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Publicado a: 20/04/2022

Criação, apropriação, depuração e combate.

Notas de Contracapa #4: Elifas Andreato. A ponta do véu

Publicado a: 20/04/2022

Elifas Andreato, um dos mais reconhecíveis e celebrados capistas da moderna música brasileira, faleceu a 29 de Março de 2022 com 76 anos. Assinou mais de 300 capas de discos, com destaque para os trabalhos realizados nas décadas de 70 e 80 do século XX. Mas a sua intervenção não se limitou apenas ao quadrado das capas de discos, cujos limites procurou romper repetidamente. Foi cenógrafo, ator, compositor ocasional, activista político, escultor, jornalista, ilustrador, designer de cartazes, revistas e livros. Aqui se levanta um pouco a ponta do véu, olhando para algumas das coisas que nos deixou em mais de cinco décadas de trabalho. 


História da Música Popular Brasileira (1970-72): terceira caixa arquivadora e o fascículo n.º 46.
Nova História da Música Popular Brasileira (1977-79). Material promocional da coleção.
Marcel déchiravit (Marcel Duchamp, 1957), Dylan (Milton Glaser, 1967), Caetano (Elifas Andreato, 1977).

[Música às prestações]

Elifas Andreato começou a trabalhar cedo. Em 1960 encontra-se a trabalhar na Fiat Lux como torneiro mecânico, passando depois a pintor de painéis. Em 1964 vai para a TV Record, onde trabalha como assistente de cenografia. Em 1967, por seu turno, é estagiário na Editora Abril, assumindo, no ano seguinte, a função de diretor de arte de algumas publicações, sendo um dos criadores da revista desportiva Placar. A Editora Abril tinha sido fundada em 1950, tendo começado pela publicação da banda desenhada de grande sucesso, Pato Donald (que publicou continuamente até 2018). Como editora foi-se tornando cada vez mais diversificada, passando a criar um número crescente de conteúdos próprios. Na década de 60 lança, com enorme sucesso, a venda de obras em fascículos que assim se tornam acessíveis a uma parte significativa da população. Paradoxalmente, é também neste contexto de crescente alfabetização da população brasileira, de incentivos fiscais ao livro e de aumento do poder aquisitivo, que se vive a fase mais dura e censória da ditadura militar. Uma das razões do crescente sucesso da editora é a integração vertical de todo o processo, desde a criação (ou adaptação) de conteúdos, passando pela produção até à distribuição. Tudo com um investimento massivo na promoção e divulgação das suas publicações. Dentro do universo da Editora Abril, a Abril Cultural inicia em 1965 a publicação da primeira série de fascículos que são vendidos não em livrarias, mas em quiosques de jornais (cerca de 15.000 postos de venda no início da década de 70 segundo a própria Abril). Até 1982, vão ser lançadas cerca de 200 coleções com milhões de cópias vendidas. E é neste turbilhão editorial que, em 1970, Elifas Andreato assume a criação de uma nova coleção dedicada à História da Música Popular Brasileira. A coleção teve, então, 48 volumes publicados quinzenalmente entre 1970 e 1972. Cada fascículo de 12″ trazia um trabalho jornalístico com vários depoimentos e ensaios criados especialmente para cada artista, sendo que cada fascículo continha ainda um disco de 10″ (recuperando material de fundo de catálogo criteriosamente escolhido). A coleção poderia também ser arrumada em quatro caixas arquivadoras (cada uma com 12 volumes). Para além do design e ilustração das publicações, Elifas Andreato acompanha todo o trabalho jornalístico, o que lhe permite conhecer grande parte dos compositores e músicos brasileiros de então. A coleção será posteriormente relançada numa versão revista e ampliada a 75 fascículos, Nova História da Música Popular Brasileira em 1977-79. É para esta nova edição que cria a ilustração de Caetano Veloso decalcada da célebre imagem de Bob Dylan desenhada por Milton Glaser (que, por sua vez, se tinha inspirado no auto retrato em papel rasgado sobre molde de zinco de Marcel Duchamp). O aproveitamento dos conteúdos é ainda feito uma última vez no início dos anos 80 para mais uma coleção, desta vez dedicada aos Grandes Compositores. Nas palavras do próprio Elifas Andreato, “devo tudo a essa coleção, toda a minha relação com a música brasileira começou aqui.”


Anúncio para Medicina e Saúde (Abril Cultural, 1967) e cartaz para a peça Calabar (Elifas Andreato, 1980).
Capas de publicações: Livro Negro da Ditadura Militar (Ação Popular, 1972), Revista Opinião (Março de 1974) e Revista Veja (Outubro de 1974). 

[Até ao osso]

Depois da coleção para a Abril Cultural, o trabalho como designer de capas de discos nunca mais parou. O primeiro trabalho, em 1971, é para o terceiro álbum a solo de Paulinho da Viola. Na capa, uma fotografia luminosa de Geraldo Guimarães do cantor/compositor com as cores da Portela. No verso, duas ilustrações de Elifas, um retrato de Paulinho da Viola e uma composição bem mais livre anuncia o trabalho cada vez mais conceptual que se vai afirmar nos anos seguintes. Mas na década de 1970, o trabalho de Elifas Andreato vai também ocupar com grande destaque um lugar em diversas publicações. Foi um dos fundadores dos semanários Opinião (1972-77) e Movimento (1975-81) e da revista Argumento (1973-74), trabalhando ainda na revista Veja e na sua remodelação gráfica no final da década. Sempre no fio da navalha, as publicações levam ao limite do possível a linguagem gráfica (como a fita cola que segura o novo presidente Geisel na capa da Opinião em Março de 1974), sendo que nenhuma publicação seria tão arriscada como a edição clandestina do Livro Negro da Ditadura Militar em 1972. Se fosse identificado como um dos responsáveis pela publicação da Ação Popular, certamente que as detenções, interrogatórios e torturas a que foi sujeito naqueles anos teriam tido um fim diferente. Para além das publicações são ainda marcantes os diversos cartazes para produções teatrais. Inesquecível a ilustração de uma tortura com pau de arara para Mortos Sem Sepultura de 1977. A peça, escrita originalmente por Jean Paul Sartre no contexto da ocupação nazi  durante os anos 40, era adaptada nesta nova encenação tornando mais explícitos paralelos com a realidade do Brasil. Apesar da suástica do personagem em segundo plano mostrado na ilustração, o cartaz foi imediatamente censurado. “Pau de arara é coisa nossa”, argumentou o militar. Também encenado por Fernando Peixoto, e também retomando paralelos entre o passado e o presente, a peça Calabar: o Elogio da Traição de Chico Buarque e Ruy Guerra é finalmente estreada em 1980 (depois de censurada na véspera da estreia em 1974), tendo também o seu cartaz elaborado por Elifas Andreato. A imagem junta o título pichado (recuperado da versão original de Regina Vater em 1973) com uma imagem da musculatura humana reciclada da Enciclopédia em fascículos da Abril Cultural, acrescentada de fragmentos de pele tatuada com “o elogio da traição”.


Detalhes da capa e encarte do LP de Clementina de Jesus, Clementina E Convidados (1979).
Ilustração para o cartaz da Semana Elis (Rede Globo, 1983) e o parto de Tom Zé no LP Nave Maria (RGE, 1984).

[Meu Carnaval]

Mas o confronto com os limites extravasou sempre a política no sentido estrito, e é no trabalho para a música e para as capas de discos que surgem as melhores surpresas no trabalho de Elifas Andreato. As estrelas vertidas da bandeira brasileira são um tema recorrente, assim como as máscaras e o mundo do circo. Dentro obras mais completas, o destaque vai para os intrincados trabalhos conceptuais que realizou para Chico Buarque, Ópera do Malandro (1979) e Almanaque (1981). O universo infantil é evocado em todos os seus detalhes no disco homónimo de Fátima Guedes (1980), encadernado com uma espiral branca e em Lápis de Cor (1981) que mimetiza uma caixa de lápis de cor. Na galáxia de artistas que sempre ilustrou, o pódio vai para aquela aquela ele considerava a sua melhor ilustração, Clementina de Jesus. Criada em 1979 para o encarte do LP Clementina e Convidados, foi depois usada para e capa da reedição em 1988 do álbum Clementina, Cadê Você? (1970). O álbum que desenhou para Clementina de Jesus em 1979, é aliás outro dos pontos altos da sua carreira. Uma homenagem ao samba verdadeiro e à terra que aqueles pés pisam. Curiosamente, os executivos da editora acharam que Clementina de Jesus ia estranhar a capa, mas esta apenas lamentou que os pés usados não fossem os seus. Sempre tirando partido de materiais e técnicas como relevo seco ou cortantes especiais, importa mencionar os discos para João Bosco, Essa é a sua Vida (1981) ou o último disco de estúdio de Adoniran Barbosa em 1980. Mas aquele que é provavelmente o trabalho conceptual mais interessante é o álbum Nave Maria de Tom Zé. A capa recortada permite a um Tom Zé fotografado, embrulhado numa placenta de celofane renascer a cada audição. Em 1981, Elifas Andreato faz a cenografia de Trem Azul no Canecão. Será o último espectáculo de Elis Regina. Em 1982 é lançado um álbum póstumo com gravações do espectáculo e, em 1983, é assinalando um ano da sua morte prematura com uma exposição. É para este evento que é desenhado o cartaz, intitulado InfELISmente, com uma Elis com a máscara de palhaço, cujo nariz se reflete no espaço negro, infinito.


Músicas das capas de Elifas Andreato.

Fontes principais:
Elifas Andreato: Contornos da Música Carioca / Elifas Andreato @Brasil de Fato / Blog Anos Dourados / Obituário @Vermelho / Emporio Elifas Andreato /Jornal Tornado: 40 anos da Anistia / Geraldo Guimarães @Blog Ronaldo Casarin / Livro Negro @Alfarrabista Glórias / Arte na Capa – Paulinho da Viola (1978) / Entrevista @Persona / Entrevista @Outras Palavras

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