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Publicado a: 25/04/2016

Os Golpe de Estado foram os primeiros a samplar o 25 de Abril

Publicado a: 25/04/2016

[FOTOS] Rita Carmo / José Pedro Santa Bárbara [TEXTO] Rui Miguel Abreu

Em 1989 um verdadeiro ovni aterrou na cena musical portuguesa: Rev 25, maxi de estreia da dupla Golpe de Estado, saiu com selo da EMI-Valentim de Carvalho e navegou contra uma corrente até aí alheia da explosão da cultura house de raves que entretanto varria a Europa a partir de Inglaterra. Pegando na inspiração de My Life in The Bush of Ghosts de Brian Eno, disco pioneiro ao nível do sampling, e na cena new beat comandada pelos belgas Front 242, Tiago Lopes e Paulo Abelho criaram uma obra de modernidade absoluta que foi vanguardista na utilização do sampling em Portugal e talvez o primeiro claro exemplo de abordagem à memória então ainda recente do 25 de Abril através desse método de produção.

Paulo Abelho e Tiago Lopes são hoje reconhecidos técnicos de som e à época representavam duas importantes bandas da modernidade pop portuguesa: a Sétima Legião e os Linha Geral, respectivamente. Essas duas bandas partilhavam o mesmo espaço de ensaios e foi aí que ambos os músicos se conheceram e decidiram avançar para um projecto que traduzisse o momento, inspirados pela música que ouviam chegada de fora.

Nesse tempo, o sampling começava a gerar as primeiras obras-primas (3 Feet High and Rising dos De La Soul data de 1989), mas a mais nítida inspiração para “Rev 25” e “Um Caso Que Está a Dar Que Falar”, tema do lado B do maxi, vinha de outros quadrantes.



Em 1981, o álbum My Life in The Bush of Ghosts de Brian Eno e David Byrne era um assomo de absoluta modernidade: o duo “samplou” discursos de líderes religiosos e políticos registados a partir de emissões de rádio, recorreu a pioneiras gravações de música étnica e dessa forma ergueu um pungente retrato da América regado a funk cibernético do mais alto calibre. Paulo Abelho aponta hoje esse álbum como uma das suas inspirações e de facto as fontes de Rev 25 são igualmente emissões de rádio, neste caso imoprtalizadas numa edição de vinil, e as vozes de uma reportagem de TV: ou seja, o arquivismo de uma memória política nacional em vinil e os mass media como fontes de parte da matéria usada, tal qual o que havia acontecido com a dupla responsável por My Life In The Bush of Ghosts em Nova Iorque alguns anos antes.

Já Tiago Lopes prefere nomear o pendor rítmico da “electronic body music” dos Front 242 como uma referência directa. Em 1988, o grupo belga lançou Front By Front, quarto álbum de uma fértil carreira iniciada no arranque dos anos 80, onde as programações rítmicas e as vozes mecanizadas se cruzavam com sintetizadores e guitarras, uma receita que, de facto, foi replicada no trabalho de estreia dos Golpe de Estado.



Outras referências que certamente não hão-de ter passadas despercebidas para o duo português terão sido as que a ainda resistente rádio portuguesa ia apesar de tudo passando, hits incontornáveis como “Beat Dis” dos Bomb The Bass de Tim Simenon e “Pump Up The Volume” dos M/A/R/R/S, projecto que resultava do cruzamento de talentos dos Colourbox e A.R. Kane. Os dois temas foram hits absolutos em 1987 e tocaram com bastante frequência nas antenas portuguesas. Tanto Tiago Lopes como Paulo Abelho sentiram, certamente, os efeitos destes discos até porque ambos frequentavam espaços como o Frágil, mítico clube do Bairro Alto, onde esta música traduzia a urgência do momento. Trata-se de dois brilhantes exemplos de sincretismo musical, onde o sampling é usado de forma criativa.



Tiago Lopes e Paulo Abelho recordam bem as ferramentas usadas para construirem “Rev 25” e “Um Caso Que Está a Dar Que Falar”.

“O maxi de 89 foi feito na cave de Patameiras”, explica Tiago Lopes, referindo-se à cave dos pais de Paulo Abelho, em Odivelas, que lhes servia de espaço de criação.  “Ainda não tinhamos computadores, foi tudo programado numa caixa de ritmos que não era nossa mas do Nuno Cruz da Setima Legião, uma Roland Tr 707, o sampler já não me lembro bem mas a ser era o mks 100”.

O disco, conta Paulo Abelho ao Rimas e batidas, foi depois gravado no estúdio Namouche por Tó Pinheiro da Silva: “Quando estavamos a misturar a maquina de 24 pistas perdeu o tracking e a fita começou toda a saltar, conclusão a maquina trilhou uma zona do multipistas”. A solução, recorda Paulo Abelho, “foi depois editar o tema a partir do master de duas pistas, fazendo edits à mão, com tesoura e cola”.

Tiago Lopes confirma: “O maxi foi gravado no Namuche pelo Tó Pinheiro Da Silva. Com a boa Neve“, explica, referindo-se à famosa mesa de mistura, “e com uma Studer de 24 pistas analogica. O maxi tem um extra no fim que é a internacional com as comunicações de radio do militares ao fundo”. “O sintetizador”, confessa Tiago Lopes, “não me lembro mesmo, porque depois já com o Carlos Maria Trindade é que usamos o Atari 1040 st com o o velhinho Pro24 e um synth Yamaha TX 808. o teclado base acho que era um D20 da Roland”.

Além de “Rev 25”, tema que usa vozes sampladas do disco As Vozes do 25 de Abril, o maxi continha ainda no lado B um tema que gerou alguma controvérsia por ter samplado excertos de uma reportagem emitida à época pela RTP sobre o notório caso de confronto entre polícias no Terreiro do Paço.



“Na altura o que nós ambicionavamos fazer era como jornalismo musical, por isso andavamos à procura de um tema para o lado B  e de repente aconteceu aquilo do Terreiro do Paço, policias contra policias”, recorda Paulo Abelho. “Telefonamos ao Carlos Maria Trindade que trabalhou connosco na fase de pré-produção (o disco foi pré-produzido no estudio dos Delfins) e pedimos para gravar em vídeo o Telejornal. Passadas duas semanas o disco estava na rua”. Carlos Maria Trindade, teclista dos Heróis do Mar e produtor com largo currículo, viria ele mesmo a realizar pioneiro trabalho electrónico com a edição, em 1991, do álbum colaborativo com Nuno Canavarro Mr. Wollogallu, uma uma rara peça de colecção.

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Esse gesto valeu ao grupo alguns dissabores na altura, com as rádios a recusarem-se a tocar o single e minimizando dessa forma o seu impacto. Ainda assim, Rev 25 não é um disco raro e há até cópias disponíveis no discogs a preços bastante acessíveis, mas é, sem a menor sombra de dúvida, um importante registo de uma época em que a utilização das tecnologias electrónicas ainda estava na sua infância nos estúdios em Portugal, um disco com visão e espírito de aventura que merece a atenção de quem hoje procura raízes para a identidade electrónica nacional.


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