[TEXTO] Moisés Regalado [ILUSTRAÇÃO] Riça
Depois de uma mandamento claramente imperativo (“não subestimarás o rap português“), seguido de outro com contornos mais inevitáveis mas também motivacionais (“farás parte da história“), e passadas algumas referências a Sam The Kid (que, estou certo, todos compreenderão), é agora altura de homenagear o rapper de Chelas da melhor maneira possível. Ou seja, dando sentido e continuidade às suas palavras, reforçando a carga quase divina — e mandatória — que o hip hop português reconhece no discurso de Samuel Mira.
A ausência de pressão com que se deve encarar o ofício pode ser explicada, antes de mais, pelo que o próprio Sam The Kid já conseguiu. Em entrevista recente, o humorista Rui Sinel de Cordes lembrou o papel de Herman José ao serviço de humor nacional, e vale a pena forçar a comparação, substituindo “humorista” por “rapper” e “Herman” por “Sam The Kid”:
“O bom que há de ser rapper em Portugal é que houve um gajo que o que fez, o que conquistou, o que mudou é tão grande que não vale a pena estares a tentar seres o melhor rapper português. Diverte-te só, faz o que queres fazer e curte, porque há um gajo no teu país chamado Sam The Kid”.
Facilmente se compreende que os mais jovens não consigam abraçar a dimensão do génio de Herman, e chega a dar que pensar que o mesmo possa um dia acontecer com Sam The Kid. Afinal, trata-se do homem que inventou o mercado independente de hip hop tuga, que talhou um flow e uma escrita dignas dos “props” de Rakim ou Kool G Rap, caso os veteranos entendessem português. Do rapper que durante anos foi também o melhor e mais activo produtor português e que orquestrou obras primas como “Rhymeshit Que Abala”, “À Noite”, “Prémio Nobel” ou “Underground”.
Não interessa fazer o que Sam fez, à sua imagem e semelhança, sendo mais interessante fazer como Sam fez. Os preconceitos vão caindo e hoje vale tudo, desde que bem executado, isto é, “porque queres e sentes, não porque deves e tens”. Assim se explica, por exemplo, que os copycats de Regula nunca tenham assumido proporções dignas de registo, mas que Blasph, um dos últimos MCs com capacidade para transportar a tocha de Bellini — ainda que o produto final seja substancialmente diferente –, seja já um nome incontornável do rap português.
YUZI canta em inglês mas isso já não é assunto. Canta naquilo que pode ser considerado um “mau inglês”, o que também não parece ser relevante. A era do audiovisual e das grandes produções é um dado adquirido, mas olhando para os videoclipes dos temas “Não Tens Visto” (Wet Bed Gang) e “Mudei” (Zara G), que projectaram definitivamente os artistas de Vialonga, facilmente se percebe que não exigiram orçamentos de níveis mercantilistas. E o sucesso de artistas como SippinPurpp ou Mota Jr, XXXTentacion ou Lil Dicky, não é um mero fruto do acaso.
“A diferença está no sentimento”, diz Ace em “Liricistas“, faixa do álbum de estreia de Valete, mas é óbvio que os princípios morais dessa declaração não garantem o que quer que seja. Só que a dica de Sam The Kid, como a de Ace, deve ser mantida na memória colectiva do rap e da música portuguesa. Para que haja cada vez mais personagens da envergadura dos Mind Da Gap e do Puto Genial (como um dia escreveu a Hip Hop Nation), mas também de GSon ou Halloween, dos Buraka Som Sistema ou de Conan Osiris.