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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/11/2022

Re-ouvir, re-descobrir, re-assombrar.

Notas de Contracapa #6: fragmentos do universo Gal Costa

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/11/2022

Fragmentos. Nunca poderão ser mais do que isso. Fragmentos de uma carreira que se reinventou continuamente, sem medo do futuro, sem medo do passado. Uma obra autoral vastíssima, uma tradução pela voz, pelo canto, do ‘Brasil que deu certo’. Após décadas de música pop, onde a obsessão com figuras que são simultaneamente compositor / cantor quase ofuscou o significado da palavra interpretação, é desconcertante re-ouvir Gal Costa e perceber o quão autoral é tudo o que cantou. Da infinitude de pontos de entrada no universo Gal Costa, aqui ficam três possíveis.



[#1] Índia

“Índia” é um tema reinventado recorrentemente, mas nunca o foi como na voz de Gal Costa em 1973. Abre o seu quarto álbum de estúdio em nome próprio, dá título ao disco e serve como base conceptual da capa, fotografada por António Guerreiro. A versão gravada em estúdio, apesar dos seus quase sete minutos que vão do sussurro ao êxtase, é uma versão mais curta da que era apresentada ao vivo na época da gravação. Segundo o crítico Tarik de Sousa, era uma versão claramente inferior, até pela tentativa de recriar o espaço cenográfico apenas através dos arranjos de Rogério Duprat. Mas, claro, ouvindo a gravação hoje esta parece inultrapassável, mesmo quando comparada com as outras duas gravações de estúdio que Gal Costa fez para os álbuns, Gal Tropical (1979) e De Tantos Amores (2001). Já o lançamento do disco no mercado, em plenos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, teve de ser negociado com a censura. Em questão as fotografias da capa, onde Gal Costa veste a pele da sua “Índia”. Roberto Menescal é quem negoceia o lançamento por parte da Philips, respondendo ao espanto da censora: “artista com os seios de fora?”, “Mas é uma índia! Você quer que a índia esteja de sutiã?” (entrevista em 2018 ao Estado de São Paulo). E assim, numa jogada que fez disparar as vendas, o disco é lançado selado numa bolsa azul. Olhando hoje para as imagens é importante perceber o contexto em que estas foram feitas. Resultante das apropriações não-hierárquicas trazidas pela Tropicália, há uma leitura de Índia que remete para o que naquele momento era o sufoco face à ideia de “progresso pela obliteração” quer da Amazónia, quer dos povos indígenas. São destes anos frases publicitárias ou títulos da imprensa como “Para unir os brasileiro nós rasgamos o inferno verde”, “Há um tesouro à sua espera. Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil” ou “Chega de lendas, vamos faturar!” Para os milhares mortos e deslocados restava pouco mais que o silêncio… Já no universo pop brasileiro, Caetano Veloso lança, com os Doces Bárbaros em 1976, “Um Índio” e Jorge Ben lança “Curumim chama Cunhãtã que vou contar / Todo dia era Dia de Índio” em 1981, tema que será um enorme sucesso na voz de Baby Consuelo no mesmo ano. Mas a “Índia” na voz de Gal Costa era também uma canção que vinha de longe. No imediato brasileiro, era um clássico sertanejo celebrizado 20 anos antes, em 1952, num disco da dupla Cascatinha & Inhana. Mas essa gravação era o resultado de uma recriação da letra em português por José Fortuna, a mesma que Gal Costa usou. Mas para chegar à origem da música é preciso rumar ao Paraguai e ao seu autor, José Asunción Flores (1904-1972). O compositor foi um dos criadores, na década de 1920, da guarânia (em alusão ao povo Guarani), género musical onde a composição de “Índia” se inscreve. E são dessa época as duas letras escritas para o tema: a primeira pela mão do poeta Rigoberto Fontao Meza (1900-1936) e a definitiva pelo também poeta Manuel Ortiz Guerrero (1897-1933). Apesar de ambos escreverem pontualmente em guarani, as letras são em espanhol. O tema ganha popularidade e em 1944 torna-se uma das “músicas oficiais” do Paraguai. Apesar do reconhecimento, José Asunción Flores, membro do Partido Comunista do Uruguai, passa grande parte da sua vida no exílio e apenas no seu caixão lhe é permitido regressar ao seu país. 



[#2] “Eu Vim da Bahia”

Em 1965 não existia Gal Costa. Apenas Maria da Graça Costa Penna Burgos. No início desse ano, Maria Bethânia torna-se a sensação do momento com a sua interpretação de “Carcará” no espectáculo Opinião de Augusto Boal (onde substitui Nara Leão a pedido e por indicação desta). A editora RCA Victor contrata imediatamente a nova estrela e, para além do single de “Carcará”, lança o seu álbum de estreia. O disco, num registo bem diferente do avançado pelo single, contém um dueto com a estreante Maria da Graça no tema de Caetano Veloso, “Sol Negro”. Mas a RCA Victor não se ficou pela contratação de Maria Bethânia. Com a estreia do espetáculo Arena Canta Bahia em Setembro desse ano, a RCA lança uma série de discos compactos (singles), essencialmente com temas do espectáculo e interpretados pelos jovens compositores/atores/interpretes: Gilberto Gil com “Roda / Procissão”, Piti com “Enredo / Despedida”, Caetano Veloso com “Samba Em Paz / Cavaleiro”, Maria Bethânia com “Eu Vivo Num Tempo De Guerra / Viramundo”, Tom Zé com “São Benedito / Maria do Colégio da Bahia” e, claro, Maria da Graça com “Eu Vim da Bahia” de Gilberto Gil no lado A, e “Sim, Foi Você” de Caetano Veloso no lado B. O começo não poderia ter sido melhor. Mas a RCA Victor não se entusiasmou e deixou cair todos os artistas. Tudo certo, mas demasiado cedo. Foi preciso esperar dois anos, até 1967, para que Maria da Graça voltasse aos estúdios para gravar “Domingo”, um álbum a meias com Caetano Veloso e assinando já com o nome definitivo de Gal Costa. Este é um álbum bem enraizado no que era ainda então uma espécie de segunda geração da bossa nova. Mas seria eternamente um disco único, até porque pouco depois do seu lançamento, nas eliminatórias do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em Outubro desse ano, Gilberto Gil sobe ao palco com os Mutantes e Caetano Veloso com os Beat Boys, marcando oficialmente o momento zero da Tropicália.



[#3] Gabriela

Consciente ou inconscientemente, em Portugal, Gal Costa será sempre associada ao tema de abertura da telenovela da Globo, Gabriela de 1975. No contexto da indústria das novelas brasileiras, mesmo sendo marcante, no Brasil Gabriela foi apenas mais uma da série de novelas que uma das principais redes de televisão lançou. Não esquecer que na Globo já eram exibidas, desde o final dos anos 60, três telenovelas diárias: a das sete, oito e dez horas da noite. E, para além dos conteúdos televisivos, passaram a ser lançadas no mercado as bandas sonoras de todas as novelas. Inicialmente lançados pela Philips, estes discos foram, a partir da criação da editora da Globo (Sigla/Som Livre) em 1971, por aí lançados. Sendo que, a partir do final desse ano, para além da banda sonora original brasileira (conhecida como “versão nacional”) eram também lançadas no mercado as bandas sonoras com os temas de artistas estrangeiros que eram usados em cada novela, a chamada “versão internacional”. Neste catadupa crescente de lançamentos, nos cinco anos entre 1970 e 1974 são lançadas as bandas sonoras de 27 telenovelas num conjunto de 46 LPs, fora os singles e outros discos associados. O mais interessante neste período é a encomenda de bandas sonoras originais completas a duplas de artistas como Erasmo e Roberto CarlosMarcos e Paulo Sérgio ValleBaden Powell e Paulo César Pinheiro ou Toquinho e Vinicius de Moraes. Com o avançar da década de 70, e por razões de mercado, a criação de temas originais passa a centrar-se nos temas de abertura, e é esse o caso de Gabriela, uma das “novelas das 10” lançadas em 1975. Adaptada do premiadíssimo e popular romance Gabriela, Cravo e Canela de Jorge Amado (originalmente lançado em 1958), esta era já a segunda adaptação ao formato de telenovela, após uma primeira versão na TV Tupi logo no início da década de 1960. Para a criação do tema original a escolha óbvia recaiu no amigo de Jorge Amado, o compositor Dorival Caymmi. Óbvia tanto pela afinidade trazida pelo comum universo baiano, como pela relação de amizade entre compositor e escritor que já se tinha traduzido, aquando do lançamento do romance, na edição em disco de um mini álbum de 10″ onde Dorival Caymmi acompanha leituras por Jorge Amado em “Canto de Amor à Bahia” e “Quatro acalantos de Gabriela Cravo e Canela” (Editora Festa, 1958). Nas notas da contracapa, Dorival Caymmi torna a simbiose ainda mais clara: “se eu fosse romancista, teria escrito os romances de Jorge Amado e se ele fosse compositor teria composto minhas músicas”. E assim, num processo pouco usual no compositor, é escrita por encomenda e de um jorro, “Modinha para Gabriela” para a voz de Gal Costa. O sucesso do tema leva a que no ano seguinte Gal Costa dedique um álbum inteiro ao cancioneiro de Dorival Caymmi, Gal Canta Caymmi. Em Portugal o impacto da novela é imenso. Estamos já em 1977 mas a RTP ainda transmite a preto e branco (a cor só chegará em 1980), e esta é a primeira telenovela exibida num país onde a televisão, de canal quase único (o segundo canal apenas tem emissão durante algumas horas diárias), tem um papel central na informação e entretenimento popular. Para além da banda sonora da novela e do single do tema título, o disco Gal Canta Caymmi é editado com a adição de dois temas extra em relação à edição original, para não faltar “Modinha para Gabriela”. Mas a relação de Gal Costa com Gabriela não termina aqui. Quando Sónia Braga volta a interpretar o personagem na adaptação para cinema em 1983, é novamente Gal Costa quem é chamada a dar voz à banda sonora. E aqui quem está encarregue da composição é nada menos que António Carlos Jobim, cuja banda sonora completa é lançada em álbum nesse ano. Para além de cantar outros dois temas, Gal Costa faz um dueto com o maestro no tema-chave do filme, “Tema de Amor de Gabriela”. Após a morte do maestro, Gal Costa lança, em 1999, um duplo álbum gravado ao vivo inteiramente dedicado às suas composições, Gal Costa canta Tom Jobim. Para além do álbum inteiramente dedicado às composições de Ary Barroso (Aquarela do Brasil de 1980), apenas Caetano Veloso vai ter o privilégio de assinar todas as composições de um um disco de Gal Costa com Recanto de 2011. Mas aí, em plena reinvenção da trilogia  é todo um outro universo que se expande. E já são outros fragmentos a precisarem de “notas de contracapa”.


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