tinha.

Depois da “Metamorfose Fase II” em Deepak Looper voltas atrás agora com “Metamorfose Fase I”, com uma mensagem renovada e com o lema: “Depois de realizar o sonho faz falta mudar para melhor”. Quais sentes que são as maiores mudanças entre o Papillon de Deepak Looper e o Papillon de Jony Driver?

As maiores mudanças eu diria que são: havia muita coisa que eu supunha e que agora eu sei, então sinto que agora o nível de responsabilidade é muito maior. Logo, lá está, para mim a cena do sonho é uma cena mesmo… de jovem [risos]. Não é que eu não seja jovem, mas todos nós temos esta coisa do sonho, esta coisa de ir atrás, temos um sonho, queremos realizá-lo; esse sonho é uma projecção que tu tens daquilo que tu achas que representa a tua melhor versão, mas isso não acaba. Isso não acaba, porque o meu sonho era poder lançar o Deepak Looper para ir fazer a apresentação que eu fiz e ir ao Alive e depois fazes isso e queres logo outra coisa. 

Até eu sinto isso.

Eu acho que todos nós sentimos um bocadinho isso, não é? Quando temos os nossos objectivos que vêm de trás, das nossas profundezas. E o [sonho] da maioria das pessoas vai sempre bater ou ser artista ou ser reconhecido por isto ou por aquilo, mas quando conquistas esse sonho tu percebes que te falta qualquer coisa. Chegas lá e dizes: “Só isto? Ah ok”. Falta qualquer coisa.

Faz-me lembrar o Mac Miller na “Ascension” quando diz que viu uma montanha no horizonte e depois chegou lá e era só um monte de pedras. 

Eu acho que toda a gente vai passar por isso. Tu vais chegar à conclusão de que aquilo que tu mais querias era só mais uma coisa. E tem de haver algo maior ou algo a que te possas agarrar depois para continuares a fazer, porque isso não pode definir a tua vida. O teu sonho não pode definir aquilo que tu és ou a tua vida, o teu bem estar, a tua felicidade. Era para ser feliz, fui feliz, e depois? Nós crescemos com os filmes da Disney e têm todos um final feliz e a vida não é sempre assim. Tens o maior exemplo do nosso overachiever cá em Portugal, o Cristiano Ronaldo, um homem que não parou, ganhou uma, ganhou duas, ganhou três e ficou triste agora porque não conseguiu ganhar esta [o Mundial]. Então, eu sinto que essa questão do sonho tem muito a ver com quando tu chegas lá e percebes que ainda falta qualquer coisa. Isso fez-me pensar e reflectir bastante sobre esse factor. O que é o sonho? Todo o álbum é isto, escrutinar o meu próprio sonho e onde é que ele me levou e como é que eu consigo fazer um paralelo com os meus sonhos e os sonhos que eram do meu pai. O álbum é todo isso, começas a sonhar e acordas do sonho na música; o acordar do sonho aqui é uma metáfora para eu ter acordado do meu próprio sonho, para ter chegado à realização: “ok, isto não é bem como eu pensava que era, não é um conto de fadas, há montes de processos que tens de fazer e há muita coisa chata que tens que ultrapassar para cresceres e para, acima de tudo, entenderes”. Para mim, há mais magia em perceber o que está por detrás disso. Não é só a fantasia do sonho e ir e chegar lá e acabou e depois acordas. O sonho continua, isto continua, só que já não olho com uma perspectiva tão fantasiosa da coisa. 

Todo o álbum também parece ser quase como um acordar para uma fase nova da tua vida e em “Desperta.” ouve-se o próprio som de um despertador. Qual foi o momento que mais te fez acordar até hoje?

O meu sonho era fazer música, cantar para muitas pessoas e estar exactamente na mesma posição onde eu estou agora. Posso dar já spoiler do álbum, não é? [risos]. Imagina o que é tu fazeres tudo e depositares tantas horas nesta coisa da música e nos últimos momentos da vida do teu pai tu não consegues estar lá, não consegues estar presente. Isso é o sonho? Tive de perguntar a mim próprio: “era isso que tu querias?” É uma coisa difícil de lidar quando por um lado tens aquilo a que as pessoas chamam de sucesso e depois na tua vida pessoal está tudo a ir para baixo e tens de gerir esta dinâmica. É uma cena que claramente cria instabilidade psicológica e emocional a qualquer pessoa. Trabalhaste tanto para chegar aqui e chegas aqui e não consegues desfrutar deste momento, porque uma das pessoas que querias que visse isto a acontecer nem sequer está aqui para desfrutar disso contigo, nem sequer consegue perceber. Às vezes dou por mim a pensar: “Davam-me só mais dois aninhos, só dois aninhos e eu mostrava!”, mas não consegui e a coisa que me fez acordar foi eu chegar à conclusão de que as coisas não são só fantasia. A vida real continua e o sonho não vai ser a garantia de que vais ser feliz. 

Confessaste-me já noutra entrevista que é comum o sentimento de estares em piloto automático — como é que se desperta de um piloto automático? O que te mantém com os pés assentes na terra? 

Não sei [risos]. Eu tento ser pro-activo com as coisas, tento ter objectivos, acho que é muito isso: teres objectivos e caminhos por onde queres seguir, teres as tuas metas e trabalhares para isso. Acho que, no geral, eu sou um gajo um bocado aluado [risos], quando dou por mim estou em piloto automático; e isso significa que a tua mente está preguiçosa e já não quer padronizar certas e determinadas coisas, então faz as coisas automaticamente. Às vezes, em casa, dou por mim a não apagar a luz e a ter de ser relembrado para o fazer, por exemplo [risos]. Então, eu acho que música serve essencialmente para isso: para eu ser pro-activo, para eu estar presente e não estar tanto no piloto automático e para me relembrar a mim de que tenho de estar presente. Olha o meu álbum agora, Jony Driver, fala sobre assumir o volante, assumir o controlo, assumir essa responsabilidade. Eu tenho a tendência, de uma maneira natural, para não fazer isso, mas é uma questão de me lembrar, ir-me lembrando. E é assim que eu vou fazendo.

Também apresentas neste álbum a ideia de que a tua cabeça “quer comprar uma briga com o coração”. Criativamente, qual sentes que é a tua maior luta interior? 

Muito interessante. Criativamente a minha maior luta interior é não fazer multitasking. Eu sinto que agora estou numa fase muito interessante, em que acabei de fazer algo que eu queria muito fazer, projectei tanto na minha cabeça e saiu mesmo como eu queria; mais uma grama e estragava. E agora sinto que quero fazer mais coisas. Então é tipo: a minha cabeça, a lógica, está a dizer-me que se calhar eu devia de ser mais focado e mais concentrado nesta coisa da música e não dispersar tanto, mas o meu coração quer experimentar outras coisas, quer continuar a criar, mesmo que não seja só música, ou expandir a questão musical para outras coisas.

Querias expandir para onde?

O álbum é um exemplo disso: adoro histórias, adoro escrever, também me interessa a questão dos filmes, então gostava de experimentar talvez coisas assim mais visuais. Eu sinto que por um lado também é uma lacuna minha.

Quando vais fazer os vídeos?

Ya! [Risos] Tal e qual, quando vou fazer os vídeos! É uma lacuna mesmo, eu para fazer um videoclipe tenho de lutar, porque eu faço 10 músicas e se não fosse preciso não fazia videoclipes. Então, sinto que apesar de ser uma lacuna minha é algo pelo qual eu estou a começar a ganhar um gosto em realmente aprender. 

Consideras que o Igor Regalla te tenha ajudado nisso?

Claramente. Ajudou bastante nisso, porque ele está nesse universo do visual das novelas e filmes e eu só faço isso quando tenho de fazer clipes. Acho que tenho de voltar a encontrar aqui um equilíbrio entre trabalho e diversão, porque quero fazer isto a divertir-me, mas também quero saber o que estou a fazer. Eu acho que o não saber é o que me faz ficar um bocado distante dessas cenas, há pessoas que são muito mais aptas para fazer videoclipes e querem fazer tudo e vão. E é isso, a maior briga e conflito interno que eu tenho agora é isso: ou foco-me só na música ou experimento outras vias criativas. Acho que o coração é que vai sempre ditar o que é que eu vou fazer.



Quando dizes “Quero voltar para a ilha” referes-te à tua zona de conforto? 

Sem dúvida. A zona de conforto quando tu acordas de manhã e queres voltar a sonhar, aquele exercício que tentamos fazer às vezes de tentar voltar para o sonho. Mas pode ser várias coisas. Tens muitas metáforas, essa é uma delas, mas essencialmente é isso: aquele conforto. Desde a coisa mais recente de, por exemplo, eu ter acordado hoje, ido fazer um ensaio e agora estar aqui, até à coisa mais nativa, como o ventre da tua mãe, onde parece que está tudo controlado e estás o mais seguro possível. É o exercício de pensar onde é que eu estou mais seguro e mais confortável e a sentir-me bem.

Sentes desconforto neste teu eu mais exposto?

Não. Isso é o sentimento que eu quis transpor quando tu acordas de um bom sonho para uma realidade que não é boa. Tu tens de te lembrar disso, se acordas no meio do desastre… eu sou bué isso: quando me afectam negativamente, não me apetece fazer nada o dia todo e, na pior das hipóteses, quero é ir dormir. 

Tens alguma manifestação física desse porto de abrigo?

A minha cama, podemos começar por aí, mas também gosto de andar. Há um sítio em específico ali na zona onde eu gosto de passear e gosto muito de ir para lá só espairecer.

Como muita gente, também tu pareces refugiar-te na música de outras pessoas e chegas a cantar sobre “vaguear por aí de fones nos ouvidos” e sobre a música te ter salvo a vida. Que músicas é que mais te acompanham ou acompanharam em momentos mais down?

Eu quando estou down não ouço música. Mas down down, não consigo, não faço nada, no máximo dos máximos vou jogar Playstation para me distrair. Depois dessa fase down down o que acontece é que entras numa fase mais piloto-automático e mais introspectiva e é onde eu introduzo a música e onde as coisas começam de alguma maneira a converter; aquele sentimento mais down começa a converter-se numa energia mais positiva e construtiva e o rap, para mim, serve bué para isso. Eu acho que faço isso [com a minha música], o meu objectivo é estar constantemente a repetir aquilo que eu sinto quando ouço música, que é uma coisa do género: estás no céu, num sítio meio spacey e não tens pés para andar e depois começas a ouvir frases que começam a fazer sentido, pouco a pouco, e essas frases formam uma ideia e essa ideia de alguma maneira motiva-te a sair do sítio onde estavas. Então ya, ouço os meus rappers favoritos todos: Valete, Sam [The Kid], Boss AC, que tem um som fantástico, o “Mantém-te firme”, Kendrick [Lamar], J. Cole, e depois quando estou numa fase onde me sinto mais capaz vou para coisas mais animadas que não são tão introspectivas.

Também sei que te inspiras em grandes nomes do hip hop português mais old school. Quando em “Corpo .Mente” falas de vários bombons como metáfora de anos, seria uma inspiração/ referência a Halloween quando também ele usa a metáfora de “rebuçados envenenados” para simbolizar o tempo em “Bandido Velho”? 

[Risos] Por acaso podia ser! [Risos] Mas não é, é mais o Forrest Gump!

 A cena do “life is like a box of chocolates”?

Exatamente. Não me lembrei, mas claramente é um bom ponto. 

Ainda sobre filmes, o teu álbum está carregado de referências, de The Champ (1979), The Wolf of Wall Street (2014) e Transformers: Age of Extinction até a Finding Nemo. Foste apontando o que querias usar à medida que vias estes filmes ou foste à procura de acordo com o que estavas a escrever? 

Isto está tudo na minha cabeça. São referências que já estão aqui e quando estás a fazer lembras-te, é como fazer rimas: estás a fazer uma rima e na punchline vais-te lembrar de referências, como associar o cor-de-rosa ao Majin Boo do Dragon Ball. São coisas que tu tens na tua cabeça e que pensas por associação. Eu cresci a ver esses filmes e retirei lições muito importantes e quando estava a reflectir sobre as letras lembrei-me. 

E encaixa tudo porque na “.Y” estás a falar de “big fish” e metes um sample da voz da Dory em Finding Nemo.

Uma coisa inspira a outra, quando tu estás ali a tentar fazer o refrão e estás a tentar perceber qual é a direção. E eu já sabia, isto é todo um conceito, o conceito da Dory que está dentro do Finding Nemo, que é sobre uma relação de um pai e de um filho e o pai que está à procura do filho, ou seja, todas estas camadas de relação pai e filho para mim foram importantes no meu crescimento enquanto homem; relação pai e filho, continuar a nadar, o que é que é um peixe pequeno, um peixe grande. Tu começas a tirar essas camadas e encontras ali esse tesouro e a fazer o conceito do som, e o “.Y” tem esse propósito. 

Há algum filme que te tenha marcado de uma forma acentuada até hoje?

Eu vou-te dizer: o meu filme perfeito e o meu filme preferido de sempre é o Matrix; e só há pouco tempo é que eu percebi uma coisa. Para mim o filme é perfeito, só havia uma coisa que eu não achava perfeita no fim…, mas eu sou polícia dos spoilers não vou dar spoiler [risos]. Mas há uma parte especial no fim do filme — e o filme é tão carregado de significado — que eu sempre achei aquela parte final meio superficial. Eu percebia o porquê de a cena estar lá, de ser um final feliz e whatever, mas nunca percebi e só há bué pouco tempo é que entendi o sentido daquilo e, para mim, o filme ainda ficou mais perfeito.

“Corre. da Morte” é uma história verídica que parece conjugar a luta contra o preconceito com a tua garra para correres atrás dos teus sonhos. Há algo actualmente de que ainda sintas que tens de fugir?

Acho que não necessariamente. Aliás, esse som é muito sobre não fugir, é sobre o assumir a responsabilidade quando estás a ser acusado de uma coisa que tu não fizeste e lidar da melhor maneira possível. E o fugir pode ser a pior coisa que tu podes fazer. 



Sentes que com essa música podes estar a dar uma inspiração para encarar as adversidades?

Acima de tudo, estou a dar uma perspectiva sobre uma narrativa que é bastante recorrente no hip hop, que é a narrativa “fuck the police”. Tu tens essa narrativa que é muito fácil para nós, jovens, abraçarmos de uma maneira bastante binária, como se os polícias não fossem pessoas também e não tivessem filhos e os filhos deles não fossem meus amigos. Há toda uma dinâmica que se nós formos a encarar essa coisa com alguma realidade, temos também de falar. E para mim essencialmente foi pegar nessa ideia, nessa narrativa e dar a minha visão sobre ela e sobre a minha vida, porque foi algo que aconteceu comigo, mas também continuar a questionar as mesmas coisas que os N.W.A questionavam; por alguma razão eles disseram “fuck the police” e justificaram isso, tem toda uma história por trás. Então, para mim, é um som que fala sobre estas pessoas que foram importantes para mim, tanto o meu pai como o Senhor Bolota, que tanto um como o outro, nesta situação de aperto, conseguiram ajudar-me directa ou indirectamente e guiar-me a sair dessa situação. E eu acho que é importante tu plantares essa semente, porque na maioria das vezes há pessoas que não têm esses guias. E a minha pergunta é exactamente essa, pretendo deixar essa pergunta: isto aconteceu comigo, correu tudo bem, mas o que é que acontece com o miúdo que não tem esses guias? O que é que acontece com o miúdo que não tem pai ou que não conhece ninguém na polícia que o pode aconselhar? Então, a ideia é deixar essa questão e claramente desabafar um bocado sobre a maneira como eu me sinto na sociedade, tendo em conta a educação que inadvertidamente recebes. Porque quando vais ver um filme de terror, por exemplo, o teu pai avisa-te que não vai ser agradável, que não vais propriamente ver a Cinderela. Ou que vais ter de correr duas vezes, vais ter de correr mais que os outros, para conseguir só estar ali — e isto fez parte da minha educação. E a maneira mais interessante que eu encontrei  de apresentar estas ideias todas, foi revisitar essa educação que eu tive e revisitar essa situação que eu passei e tentar retirar a coisa mais construtiva daí; nós não podemos ignorar que existe racismo, mas também não vamos fazer disso o limite, o racismo não pode ser o tecto para aquilo que conseguimos ou não fazer e, sinceramente, eu, pessoalmente, já estou cansado dessa conversa, é uma cena que drena mesmo a minha energia. Então, eu prefiro fazer e ser a representação do que é um mundo sem racismo e sem preconceito do que estar constantemente a contribuir para o barulho. 

Em “Tenta.” aparece o teu único feat neste álbum. Porquê a Silly e como conseguiste pô-la neste registo mais sensual?  

[Risos] Eu adoro a Silly. Já nos conhecemos há alguns anos, tivemos a oportunidade de nos cruzar várias vezes e sempre vi muito potencial nela enquanto artista, porque acho que temos mais ou menos a mesma abordagem artística. E na realidade ela nem era para ser um feat, ela foi a coisa mais orgânica que surgiu, porque, como estamos aqui a falar, este disco é denso, tem muitas coisas para pegar e, quando dei por mim, estávamos na parte final do disco. E falou-se muito sobre isto dos feats, quem ia ser, quem podia entrar e ainda pensámos em algumas pessoas, mas chegámos à conclusão de que por um lado não havia espaço e depois não queríamos estar à mercê dos timings da outra pessoa. Imagina que queríamos lançar naquela data [risos] e a pessoa não conseguia e atrasava todo o processo. 

E também era uma história tua para contar.

Exactamente. E, como era algo tão pessoal, não sentimos que tínhamos de forçar a questão dos feats. Então foi andando, foi andando e o que eu queria da Silly era um voice [risos], eu precisava mesmo daquele voice da Silly, então disse-lhe que tinha algo para ela; estávamos no estúdio e tudo mais e do nada [ela] começou a trautear uma melodia e eu disse: “pronto, ok, ficou, não quero saber, agora vais ficar”. Depois foi só perceber quais é que eram as palavras certas para a coisa toda encaixar e ficar bonita e foi assim que nasceu o feat, a coisa mais natural de ter acontecido. Encaixou perfeitamente em tudo o que estava a acontecer e aconteceu e fico contente que o nosso primeiro feat tenha sido, para mim, tão especial; para mim representa muito porque eu já tinha projectado algum dia fazer uma música com ela e fico contente que tenha sido neste disco, sinceramente. 

Podemos esperar mais alguns feats teus daqui para a frente? Com quem gostavas de colaborar?

Eu não sei, eu não penso muito nisso. Por um lado, eu sou extremamente fácil de agradar e adoro 98% dos artistas de agora, principalmente de hip hop, e colaboraria com qualquer um deles, sem problema, era só uma questão de nos sentarmos para conversar. 

Diz-me um nome novo a que estejas aí atento e que aches que tem potencial.

Um deles já está no meu álbum [risos] a Silly, começa logo por aí. Eu nem olho muito para a malta mais nova neste momento, tenho sempre as minhas referências, enquanto não fizer sons com todas as minhas referências ainda está em aberto.

Mas imagina que amanhã tinhas de lançar um banger, quem é que tu chamavas de imediato?

Um banger? Pá, estás a usar uma palavra forte… banger já me faz pensar [risos]. Qualquer um dos meus contemporâneos neste momento fazia um banger, desde o Prof[Jam], Slow J, Plutónio, T-Rex, Dillaz, qualquer um deles! Julinho está a matar, Ivandro, qualquer um desses artistas era nas calmas, eu nem precisava de sair da minha zona [risos]. Julinho, bora, vamos fazer um som.

Ainda em “Tenta.” está presente um skit que fala da pressão sentida em ser-se uma influência. Como lidas com seres agora uma referência e influência para tanta gente?

Lido bastante bem. Eu sempre fui irmão mais velho e sempre tive esta noção de realmente servir de referência para alguém, mesmo que a pessoa não aceite, para já [risos]. Existe toda a dinâmica de irmãos, mas hoje em dia, tanto um como o outro, já são crescidos o suficiente e acho que todos temos consciência de que eu servi de referência para eles em muitas coisas; é óbvio que eu também aprendo com eles, mas isso foi um bocado aquela coisa inocente que os teus pais te dizem quando és mais velho: “tens de dar o exemplo”. Isso fica plantado na tua cabeça e eu realmente cresci a ter essa noção de que tenho de ter cuidado com certas e determinadas coisas, porque os meus irmãos podem estar a ver o que eu estou a fazer e depois vão fazer igual. Então, cresci um bocado com esse hábito e actualmente chego e não tenho medo dessa responsabilidade que a música algumas vezes tem, de influenciar as pessoas. E eu sei que estou a fazer de coração e estou a fazer com uma boa intenção, para influenciar da melhor maneira as pessoas, então lido bem com isso.

“Fe.” e “D.O.R.” são duas das músicas mais bonitas e profundas deste álbum, onde podemos ver o teu eu mais vulnerável. Especialmente na segunda desabafas sobre ter sido “essa dor que fez o Papillon que anima as massas”. Dor essa que talvez nunca tenhas mostrado desta maneira e sobre a qual pões a questão “será que é dessa dor que o meu sucesso se alimenta?” Não sei se viste uma série de animação chamada Midnight Gospel que toca em muitos desses assuntos de dor, perda e o amor que fica. Há um episódio em que os convidados do podcast retratado falam sobre esta ideia muito presente nos artistas de que é preciso o sofrimento e é preciso a dor para conseguirem criar, o que gera um entrave a fazerem as pazes com o que os atormenta ou procurar ajuda e encontrar a felicidade no geral, porque existe um receio enorme de que a arte produzida deixe de ser tão boa. Tu partilhas desta ansiedade? Sentiste-te em algum momento preso a esse Papillon das massas?

Preso, sim. Acho que tanto o disco anterior como este disco são actos de me libertar de mim próprio, daquilo que eu considero ser, de uma versão que já não me está a servir. E essa questão foi honesta na medida em que… isto não é saudável, não é uma coisa saudável. Por mais que tu faças a melhor música, era interessante que não fosse às custas da tua pessoa, do teu sofrimento, e nós temos de, em alguma altura, nos questionar sobre isso. Depende das músicas também, há pessoas que fazem músicas que não faz sentido questionarem, quando a música é toda para cima e alegre, mas músicas assim com esta componente mais introspectiva, down e às vezes a tocar mesmo nestes sentimentos de dor e a reflectir sobre estas situações dolorosas, chega uma altura em que é necessário. Imagina o que é: tu fazes música e a tua melhor música é a que fala sobres os teus maiores traumas — e é a tua melhor música! E tu ganhas dinheiro com essa música, dás concertos e a tua vida melhora; é uma coisa que mexe mesmo bué contigo! É do tipo, “ok, então significa que vou ter de repetir este processo outra vez para lá chegar”; eu questionei-me mesmo sobre isto. E não tenho a resposta ainda para isso, porque eu também não estou necessariamente a programar o meu sofrimento para poder fazer um grande disco. Há pessoas que se calhar devem pensar assim, mas eu sinto que sofri a minha vida toda, o que eu quero mais é livrar-me disto e as músicas também são um bocado esse exercício de me livrar dessa dor; fica ali e agora é uma coisa de que as pessoas gostam. Mas foi uma questão sobre a qual eu tive de reflectir muito sobre e até hoje ainda estou a tentar perceber o que é que eu faço. No meu caso, eu claro que faço terapia, preciso de fazer isso, preciso de ter alguém para estar a bater estas bolas e estar a tentar perceber o que é que eu faço com isto e tentar estar em paz comigo próprio e resolver estas questões internas; então a terapia para mim serviu essencialmente para colmatar essas lacunas e tentar perceber se há outra maneira de fazer isto. Será que eu consigo fazer músicas sem o sofrimento? Será que eu consigo fazer boa música sem sofrer? Vamos ver, estou a trabalhar nisso.

Então, a frase “Já aprendi a viver com a dor, agora a dor tem de aprender a viver comigo” vem da libertação que sentiste ao descarregar esse sofrimento nas músicas? Como purga.

Ya, é muito isso. Desde os meus tempos de GROGNation… e estou a dizer isto como se já fosse há 20 anos [risos]. Desde que comecei a fazer música com os rapazes que sempre foi muito isso: pegar um bocadinho nesta parte mais vulnerável minha e meter nas músicas; e eu acho que fiquei um bocado agarrado, como estivemos agora a falar um bocadinho, desde que eu escrevi o som “Dá-me Espaço” que vi a forma como aquilo realmente chegou ao outro lado e isso faz com que tu te sintas tipo: “ah ok, não sou o único, vá lá”. Esta sensação é muito boa e, então, é um reforço para tu continuares a ter este tipo de atitude, seres destemido em despires-te de alguma maneira, seres vulnerável e dizeres aquilo que realmente pensas, mesmo que seja contra a corrente, mesmo que não seja a coisa mais cool de se dizer. E eu sinto que como tive um bocado estes reforços positivos ao longo do tempo, por fazer músicas desse cariz com os GROG, depois começo a fazer sozinho, faço um “1:AM”, faço o “Imagina” e as pessoas identificam-se e gostam e fazem-me sentir menos sozinho. Este reforço positivo continua e agora chego ao dia de hoje e só tenho de tentar resolver esta parte final que é ter só de me certificar de que não é a dor que alimenta esta coisa que eu faço. É obvio que há um equilíbrio, vai sempre haver dor e o lado mais prazeroso da vida, acho que a vida é um equilíbrio entre estas duas coisas, o yin e o yang; é tentar perceber se consigo fazer isso e chegar a esse equilíbrio e plenitude. Ainda estou a tentar perceber e o álbum é só um passo em frente.



Na “Transforma.” falas muito sobre a importância do tempo e deste ser uma das tuas maiores inquietações, uma ideia defendida na maioria das tuas músicas, praticamente desde o início da tua carreira. Que memórias guardas com mais carinho relativas ao teu caminho na música até hoje?

Tanta coisa boa, a sério, se me contassem as coisas que eu ia passar, não é que eu não fosse acreditar, mas eu ia ficar mesmo feliz. Tive muita sorte nas pessoas que encontrei ao longo do meu caminho, lembro-me de viagens de finalistas com os GROG, é espectacular só o facto de teres a oportunidade de ires aqui ao país ao lado cantar umas músicas e animar a malta e estar com pessoal que gosta de ti e ter experiências. Há histórias que nós temos e que eles adoram contar.

Queres partilhar alguma?

Estava agora a lembrar-me da história de um quadro: a malta passou numa bomba de gasolina e queriam levar o quadro; levaram aquilo, uma pintura grande, pegaram efectivamente naquilo, a malta já estava noutra e pegaram naquilo todos: “Vá, bora, vamos levar o quadro”. E teve que ser o mais velho careta a dizer: “Malta, metam lá isso no sítio se faz favor” [risos]. E eles até hoje reclamam! “Devíamos ter trazido o quadro! Foste chato”. Isso para mim é especial, é um bocado o reflexo das nossas personalidades: eu sou o irmão mais velho que lhes vai dizer: “bros, vocês têm a noção que isto pode correr muito mal, né?” e eles vão dizer: “Não, não ia correr nada mal, íamos ficar com o quadro”. Guardo com carinho estas memórias que tive com os GROG e depois quando comecei a fazer as coisas sozinho também, o Time Out, todas as vezes que estive com as minhas referências, como o Boss AC, o Valete, o Sam, foram sempre momentos bué especiais. Lembro-me da primeira vez que estivemos no Quarto Mágico com o Sam há uns anos, foi espectacular, foi mesmo mágico! Imagina tu projectares aquilo, ouvires a discografia do Sam, aquilo é como se fosse o mundo encantado dos brinquedos que só estava na tua cabeça e depois tu entras lá e existe mesmo. Lembro-me também da primeira vez que estive com o Valete e umas palavras que ele disse naquele dia que me marcaram e sinto que ajudaram.

Podemos saber quais foram essas palavras?

Basicamente o que ele disse, naquela altura estávamos em 2011 ou 2012, há uns 10 anos, foi: “Os miúdos que estiverem agora a esforçar-se mais e a trabalhar melhor são os que vão ser os próximos bacanos” e foram.

E tu eras um?

Eu ao ouvir isso foi logo [riso] pensei logo: “O que eu tenho que fazer agora é esforçar-me!”. O facto de ele ter lançado este “desafio”, que foi um conselho, ele estava quase a desabafar, a dizer que andavam miúdos muito bons na internet, que andava a ver e que achava que se aqueles miúdos trabalhassem muito bem iam ser os próximos. Isto vem na sequência de uma conversa que estávamos a ter onde ele estava a dizer que o rap estava em ascensão, estávamos nós em 2012 e que os miúdos que estavam a trabalhar naquela altura iam ser os melhores gajos no rap dali para a frente, os novos Sam The Kids e os Valetes. E eu ouvi isto e motivou-me para continuar a fazer a minha cena. Hoje em dia, fico contente de estar aí no meio dos Profs e dos Dillaz e de toda a malta que está a fazer coisas boas actualmente. 

Preocupa-te não teres tempo para fazer alguma coisa?

Ya, ya, ya. Mas isso é algo que eu também tenho de aprender a lidar, eu tenho estado a aprender a lidar com o tempo, com o passar dos anos. É obvio que agora sinto que não tenho sempre tempo para fazer tudo, o álbum é uma ilustração disso. Eu não vou ter sempre tempo para fazer tudo e estar em todo o lado ao mesmo tempo e vou ter de saber priorizar o que é mais importante. E tenho medo de não saber priorizar o mais importante na altura certa, é mais isso. O resto é tentar desfrutar do tempo, gostava de fazer mais um álbum enquanto estiver vivo [risos], pelo menos mais um tenho que conseguir fazer e tenho medo de não o conseguir fazer. 

Já a finalizar o álbum, a música “Cria.” tem um outro de Marianne Williamson que fala sobre a importância de pararmos de nos diminuir para não incomodar os outros, o que faz ponte para a letra inspiradora em tom de fénix a erguer-se das cinzas em “Jony Driver” e acaba com um throwback a Deepak Looper. Que mensagem pretendias passar com esse rewind?

A mensagem acima de tudo era… o Deepak Looper é muito à volta da minha identidade, daquilo que eu sou, o conceito do disco anterior é muito “I am this, I am that” é sempre “I am”; sou eu a afirmar a minha identidade, a assumir a minha identidade, a não ter medo e a dizer ao mundo que eu sou esta pessoa e estou aqui. O Jony Driver é o throwback; é dizer: “eu sou esta pessoa por causa desta pessoa.” E todos os elogios que me dão, todas as coisas boas e construtivas que as pessoas dizem que eu tenho e que eu sou na realidade, quem merece esses elogios é o meu pai. Porque foi ele que me educou. Então, basicamente, é fazer um bocado esse throwback e voltar aqui à escola da vida e fazer essas referências onde eu já falava do meu pai e da maneira como ele impactava a minha vida. Foi um bocado embrulhar isso dessa maneira.

Lembro-me dos versos que diziam que era irónico o teu pai não te querer como colega trabalho e de estares a cimentar o primeiro tijolo da próxima Muralha da China. Talvez Jony Driver seja agora essa muralha mais composta.

A ver vamos [dito em espanhol] [risos]. Espero que o tempo diga que sim, mas que não seja toda a muralha, que seja só mais um tijolo, quero fazer mais muralhas.

Recordo-me também de na “Aceso” dizeres: “No meu trabalho, o prémio é fazer com que putos se inspirem/ Batalho para que o grammy seja vê-los a sorrirem/ E a sentirem nas artérias o pulsar do Carpe Diem”. Qual achas que é o teu propósito agora?

É o mesmo, claramente. É a mesma coisa. Acho que só acrescentava uma coisa que aprendi com este disco e que passei que é não ter medo de brilhar, não ter medo de ser o melhor. Eu posso ser tudo isso que eu disse no “Aceso” e brilhar e ser o melhor ao mesmo tempo, sem diminuir os outros e sem me diminuir a mim mesmo. E essa perspectiva é muito interessante, porque eu sinto que mais facilmente vais erguer os outros erguendo-te a ti mesmo, mostrando o caminho e brilhando, do que quase ser um falso modesto e ter de me reduzir ou ter que não dar o meu melhor porque me vou destacar muito ou whatever. Isso é um mau hábito que eu trouxe desde criança, eu tenho esse mau hábito e fui usando isso um bocado como um mecanismo de defesa para me integrar da melhor maneira nos grupos e tudo mais; e o rap serviu-me para sair um bocadinho dessa casca também, mas mesmo dentro do rap quando tu chocas com algumas coisas e encontras os limites tens que tu próprio dizer: “ok, se isto me está a limitar eu tenho que fazer o meu próprio caminho”. Não posso ter medo de brilhar, porque pode haver outro miúdo que vai ter o mesmo struggle que eu e se eu não lhe mostro pelo menos a minha solução, a minha perspectiva, esse miúdo pode ficar ainda mais perdido. Levas a pessoa até um túnel e depois depara-se com um labirinto. E eu passei no túnel e estou a deixar as luzinhas para a saída.

E “filho de estrela só tem de brilhar”, não é?

Exactamente. A metáfora mais bonita que eu encontrei para este disco. Quando me lembrei disso pensei: “wow, é mesmo isto, vai ter de ser isto, tem que entrar”. É a estrela que guia, é metáfora da questão do céu, do brilho; imagina que isto é um espelho, as estrelas só estão a refletir o que está aqui em baixo. As estrelas vão brilhar mais se nós brilharmos mais cá em baixo.

Qual é a tua definição de um herói? 

É o meu pai. É alguém que mostra o caminho, que te guia, que te ampara e que essencialmente te ajuda a seres melhor, que te motiva a seres melhor pessoa, mesmo quando já não está cá. 

O que é que te continua a motivar?

Isto. Este caminho, este propósito. É a maior motivação que eu tenho, a razão pela qual eu acordo e tenho vontade de fazer coisas; é continuar a fazer isto. Enquanto estiver neste caminho sinto que está tudo certo.

Muito obrigada.

Valeu, Daniel Oliveira [risos].


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