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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/12/2018

OUPA!: “Cidade Líquida espelha muito a individualidade de cada um mas também o espírito do colectivo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/12/2018

O OUPA!, projecto de intervenção social, cultural e artística da cidade do Porto, tem uma nova vida. Um álbum, Cidade Líquida, e 10 músicas produzidas e rimadas por elementos das residências de Lordelo, Ramalde e Cerco.

Falámos com Capicua e Tiago Espírito Santo, coordenadores da iniciativa, e com os protagonistas para perceber o processo que os levou até aqui. O concerto de apresentação acontece hoje no Plano B, no Porto, e a entrada é gratuita.



Passaram três anos desde o início do OUPA! Que balanço fazem do projecto?

[Capicua] Faço um balanço muito positivo. Nos três primeiros anos conseguimos ir a três bairros [Cerco, Ramalde e Lordelo] mantendo meses seguidos de residências artísticas com oficinas diárias de escrita, produção de beats, gravação, mistura, masterizaçao, produção de videoclipes, promoção de música e produção de espectáculos. Foi muito intenso e foram muito participadas. Conseguimos também apresentar um espectáculo final no Rivoli (por cada edição), que era comparecido em peso pelo bairro e pela cidade.

A cada ano íamos reinventando o projecto, com street art, beatbox, entre outros recursos e colaborações, o que originava sempre um espectáculo com qualidade em si. Era mais do que um concerto, conseguíamos sempre surpreender as pessoas. Era um espectáculo a sério. Acho que  também por causa disso houve um interesse continuado do Pelouro da Cultura e [do projecto] Cultura da Expansão.

Outra coisa que me orgulha foi termos deixado no Cerco um estúdio auto-suficiente. Os jovens do Cerco formaram uma associação e gerem o estúdio comunitário até hoje, depois da residência.

Este ano, a proposta foi diferente. Consistiu em trabalharmos com um grupo de membros dos três anos anteriores para fazer um disco profissional, promovido no circuito normal da indústria portuguesa, para consolidar todo o trabalho feito e profissionalizar ainda mais o processo criativo. Eu e o D-One acompanhámos a gravação nos Estúdios Sá da Bandeira. O resto da equipa manteve-se e esteve sempre presente. A ideia era dar-lhes mais autonomia que nas primeiras residências.

A cada ano fomos conseguindo que os jovens sentissem orgulho do seu trabalho, individual e colectivo, orgulho do bairro e de o representar na cidade [de uma forma tão positiva]. E acho que a cidade retribuiu, celebrando e acarinhando muito o projecto.

Que diferenças existiram entre coordenar as equipas anteriores e a seleccionada dream team?

[Capicua] Nós seleccionámos por uma única razão. Nós tínhamos grupos de 7/8 pessoas em cada ano, e era impossível termos mais de 20 a fazer o disco final, não era viável. A selecção foi feita com base em vários critérios: não só a disponibilidade e o interesse deles, mas também a sua entrega no ano que participaram, a sua assiduidade, empenho e se continuaram a trabalhar após o fim do projecto e a fazer música. Valorizamos estes vários critérios para seleccionar um grupo que representasse os 3 grupos anteriores.

Isto foi bastante diferente dos anos anteriores, onde deixámos a porta aberta e não fizemos qualquer tipo de selecção.

Em termos de trabalho feito, também não funcionou como as oficinas de vários meses anteriores. Foi um trabalho mais feito em auto-gestão e com autonomia, com menor acompanhamento, porque o objectivo era a profissionalização do grupo e da produção um disco. Não foi um processo tão formado, foi mais fluído, mais livre com mais autonomia de gestão do tempo.

O acompanhamento que eu e o D-One fizemos de um ponto de vista criativo foi mais de tentar organizar o grupo: quem quer entrar nesta e naquela música, que tema fazemos para determinado beat, como vai ser a estrutura, a ordem de entrada de cada rapper. O D-One ajudou os produtores a fazer a sequência, o arranjo, o beat, mas em ambos os casos só organizámos o trabalho criativo, não demos propriamente inputs criativos.

Eles são os autores do disco, independentemente de haver uma equipa que acompanha o processo desde o início. É um projecto autoral, desde os beats às letras, que espelha muito a individualidade de cada um mas também o espírito do colectivo. Acho que representa muito bem o rap que se faz no Porto, que sempre teve grande qualidade e vitalidade, e acho que este grupo,  sendo versátil e com membros muito diferentes, são todos talentosos. Uns calhar têm uma escrita mais sofisticada, outros um flow mais sofisticado, uns destacam-se mais no estúdio, outros no palco, uns também cantam e são super melódicos os outros fazem um rap mais hardcore. Acho que o disco, por ser muito variado em termos de temas, beats e estilos, acaba por espelhar isso.

Suponho que Cidade Líquida seja uma referência ao Paulo Cunha e Silva. O que levou à escolha deste título para o álbum?

[Capicua] É uma homenagem porque ele foi o grande impulsionador do projecto Cultura e Expansão, o projecto maior onde o OUPA! se insere. Para o OUPA! em particular porque no primeiro ano ele ainda estava vivo e acompanhou sempre, como vereador da cultura, todo o processo criativo. O grupo do primeiro ano tem uma grande dívida de gratidão para com ele, inclusive fez-lhe uma música de homenagem (“Oupado”).

A ideia de chamar ao disco Cidade Líquida foi do grupo, como homenagem à pessoa que foi a grande responsável pela existência do projecto num primeiro momento.

Uma das ideias do OUPA! era a continuidade, do projecto não ficar preso nos participantes das residências. Já referiste o estúdio comunitário e a Associação que o gere. A par do disco, o que pretendem fazer para dar essa continuidade?

[Capicua] A ideia do OUPA!, como o próprio nome indica, é dar um estímulo, uma alavanca para que os grupos continuem a fazer o que gostam de forma mais profissional e eficiente depois de nós [formadores] termos ido embora. Claro que nem sempre acontece, há quem dê continuidade e quem não e há-de ser sempre assim. Mas a ideia é dar-lhes ferramentas e estímulos para eles continuarem a fazer o trabalho por eles.

No grupo do Cerco, um núcleo duro do grupo original continua a fazer música dentro do estúdio comunitário, no grupo de Ramalde há rappers como o Doc, Carismático, LS, Lucas Garcez, que estão neste grupo e continuam a escrever, a Lendária, uma das poucas rappers mulheres, continua a fazer música, editar os seus próprios vídeos e fazer rap, e o mesmo passa-se no grupo de Lordelo.

A continuidade do projecto também se faz estando eles informalmente e individualmente a fazer música, não precisa de ser enquanto colectivo. Faz-se estando eles com pica e vontade de seguir a sua carreira autonomamente e a fazer as coisas como os estimulamos a fazer de forma profissional, organizada, séria, com muito empenho e espírito de sacrifício.

E temos tido várias provas, quer colectivamente com o estúdio comunitário do Cerco, quer individualmente com rappers que continuam no activo e espalham o espírito do projecto, que o OUPA! tem tido uma continuidade, mesmo que nunca mais exista de um ponto de vista formal, com as residências artísticas, etc. Eu acho que este anos mostraram que deixar as sementes e dar o estímulo é o suficiente para que o hip hop aconteça

Para mim hip hop é isso mesmo, é esse contágio positivo, esse perpetuar de novas gerações de rappers, de B-Boys, de DJs que fazem aquilo que gostam e que inspiram outros a dar continuidade à cultura. Há um movimento, chama-se movimento hip hop e não é à toa. Nós quisemos dar mais um estímulo ao movimento e acho que ele próprio faz o resto. Foi esse o objectivo.



Que diferenças sentiram entre esta e as residências anteriores?

[Ricardinho] Este quarto ano é uma junção das três residências anteriores. O que eu noto mais é a diferença entre a qualidade dos artistas. Nas outras edições havia pessoal que nunca tinha rimado e produzido, e nesta edição o pessoal está dentro da cena do rap. Pode-se dizer que foi mais profissional. Não é que sejamos mais ou menos artistas mas..

[Garcez] Está mais nivelado.

[Ricardinho] Sim. Não estamos os oito nos mesmos patamares ou estilos de música, não temos os mesmos gostos, mas também era esse o objectivo. Reunir uma equipa de artistas diversificados para se fazer mais.

[LS] Tens sobretudo um aglomerado de experiências. Há pessoal que já rimava há uns anos, há pessoal que não rimava. Há pessoal que tem quatro anos de OUPA!, há pessoal que tem dois ou três. Sem deixar de estar nivelado.

Em Cidade Líquida vocês rappam sobre relações (“Tempestade num Copo de Whiskey”), sair e festa (“À Nossa”, “Salsashit”), estar relaxado (“Netflix and Chill”). Foi fácil encontrar assunto para este álbum, num ambiente menos acompanhado que o das primeiras residências?

[LS] Acho que foi ao contrário. Se nos deixassem falávamos sobre 20/30 assuntos [risos]. O que não falta são assuntos, o processo mais difícil é afunilá-los.

[Mónica Sol] Como somos muitos há várias perspectivas. Se calhar a um apetece falar sobre relações, ao outro sobre festa, e foi-nos fácil sincronizá-las entre nós.

[Drunk Nigga] O álbum até teve mais faixas, há mais temas à parte destes. Mas nós fomos seleccionando e ficámos com estes 10.

[Ricardinho] É como o LS está a dizer, se nos pedissem 20 músicas, a gente arranjava 20 temas.

[LS] E mesmo dentro dos mesmo temas. Tens álbuns só de love songs ou só de punch, em que 10 e 12 músicas falam do mesmo. Podes ter abordagens muito diferentes para os mesmos temas.

[Ricardinho] Somos oito, cada um é como cada qual e tem a sua opinião sobre cada tema.

O single que vocês escolheram para o álbum, o “Nosso Fado”, tem “um travo amargo”. Porque o escolheram como avanço do LP?

[Tiago Espírito Santo] Votação [risos].

[LS] Democracia de opinião.

[Ricardinho] Estamos contentes com o trabalho que fizemos e se tivéssemos que escolher um single poderia ser qualquer um dos temas.

[Tiago] Quem teve fora do palco no Sudoeste viu que que foi a música…

[Mónica] Que mais teve impacto.

[Tiago] Exacto. Então nós ficamos ali “Ok, será esta”? E experimentámos.

[LS] E foge um pouco àquele hábito de meteres a música mais festiva ou a love song como single. Damos um sinal ao meter aquela que é se calhar a música mais profunda do disco.

[DN] E tem tudo a haver com a tuga também.

[Garcez] Acho que neste álbum trouxemos musicalidades diferentes, e o fado também se encaixa aí.

[Ricardinho] Quem nos conhece e ouve o “Nosso Fado” fica com vontade de ouvir o resto do álbum porque sabe que alguns de nós são mais para um estilo, outros para outro. Vão procurar os outros sons para ver o resto do trabalho que foi feito.

Vocês usam as páginas do OUPA! no Facebook para alertar para problemas sociais, mais locais ou gerais. Vocês olham para este meio como uma forma de complementar a mensagem das letras?

[DN] Sim, cada vez mais. As redes sociais são todas elas uma forma de atingir mais gente e estarmos mais perto uns dos outros.

[Ricardinho] Hoje em dia chega a ser uma cena básica.

Nem sequer pensaram nisso?

[DN] Sim, foi intuitivo.

Houve uma internacionalização do projecto, no festival Error. Qual foi a reação, principalmente tendo em conta a barreira da língua?

[DN] Deste grupo fui eu, o Ricardo e o Tiago. Não estávamos à espera de nada, de modo que fomos para uma coisa e acabámos por ter outra. Além do convite do festival, tivemos um outro à parte, para tocar noutro espaço, num bar. E basicamente era o mesmo people que ia ao festival. Parecendo que não, o bar estava sempre vazio, aquilo não tinha ninguém, e naquela noite, por mais incrível que pareça, encheu de pessoal. Não tivemos microfone para cantar, foi acappella, com os beats a sair por trás [pelo PA]. O material começou a falhar, os beats começaram também a falhar. E foi tipo: “Tira isso tudo, vamos bater palmas mas é”. E foi assim que fizemos a festa.

[Ricardinho] Pedimos ao pessoal para bater palmas, para nos guiarmos. Havia uma emoção [no público] com o que estávamos a fazer.

[Tiago] O pessoal não entendia a letra, mas cantava a melodia e perguntava o que se estava a dizer. Foi muito engraçado.

[DN] Nós no álbum que fomos tocar [do OUPA! Cerco] também temos uma música com fado. O pessoal não percebia nada mas estava a nos acompanhar, a trautear, porque sabiam que aquilo é enraizado e é daqui.

[Ricardinho] E também tínhamos um som sobre o Pika, um miúdo que foi morto lá no bairro pela polícia. Nós fizemos uma homenagem mas com o sentido de passar a mensagem, para coisas destas não voltarem a acontecer. E mesmo com isso sentimos que, apesar das pessoas não estarem a perceber o que estávamos a dizer, estavam a perceber a maneira como estávamos a cantar e a sentir aquilo. E para nós foi gratificante. Eu vou levar a viagem de Bratislava para o resto da minha vida.

Uma das ideias que o OUPA! defendia era o combate ao estigma de moradores de alguns bairros do Porto. Acham que o têm conseguido fazer com a música e as letras, ainda para mais tendo vocês vários anos no projecto?

[DN] Sem dúvida alguma. Mudou a forma como somos vistos no lugar onde vivemos, no nosso bairro.

[Mónica] Como exemplo.

[DN] Sim, para os mais novos. Para os mais velhos deixámos de ser “aqueles que andam de chapéu”, os gunas, e passámos a ser os artistas do bairro, que fazem alguma coisa pela comunidade.

[LS] Começas por ser um exemplo para os mais novos, depois um exemplo para os mais velhos por seres um exemplo para os mais novos. E depois começas a ser um exemplo para o resto da cidade, fora do espaço do bairro, tanto na parte social como na parte musical. O OUPA! tem a capacidade de ir para além do rap, de chegar a pessoas que se interessam por projectos sociais, ou que seguem o Cultura em Expansão, por exemplo. Algumas pessoas até começam a ouvir rap por aí. E ganhas uma ligação a outras partes da música que se calhar de uma forma directa, se fossemos nós a lançar, eu, o Garcez, o DN, o Ricardinho, não ganharíamos.

[DN] Consegues chegar a outro tipo de público, não só ao pessoal do rap.

[LS] Ó seja, é mesmo uma Cidade Líquida.

[Ricardinho] Há gente que, quando se fala em rap, foca-se nos gunas e em outro rótulos que criam. Ao fazeres uma fusão do rap com o fado e outros estilos, o pessoal mais velho que gosta de fado se calhar entra melhor e chama a atenção para as outras músicas.

[DN] Nós podemos dizer que já actuámos para muitos velhinhos [risos]. E acaba por ser engraçado veres os velhotes a quererem compactuar com a cena do hip hop, a quererem mostrar-se com gestos.

[Ricardinho] E já aconteceu em várias associações virem ter connosco no final dos concertos com um discurso que desconheciam o projecto e a darem-nos os parabéns por conseguirmos com a música juntar os géneros. Para eles é novo, mas para nós que já fazemos há muito… Por exemplo, o Cirilo [DN] faz beats com fado desde ’98, quase nem eu era nascido. Não é uma coisa que vem de agora, as maneiras de chegar às pessoas é que eram mais difíceis.

[Mónica] E agora há mais abertura.

[Ricardinho] Há mais portas abertas para mostrares o teu trabalho e mensagem.

[LS] E uma coisa que tu notas e que é enriquecedora é que sentes que as pessoas ouvem as músicas. Ó seja, não é só aquela conversa típica do “o beat estava bonito” ou “o refrão estava altamente”. Eu tenho dezenas de pessoas, muitas vezes desconhecidas, que vêm falar comigo e que me dizem “aquele verso estava espectacular” e “aquele que rimou a seguir a ti também era muito fixe” e “e aquela punchline?”. O pessoal partilha o som e mete aquela dica, portanto sabes que ouviu por se identificar com ela. Sentes que o pessoal foi beber às letras, não está só a abanar a cabeça e siga. Sentes que há uma identificação com a parte textual.

[DN] Sentes que houve um clique.


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