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Ilustração: Riça
Publicado a: 23/05/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #25: Ghost Hunt / Rabu Mazda / Calhau! / Gala Drop

Ilustração: Riça
Publicado a: 23/05/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


[Ghost Hunt] II / Lovers & Lollypops

Os Ghost Hunt dos Pedros Chau (The Parkinsons) e Oliveira (ex-Monomoy) são uma das mais preciosas anomalias da presente cena musical que se desenvolve dentro de portas. São de 2020, mas podiam ser de 1979, 1993 ou 2034 que ia dar precisamente ao mesmo; são portugueses, mas bem que podiam vir dos arredores de Sheffield, de Dubrovnic, de Murcia ou de Alfa Centauro que não faria diferença. O que acontece é que muito mais do que perseguirem fantasmas (e se há espectros na sua música…), a dupla que agora apresenta o seu segundo álbum, depois de uma auspiciosa estreia em 2016 no catálogo da Lux Records, parece seguir à risca um guião conceptual de contornos muito definidos.

O imaginário dos Ghost Hunt cruza marcas do universo literário de JG Ballard, resgata noções de tensão à filmografia de John Carpenter, explora o tom distópico e geracional que obras como Logan’s Runnos deram nos anos 70, mergulha nas cinzentas tonalidades da era da Guerra Fria tão bem exploradas em filmes como Three Days of the Condor e, obviamente, banha-se no vasto oceano electrónico que entre os anos 70 e os anos 80 do século passado se estendeu entre a Alemanha dos Kraftwerk ou D.A.F. e a Inglaterra dos Cabaret Voltaire ou Throbbing Gristle, passando ainda pela pela fértil e subterrânea “cassete culture” que se disseminou pela Europa Continental dos Esplendor Geométrico ou Vox Populi e alcançando até as megalópoles industriais da América do Norte que nos deram os Suicide, Tone Set ou Cybotron. Há ecos de todas essas referências no belíssimo álbum que os Ghost Hunt se preparam para lançar.

II abre com uma espécie de manifesto: “Numbers Station”, como o título indica, usa como chamariz uma voz de uma das misteriosas “estações de números” que povoaram o imaginário de uma certa era e que alimentaram inúmeras teorias de conspiração. E funciona. O tema resolve-se como uma espécie de manifesto estético que apresenta os territórios em que os Ghost Hunt se movem: aura de banda sonora, economia de meios, texturas resolutamente electrónicas, melodias e ritmos maquinais, densidade textural, e um perfil aural decididamente vintage – nada por aqui soa “digital” ou “moderno”, não apenas no plano tímbrico, mas também no estilo de arranjos que não acomodam estratégias de empolgamento de pistas tão comuns na EDM, por exemplo. Minimalismo é a palavra que os Ghost Hunt têm estampada na parede do estúdio. Em néon, certamente.

Com melodias que parecem requerer apenas um dedo para serem tocadas e uma caixa de ritmos cujo som nos diz que só pode ter sido captada dentro de um bunker, os Ghost Hunt desenham mini-sinfonias electrónicas feitas de nervo e suspense, mas esse perfil melódico carrega igualmente alguma ideia de esperançosa inocência que parece marcar também boa parte da cena hauntológica britânica de gente como Pye Corner Audio e o mesmo optimismoque a espaços despontava na discografia dos Kraftwerk, quando os alemães permitiam que o futuro os entusiasmasse mais do que o cinzento presente que então os rodeava.

E nesse sentido, II torna-se na melhor das bandas sonoras para estes dias de confinamento: por um lado, traduz as tensas perspectivas que esta presente situação nos impôs – sobretudo na segunda metade do álbum, em temas como “No Exit”, “Fugue State” (que soa como um tributo aos The Normal) ou “E.V.P.”, a “piéce de resistance” do alinhamento e o momento mais cinemático e, simultaneamente, mais experimental que por aqui se ensaia; por outro lado, permite-se projectar um futuro de risonho optimismo tecnológico, como o que nos parece saltar aos ouvidos em “October” ou “New Ceremony”. E essa ambivalência é parte do inesgotável charme da música dos Ghost Hunt que em boa hora se escapou do tempo (passado ou futuro?) para nos assombrar este presente.


[Rabu Mazda] Todo Mundo Sabe / 40%Foda/Maneiríssimo

Rabu Mazda é Leonardo Bindilatti, metade de Iguanas, apenas um entre vários outros doces pecados que se descobrem nas diferentes camadas de que, como toda a gente, de resto, se faz. Aqui encontramo-lo a alinhar pela excelente 40%Foda/Maneiríssimo, incansável selo do Rio de Janeiro que tem vindo a funcionar como um pólo magnético do futuro, atraindo até si uma série de estetas que vão operando tranquilas revoluções. Como é o caso de Rabu Mazda.

Todo Mundo Sabe é um ultra-psicadélico (vocês sabem, sentimento de deslocação da realidade, efeito caleidoscópico de confusão dos sentidos, alteração das noções de contínuo temporal e espacial) e sincrético exercício que nos propõe algo de novo ao tomar uma boa parte do que já se conhece – house e r&b, electrónica glitch, pads new age, tensão pós-dubstep, cadências afro-digitais de diferentes velocidades, do tarraxo ao kuduro, sampling da escola hip hop, etc  – para depois mergulhar o conjunto num caldo de líquido metal cromado de onde sai um reluzente e sonoro corpo escultórico que tem tanto de Anish Kapoor como de El Anatsui.

A música de Rabu Mazda não se detém numa fórmula e procura no cruzamento de referências, pulsares e ideias uma nova urgência para as pistas, algo que traduza aquele futuro que mesmo estando apenas a cinco minutos de distância se torna permanentemente inalcançável porque tão prenhe de possibilidades. Leonardo tenta assim o impossível: antecipar esse multi-dimensional futuro através de uma condensação de elementos que tem tanto de vertigem quanto de excitação em estado puro. Porque, importante que se diga, o som de Todo Mundo Sabe é expansivo, reluzentemente optimista, cheio de sol, cosmopolita, aberto, generoso e carregado de amor, tem Luanda e Joanesburgo e Lisboa e Londres ou Cartagena e Santo Antão, tem gente de todas as formas e sabores, tem ritmos de muitas velocidades e tem futuros de todos os passados. Rabu Mazda é 100 por cento foda.


[Calhau!] Tau Tau / Discrepant

A entidade Von Calhau – Marta Von Calhau e Alves Von Calhau – tem explorado diferentes dimensões da paralela realidade da arte, manifestando-se através de trabalhos pluridisciplinares que se alargam da ilustração à performance, da instalação à escultura e, pois claro, à música que é pelos dois artistas tratada com a mesma intrigante curiosidade com que mergulham em todas as outras linguagens de que se apropriam sem pedirem licença (ora essa, não faz cá falta…).

Na sua estreia na imparável Discrepant, Marta e Alves usam a voz e a língua como matéria primeira, partindo das palavras desmontadas e realinhadas e do cruzamento algo automático de primeiros, segundos e terceiros sentidos e dos seus sons, usando a redução onomatopaica ou a expansão reiterativa para alcançarem uma tão absurda quanto concreta imagem da nossa própria identidade cultural.

As vozes são processadas, rodeadas de ruído e de gravilha sonora, surgem com entoações secas ou irónicas, solenes ou estupefactas, erguidas de um fundo imaginário folclórico que busca raízes para o nosso ser colectivo contemporâneo, e não enjeitam uma componente de comentário social ou político, como acontece em “Mueda” (“Muedas fazem buracos, buracos fazem assaltos, assaltos fazem fortunas, fortunas fazem mundos, mundos fazem fundos…”) ou “Bófiacult” (“Há polícia…”, declama Marta antes de enumerar um sem fim de forças de autoridade).

E tudo sucede sobre telas abrasivas de ruído concreto, gravações de campo, manipulações de notas no piano, de frequências mais agudas ou graves, drones de gaitas de foles, percussão processada, pequenas rajadas de matéria electrónica que impõem uma atmosfera de estranha familiaridade que nos envolve como nos envolvem as aldeias ou as cidades que visitamos de ouvidos abertos e mente receptiva. Este é, afinal de contas, um agudo retrato onde nos podemos encontrar a nós mesmos se nos permitirmos primeiro o luxo de nos perdermos no labirinto sónico que Calhau! nos oferece.


[Gala Drop] Live at Boom (July 24th, 2018) / Holuzam

Sim, poucas coisas haverá em que não se possa ler algo sobre o estranho presente que nos envolveu sem que tenhamos percebido muito bem que estava para chegar. E escutar esta música que os Gala Drop registaram há dois anos no Boom Festival e (que, portanto, deveria regressar este ano) é uma aguda lembrança de como o mundo mudou nos últimos três meses.

Por outro lado, este Live at Boom que em boa hora interrompe o silêncio editorial de Gala Drop que já durava há cinco anos (as remisturas de “Nova”, na mesma Golf Channel que editou o segundo álbum do grupo, já datam de 2015…), recorda-nos também a que soa a música que resulta da interacção próxima de diferentes elementos que alcançam, como aqui tão bem se percebe, um elevado estado de sintonia espiritual através da partilha física de um mesmo espaço.

Afonso Simões em bateria e percussões, Guilherme Canhão na guitarra e sintetizador, Jerrald James em percussões, Nelson Gomes no sintetizador e sampler e Rui Dâmaso no baixo protagonizam uma viagem que toca em versões retemperadas de algum do seu reportório, mas que essencialmente toma essa matéria como combustível para uma longa deriva que se alarga do lado mais psicadélico e, logo, exploratório do rock ao espaço infinito do dub e daí ao êxtase físico e espiritual da pista de dança, adoptando os diferentes regimes rítmicos do mais sinuoso disco sound ou do mais metronómico krautrock como telas em que pintam um policromático mural com tanto de tropical quanto de espacial.

Nesta rica equação, o trabalho na mesa de mistura de Hugo Valverde é digno de ressalva, ele que trata os diferentes canais à sua disposição e o banco de efeitos como mais um instrumento ao serviço de uma demanda colectiva que certamente buscava o abandono catártico, a elevação extática a um superior plano de consciência em que os corpos respondem ao som como a natureza responde às estações, acalmando-se e repousando, num momento, elevando-se e florescendo, noutro.

E tudo sucede, nesta mágica hora dividida por dois lados de uma mesma cassete (edição limitada a 100 exemplares), com total classe: Afonso Simões assume a fundação com plena autoridade, soando tocado pelo espírito de São Jaki Liebezeit, com Jerrald James e Rui Dâmaso a colorirem os grooves com vibrantes detalhes polirrítmicos e Guilherme Canhão e Nelson Gomes a trazerem a estratosfera para dentro dos nossos ouvidos com malhas stacatto e mantos de electrónica rica em personalidade analógica. Tudo certo. Tudo lindo. Tudo bom. Tão bom que somos transportados para aquele sítio incrível de Idanha onde por vezes a utopia consegue tornar-se real. Lá voltaremos.

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