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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/05/2022

Tutti Frutti de Tutti Frutti.

Notas de Contracapa #5: Rita Lee, a Cilibrina Mutante

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/05/2022

Prateadas. De plataforma. Até ao joelho. Perfeitas. Mas nada como pedir um número acima e aproveitar o desaparecimento da funcionária nos confins do armazém para igualmente desaparecer no nevoeiro londrino. Com as botas nos pés, claro. A loja é a famosa Biba, uma criação da designer Barbara Hulanicki que, desde meados dos anos 60, dá cartas na moda inglesa. Os pés são os de Rita Lee, numa temporada de pausa dos Mutantes em Junho de 1972. Com Rita Lee estava Liminha, o baixista dos Mutantes e a sua companheira Leila Lisboa, bem como a adolescente Lúcia Turnbull. Pelo caminho recrutaram o músico Ritchie que seguirá para o Brasil apenas com bilhete de ida. A viagem não era apenas recreativa, servia essencialmente para a compra de instrumentos que simplesmente não existiam no Brasil, como o Minimoog D ou o Mellotron M400. Mas Londres está em efervescência naqueles anos. Lúcia Turnbull já tinha vivido um ano na cidade e retoma o contacto com os músicos do colectivo com quem tinha tocado anteriormente na The Solid British Hat Band. O novo projecto do grupo alargado de artistas tem o adequado nome Everyone Involved e, com a participação de Lúcia e Liminha, gravam o álbum Either/Or. Um disco folk/psicadélico que na época só podia ser oferecido e não vendido, e que é hoje uma raridade. Mas no planeta pop a revolução estava também em marcha na Londres de 1972. Marc Bolan lança repetidamente variações do mesmo single desde que havia, um ano antes, assumido a eletricidade e sintetizado o nome da banda para T. Rex: “Hot Love”, “Get It On”, “Jeepster”, “Telegram Sam”, “Metal Guru”, “Children of the Revolution”. Para além de lançar o andrógino glam rock com as suas lágrimas de glitter prateado, filma Born to Boogie, onde com Ringo Star e Elton John recupera “Tutti Frutti“. Como resultado de algum alinhamento cósmico de astros, a 16 de Junho de 1972, quatro dias depois da chegada de Rita Lee a Londres, são lançados dois fundamentais ovnis discográficos de longa-duração. O primeiro é o álbum de estreia dos Roxy Music com Brian Eno, com direito a apresentação na BBC da genial “Ladytron“. O segundo revela todo o esplendor da revolução com o fundamental The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars de David Bowie. Com o genial Mick Ronson são aqui diluídas as fronteiras entre ficção e realidade, a electrificação e o acústico, a energia do rock, o psicadelismo visual e a pureza das canções pop. Mas é tempo de voltar. Para além dos novos instrumentos, das lágrimas de Marc Bolan, das botas da Biba e de um colar forrado a LSD, viajam de volta ao Brasil os novos cabelos de Rita Lee, vermelhos como os de Ziggy.


A segunda loja Biba (1966-73) e peças da sua secção feminina nos corpos de Marc Bolan e David Johansen dos New York Dolls (que tocam no novo espaço da loja em Novembro de 1973).

No Brasil, os novos instrumentos são imediatamente colocados ao serviço e surgem na nova música dos Mutantes. “Mande um abraço pra Velha” é o novo tema que concorre ao 7.º Festival Internacional da Canção em Setembro de 1972. Mas, no rescaldo do moribundo Festival, os tempos de mudança pareciam inevitáveis. No campo dos Mutantes não eram só as piadas que estavam a ficar secas. As relações abertas estão por um fio e o desejo de seguir uma cartilha musical virtuosa e progressiva, descartando um cardápio musical mais abrangente e (pop)ular, levam à expulsão de Rita Lee da banda. A saída acaba por coincidir com o lançamento do álbum dos Mutantes creditado a Rita Lee, Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida. Apesar do título, a difícil digestão do trauma que foi o corte com a vida comunitária dos Mutantes passa por tentativas de suicídio e meses de silêncio.


Cabelo vermelho, o novo Ziggy Stardust, a nova Rita Lee (numa viagem pelo país de Gales com Ritchie, Leila Lisboa e Lúcia Turnbull). À direita, os Mutantes no 7.º FIC de 1972 já com o novo Minimoog em palco e a capa do último LP do quinteto mutante, desenhada por Rita Lisérgica.

Mas no dia do seu 25.º aniversário, a 31 de Dezembro de 1972, surge um novo sinal de vida. “Rita Lee em Tempo de Mutação” é o título do artigo no Jornal do Brasil onde são finalmente aflorados os possíveis novos projetos. A Phonogram de André Midani continua determinada na aposta de transformar numa estrela a solo uma das suas artistas mais badaladas e, em Fevereiro, é anunciada a alocação de verbas para a formação de um conjunto em torno de Rita Lee. Os nomes avançados passam pelas irmãs Turnbull e até por por Leila Lisboa, e a ideia de grupo inteiramente feminino vai sendo noticiada até Abril. Mas as indecisões têm os dias contados. A Phonogram, que nesse momento concentrava a nata da MPB, decide avançar com um grande evento com os seus artistas, o Phono 73. Procurando ultrapassar o modelo esgotado dos festivais competitivos são anunciados três dias de concertos com destaque para muitas parcerias, algumas geniais mesmo que inesperadas, como a de Caetano Veloso com Odair José. Antecedendo os três dias do festival, tem lugar a 10 de Maio uma noite com preços mais acessíveis (tentando captar um público mais jovem) com um concerto dos Mutantes. A primeira parte, por seu turno, fica a cargo do novo projecto de Rita Lee com Lúcia Turnbull, as Cilibrinas (o nome Cilibrinas do Éden nunca é usado para identificar o projecto na altura). Os Mutantes tinham vindo a trabalhar intensamente no seu novo repertório desde a saída de Rita Lee (e desde Abril que era anunciado para breve o lançamento de um novo duplo álbum) e tinham investido no aumento brutal da sua potência sonora. Já as Cilibrinas tinham tomado uma opção bem diferente. Um som puramente acústico de dois violões e flauta ocasional. As novas músicas acabam por não ter grande impacto com um público essencialmente desejoso de experimentar a potência sonora dos Mutantes, sendo audível a impaciência do público com o som acústico do duo, apesar dos aplausos. 


Um das poucas imagens da única apresentação do duo Cilibrinas em Maio de 1973.

A ressaca do Festival é dura. Nenhuma das gravações (de ambos os concertos) terá direito a figurar em qualquer um dos três álbuns editados uma semana após o festival. Pior, o já gravado novo álbum de rock progressivo dos Mutantes, O A E O Z, é engavetado e a banda despedida pela Phonogram. Dois meses depois, e num quadro de crescente instabilidade mental, é apenas Arnaldo Batista que se apresenta a solo num programado concerto da banda. Os restantes Mutantes continuam com a direcção de Sérgio Dias (só em 1974, já depois de mais nenhum outro elemento da formação original estar na banda, é que lançam um novo álbum para a Som Livre). Já o descontentamento de Rita Lee com a sua prestação e com a pouca adesão do público vai levá-la a questionar toda a sua concepção musical. A resposta é, no entanto, simples: electricidade. A mesma resposta a que tinha chegado Marc Bolan em 1971. Assim como tinha mostrado os discos dos Yes aos Mutantes, é também Lúcia Turnbull a mostrar o grupo Lisergia a Rita Lee. E é com os músicos da Lisergia que todas as peças se encaixaram. A banda de suporte a Rita Lee para o delirante ano e meio que se seguiu estava encontrada: Lúcia Turnbull (guitarra e violão), Luis Sérgio Carlini (guitarra), Lee Marcucci (baixo) e Emilson Colantonio (bateria).


Destaques na imprensa da nova Rita Lee com o show Tutti Frutti em 1973 (Diário de Notícias, Junho / Geração POP, Outubro / O Cruzeiro, Dezembro).

Tutti Frutti. É este o nome escolhido para o espectáculo da nova Rita Lee. Os músicos recém-chegados têm muito pouco tempo para preparar tudo (em Junho ainda é o conceito das Cilibrinas que é mencionado nas entrevistas) até porque a estreia está marcada para para 15 de Agosto de 1973, na sala mais pequena do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. As novas canções cruzam-se com o imaginário revolucionário, sexual (e sexualmente ambíguo) dos anos 50 através de versões de temas como “Tutti Frutti” (Little Richard e Dorothy LaBostrie, 1955) ou “Roll Over Beethoven” (Chuck Berry, 1956) e de projecções de imagens icónicas de estrelas como Sal Mineo, Jayne Mansfield ou Elizabeth Taylor. O espetáculo, produzido por Mónica Lisboa, contou com a direcção musical de Zé Rodrix (que tinha acabado de participar no disco de estreia dos Secos & Molhados), filmes de Abrão Berman (em super 8) e cenografia de André Peticov com diversos efeitos de luz, projecção de slides e incenso aceso na boca do palco. A direcção é de Antonio Bivar, que tinha acabado de trabalhar com Maria Bethânia em Drama. A temporada dura um mês com apresentações diárias e segue depois rumo ao sul do Brasil. A 16 de Novembro segue-se mais uma temporada de um mês, desta vez no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro. Nas versões presentes no repertório junta-se mais uma colagem de “Quizás, Quizás, Quizás” (Osvaldo Farrés, 1947 — mais conhecida na voz de Nat “King” Cole) com “Que Será, Será” (Jay Livingston e Ray Evans, 1955 — mais conhecida na voz de Doris Day). O crítico Júlio Hungria resume o espectáculo como sendo “duas horas de música, ideias, uma boa fatia de nostalgia e uma certa dose de erotismo, puro e adolescente”. Na estrada tudo corria bem, mas onde estavam os discos de suporte e rentabilização dos shows? Desde finais de Junho (ainda em referência às Cilibrinas) surgem notícias sobre novas gravações de Rita Lee. Imediatamente antes do início da temporada, no início de Agosto, é noticiada a gravação e lançamento para breve do single “Mamãe Natureza” / “Gente Fina”. A notícia referente à gravação volta aos jornais no final desse mês, e o jornal Tribuna de Imprensa publica as letras de ambos os temas do single e de “Paixão da minha existência atribulada” (apontando-os como temas a lançar no próximo LP). Mas nada acontece. Em Setembro, e supostamente após o veto à ideia de uma gravação ao vivo, têm efetivamente lugar as gravações dos temas a incluir no álbum de estúdio a lançar na época natalícia que se avizinha. A produção fica a cargo de Liminha, que militava ainda nos Mutantes (e que terá uma carreira impressionante como produtor nas décadas seguintes, das Frenéticas a Chico Science passando pelos Titãs). Para além dos três temas referidos são gravados “Festival Divino”, “Bad Trip / Ainda Bem”, “Nessas alturas dos acontecimentos”, “Cilibrinas do Éden / Vamos voltar ao princípio porque lá é o fim”, “E você ainda Duvida? / Tutti Frutti” e uma versão para “Minha Fama de Mau” de Erasmo Carlos. Na imprensa, em Outubro, a letra de “Gente Fina” volta a ser publicada no Jornal do Brasil e, em Novembro, o mesmo jornal destaca o provável sucesso da canção. Mas nada acontece. Nem single, nem álbum.


Rita Lee e o show Tutti Frutti: cartaz para a temporada no Teatro Ruth Escobar, capa do programa e capa do disco engavetado em Dezembro pela Polydor.

Só anos depois, com a análise dos documentos da censura militar brasileira, torna-se mais claro o porquê do não lançamento do single com a canção “Gente Fina”. A letra é vetada numa primeira avaliação dos censores a 30 de Agosto. Volta a ser vetada em nova apreciação a 4 de Setembro. Volta a ser vetada a 21 de Novembro por um painel de 4 censores e é definitivamente vetada a 22 de Novembro pela última técnica de censura que aprecia a letra. Os argumentos referidos nas várias apreciações para a não liberação da letra são sempre enquadrados legalmente. Alguns excertos dos relatórios: “a sua liberação poderia acarretar uma desagregação social e familiar, de consequências negativas”, “influência perniciosa na juventude”, “jovens que seguem os caminhos impostos pela sociedade tradicional, com comportamento semelhante ao do pai é contestado”, o que “supõe a sugestão do que seria positivo: engajamento no mundo marginalizado de jovens rebeldes”, “consubstancia princípios de revolta e uma crítica picante aos costumes”, “um desafio aos que não comungam do sistema de vida ‘hippie'”, tendo em conta “tratar-se de matéria para gravação em disco, que terá grande penetração entre as diversas camadas sociais”. Apesar de nunca assumido pela editora, é provável que a publicação integral das letras de algumas canções nos jornais funcionasse como um argumento para ajudar à não censura das mesmas para gravação, mas o eventual efeito terá sido nulo. Na impossibilidade de lançamento, a Polydor desiste do lançamento do single e exclui a canção “Gente Fina” do alinhamento do álbum. No entanto, dos temas escolhidos para o álbum, também “Ainda bem (que eu não desisto)” tem a letra vetada a 23 de Outubro. O censor interpreta a letra como “anti-social, potencialmente indutiva ao suicídio”. No entanto, uma nova apreciação pela chefe do serviço de censura acaba por autorizar a gravação a 1 de Novembro argumentando que “entre o desespero [da] morte e continuar vivendo, há opção pela segunda hipótese, e enfrentar a vida já é algo de positivo”. Mas apesar de em Novembro o álbum estar finalizado e a sua capa pronta, o Natal passa, chega 1974, e nada acontece. O disco, intitulado Tutti Frutti (com o número de catálogo 2451 038 da Polydor), deveria ter sido lançado na mesma fornada natalícia da editora juntamente com o álbum branco de João Gilberto (2451 037) e o novo Tim Maia (2451 041), mas é engavetado por André Midani. As razões nunca foram públicas mas, para além das razões pessoais resultantes do envolvimento de Midani com Rita Lee, é provável que houvesse dúvidas do apelo comercial do disco e do repertório face ao potencial da artista, do qual Midani nunca duvidou. Mas o engavetamento do disco não fica sem troco. Uns dias depois, percebendo o engavetamento definitivo, Rita Lee vai à editora pedir satisfações. Midani ainda não tinha chegado, mas chega igualmente furioso à editora o enorme Tim Maia. O álbum acabado de lançar não tem na capa a imagem escolhida por ele e, palavra puxa palavra, abrem ambos alas até ao gabinete de Midani onde não deixam folha sobre folha. Depois de destruído o gabinete despedem-se cordialmente da secretária, já que o recado está dado. No caso de Tim Maia será mesmo um duplo adeus, até porque estava a chegar a sua genial e irracional fase racional.


Novo fôlego em 1974: Rita Lee, as botas prateadas da Biba e o Tutti Frutti. Poster e capa do álbum Atrás do porto tem uma cidade

No início de 1974 têm lugar os últimos concertos do show Tutti Frutti, denominação que passa agora a designar os quatro músicos que acompanham Rita Lee. Mas, depois de um ano sem qualquer lançamento discográfico, a Phonogram prepara de um modo mais articulado a nova temporada que se avizinha. O repertório do disco engavetado, com excepção de “Mamãe Natureza”, é esquecido. Os meses de palco dão os seus frutos e há agora um entrosamento perfeito da banda e um lote de novas composições de Rita Lee. A anarquia e a nostalgia dos primórdios do rock do ano anterior estão agora submetidos a uma lógica onde o som e imagem são assumidamente glam, nas palavras de Rita Lee, “um Bowie do terceiro mundo”. De lado ficam as composições em parceria com Lúcia Turnbull ou Sérgio Batista e é agora a dupla Lee Marcucci e Luis Sérgio Carlini que partilha a escrita de algumas canções. Rita Lee está mais segura e concentra-se nos teclados que incluem o Minimoog D, Clavinet d6 ou o Mellotron m400. Atrás do porto tem uma cidade é gravado em Março e Abril e no início de Maio saem notícias do termino das gravações. A produção é entregue ao mais experiente Mazzola. Apesar do trabalho em palco (que irá continuar a fazer), o baterista Emilson Colantonio não consegue em estúdio acompanhar a banda. Nas sessões de gravação, as partes de bateria do álbum são gravadas pelos bateristas ‘Mamão’ (Azymuth, Hyldon, Helio Matheus), Paulinho Braga (Emílio Santiago, Cassiano, Djavan) e eventualmente Gustavo Schroeter (A Bolha, Jorge Ben, A Cor do Som), apesar de este não ser creditado. Muito comentado anos depois é o tema “Menino Bonito”. Supostamente gravado como um dueto com as vozes e violões de Rita Lee e Lúcia Turnbull acaba por ser finalizado como arranjos de cordas, piano, baixo e bateria apenas com Rita Lee. Curiosamente ou não, é o único tema do álbum que não fará parte do alinhamento dos concertos do show que é montado após o lançamento do disco, mesmo no final de Junho. A capa é da autoria de André Peticov e Cláudio Moszko (que irá continuar a trabalhar na cenografia dos espetáculos de Rita Lee até 1976). 


O inconfundível verniz sorridente da revista Geração Pop, lançada mensalmente entre Novembro de 1972 e Agosto de 1979. A “louca e colorida casa de Rita Lee” é um dos destaques do número de Agosto de 1974 (curiosamente na reportagem falta Lúcia Turnbull).

A recepção do disco, por parte da crítica, é bastante diversa no ano de 1974: “Rita Lee Jones (…) perdeu a ingenuidade que usava, com seus ex-companheiros, como interessante matéria-prima. E não conseguiu encontrar o amadurecimento nem recuperar seu senso de humor. (…) Apesar da inegável qualidade de seus músicos (fato raro no gênero) falta às suas nove canções um mínimo de substância, idéia, invenção”. (Ana Maria Babiana, Opinião, 19 de Agosto) “As músicas trazem a conhecida ingenuidade, acrescentada de letras com uma monocórdia temática falsamente contracultural que seria repudiada com facilidade por qualquer líder hippie americano em quem se supõe tenha se inspirado. Rita Lee teve quase todas as chances e é certo que afora o trabalho inicial com o Mutantes, não aproveitou nenhuma. Não se transformou em superstar nem foi amada loucamente pelo udigrude [underground]; não auferiu as delícias do capitalismo fonográfico nem ameaçou-o de qualquer forma. Afinal, para se saber se atrás do porto tem uma cidade é preciso, antes, levar a embarcação até um porto seguro. Até Cabral sabia disso”. (Roberto Moura, Tribuna de Imprensa, 4 de Julho) “Rita Lee é hoje uma cantora que sabe das suas possibilidades. Ela é capaz de ser carinhosa, acariciante, frenética e revoltada, e tudo isso ao som das guitarras agitadas ou melosas que Sérgio e Lúcia Turnbull souberam desenvolver com magia e perfeição. (…) Nenhum artista brasileiro tinha conseguido fazer um disco que tivesse os shoobedoodaudau tão perfeitos, e Rita atingiu plenamente seu objetivo”. (Sérgio Cabral, Diário de Notícias, 9 de Julho) “Excelente gravação e talvez a melhor mixagem já feita no Brasil. Se os grupos brasileiros já conseguem um som próximo ao de seus colegas estrangeiros, as letras e a melodia ainda estão bem longe disso”. (Clever Pereira, Jornal do Brasil, 24 de Julho) Já Caetano Veloso acha-o “o melhor disco lançado no Brasil este ano” (Jornal do Brasil, 7 de Agosto), e vai integrar “Mamãe Natureza” nos seus shows e gravar o tema nas sessões de “Jóia / Qualquer Coisa” (a gravação só será editada em 2006 no CD de raridades, Pipoca Moderna).


Tour de Atrás do porto tem uma cidade: pormenor do programa, reportagem de Novembro de 1974 (revista Geração Pop) e Hollywood Rock (Janeiro de 1975).

A inauguração do Teatro da TV Bandeirantes (hoje um templo da Igreja Universal) em São Paulo a 12 de Agosto de 1974 é a oportunidade para a Phonogram mostrar a (novamente) nova Rita Lee. O evento junta alguns dos nomes mais sonantes do cast de MPB da editora: Elis Regina, Chico Buarque, Maria Bethânia e Tim Maia (já de saída). No especial exibido na TV Bandeirantes ficaram registados para a posteridade três dos temas do novo álbum: “Mamãe Natureza” (numa versão épica de 9 minutos), “De pés no chão” e “Pé de meia”. O palco com uma banda rock liderado por duas mulheres e secundado pelos restantes músicos é algo único naquela época. Mesmo não sendo possível comprar este novo show com o anterior Tutti Frutti (do qual não sobreviveram registos conhecidos), dificilmente a confiança, destreza e precisão pop mostradas são ultrapassáveis. Lúcia Turnbull, para além da guitarra solo, partilha as vozes com Rita Lee que percorre livremente o palco alternando entre os teclados, a flauta e a voz principal, assumindo finalmente o papel de estrela da companhia. O show Atrás do porto tem uma cidade ficará em cena até ao final de Agosto no Teatro Bandeirantes e seguirá depois para outras cidades. O show com 15 temas é organizado tematicamente (com títulos como “Os Sonho” ou “Os Perigos da Cidade” para cada conjunto de canções). Para além dos temas do novo disco, são ainda apresentados mais sete temas inéditos, numa demonstração da recente explosão criativa do grupo. Os meses seguintes são passados na estrada e circula há anos uma excelente gravação da temporada em Belo Horizonte (gravada em Outubro) onde se podem ouvir alguns dos temas inéditos. No início de 1975, Rita Lee e Tutti Frutti são um dos nomes escolhidos para encabeçar o festival organizado por Nelson Motta, o Hollywood Rock. Alguns dos melhores momentos do festival (uma sucessão de concertos em quatro fins de semana) foram registados em película e lançados no filme Ritmo Alucinante. O inédito “Sem cerimónia” e uma versão de “Splish splash” (um original de Bobby Darin e Murray Kaufman de 1958, popularizado no Brasil na versão de Erasmo Carlos por Roberto Carlos em 1963) que descamba num longo improviso instrumental. Após o Hollywood Rock, as últimas apresentações desta versão do Tutti Frutti têm lugar no final de Janeiro no Teatro Castro Alves em Salvador. A relação com a Phonogram está, no entanto, por um fio. Discussões sobre os próximos passos da carreira de Rita Lee e o seu enquadramento no universo da Phonogram de André Midani, levam a uma rutura entre ambos. Ao mesmo tempo, e supostamente resultante de alguma inconstância e menor envolvimento com o resto do grupo, Lúcia Turnbull abandona o grupo. Também o baterista Emilson Colantonio sai da banda. As cordas vocais de Rita Lee estão no limite e têm de ser operadas. Está, assim, aberto espaço para uma reformulação do Tutti Frutti. Para marcar esta nova reinvenção de Rita Lee e do seu grupo, no final de Março é anunciado o novo contrato com a Som Livre, editora discográfica associada à TV Globo. Cinco meses depois estará nas ruas Fruto Proibido, onde se começam a recolher os frutos de todo o trabalho anterior com o sucesso de “Ovelha Negra”. E o sucesso não mais irá parar. Até hoje foram cerca de 55 milhões de discos vendidos, mais do que os dos discos vendidos por Maria Bethânia, Gal Costa e Elis Regina todos somados. 

E as botas prateadas? Curiosamente, as botas saqueadas na londrina Biba em 1972, depois de serem uma das sensações da tour de 1974, voltam a aparecer nos pés de Rita Lee em imagens do final da década, por alturas do show Babilónia. Um espectáculo com um elaborado guarda roupa, desenhado por nada menos que Barbara Hulanicki, a criadora da Biba londrina. Tudo foi fácil, já que a estilista se tinha mudado para o Brasil após a falência da loja Big Biba em 1975 (um espaço com vários pisos que tinha sucedido ao pequeno espaço visitado pela Rita Lee em 1973). Círculo fechado.



Mas o que aconteceu às músicas e gravações que ficaram na gaveta e no chão dos palcos destes alucinantes dois anos? Aqui fica um guia para completistas.

Da actuação no Phono 73, o duo das Cilibrinas apresentou um pequeno set de cerca de 20 minutos com quatro temas (referidos em “O Jornal” no balanço do festival), naquela que é a sua única gravação conhecida:

– “Mamãe Natureza” (gravada posteriormente para o álbum engavetado Tutti Frutti de 1973, é lançada oficialmente no álbum Atrás do porto tem uma cidade de 1974);

– “Cilibrinas do Éden” (gravado como “Vamos voltar ao princípio porque lá é o fim / Cilibrinas do éden” nas sessões do álbum engavetado Tutti Frutti de 1973);

– “Não é nada disso” (irá ficar esquecida até ser reformulada e gravada como “Fruto proibido” no álbum de 1975);

– “Bandido corazón” (será oferecido com uma letra redesenhada à medida de Ney Matogrosso para o seu segundo disco a solo, Bandido, de 1976. Curiosamente Rita Lee nunca lançou o tema apesar de o ter voltado a tocar nos espectáculos do show Babilónia de 1978).

As gravações a solo para o álbum engavetado Tutti Frutti (efectuadas em Setembro de 1973), tiveram um percurso bastante sinuoso:

– “Mamãe Natureza”, “E você ainda duvida / Tutti Frutti” e “Minha fama de mau” são lançadas com palmas adicionadas no LP Hollywood Rock em Março de 1975 (uma decisão aparentemente tomada face à precariedade do registo dos concertos);

– No ano seguinte, “E você ainda duvida / Tutti Frutti” surge novamente na compilação O Melhor de Rita Lee, mas sem palmas adicionadas;

– Numa nova compilação do fundo de catálogo da Phonogram, organizada por Armando Pittigliani em 1981, surgem os temas “Nessas alturas dos acontecimentos”, “Paixão da minha existência atribulada” e “Minha fama de mau” (sem palmas adicionadas);

– A censurada “Gente Fina” é regravada com outra letra passando a ser “Locomotivas”, tema da novela do mesmo nome de 1977;

– “Bad Trip / Ainda Bem” é regravada como “Shangrilá” do álbum Rita Lee de 1980.

Em 2000, o pesquisador e editor Marcelo Fróes preparou o lançamento em CD do álbum Tutti Frutti (como tinha feito com o resgate de Tecnicolor dos Mutantes) mas, por “questões burocráticas”, o lançamento foi bloqueado. Uns anos depois acaba por surgir no mercado um disco pirata bastante trapalhão, lançado em CD e LP. Intitula-se erradamente Cilibrinas do Éden, mas inclui finalmente as gravações que ainda estavam inéditas das sessões de 1973: “Festival Divino”, “Bad Trip / Ainda Bem”, “Cilibrinas do Éden / Vamos voltar ao princípio porque lá é o fim” e “Gente Fina”.

Do show “Atrás do Porto tem uma cidade” que esteve em cena de Agosto de 1974 até ao início de 1975 os temas não lançados na época foram:

– “Despertar dos mágicos”, “Brisa Verde”, “Voar é com os Pássaros” e “Burning Low” que permanecem inéditas;

– “Não me Kiss” foi gravada em 1978 para o LP Babilónia como “Eu e o meu Gato”;

– “Sem Cerimónia” foi gravada em 1978 para o LP Babilónia (uma versão ao vivo existe no filme Ritmo Alucinante de 1975);

– “Esse tal de Rock & Roll” foi gravado em 1975 para o LP “Fruto Proibido” como “Esse Tal De Roque Enrow” com a letra revista em parceria com Paulo Coelho.

Uma boa gravação do show completo em Belo Horizonte em Outubro de 1974 circula há anos, o que permite conhecer os temas inéditos (só os temas “Brisa Verde” e “Esse tal de Rock & Roll” faltam no alinhamento, não tendo sido tocados nessa noite, compensados pelo encore com uma versão bem crua de “Roll Over Beethoven”).



Fontes principais:
Cilibrinas no Phono 73 (apenas áudio) / Filme Completo: Inauguração do Teatro Bandeirantes, 1974 / Filme completo: Ritmo Alucinante, 1975 / O Som do Vinil: Fruto Proibido / Rita Lee, uma autobiografia, Rita Lee, 2017 / A Divina Comédia dos Mutantes, Carlos Calado, 1995 / Favorita, Rita Lee, 2018 / É o meu parecer: a censura política à música de protesto nos anos de chumbo do regime militar do Brasil (1969-1974), Amilton Souza, 2010 / Liminha em entrevista @provoca / Documentário: Lucinha Turnbull, Guitarrista de Gil e Rita Lee / Lúcia Turnbull em entrevista @trip / Blog Eu Amo Rita Lee, 2010-2018 / Blog Tutti Frutti 2011-2018 / Glitter and curls: Marc Bolan and the birth of glam rock style @guardian / The Rise and Fall of the Biba Boutique @ Flashbak / Muzicrave, raridades musicais brasileiras / Livro de Rita Lee exala rancor pelos Mutantes, André Barcinski, 2016 / Os Mutantes: a hora e a vez, Leila Lisboa, 2021 / Consultoria do Rock: Rock Brasileiro 1974 – 1976 / Planet Mellotron: Atrás do Porto / Álbum solo de Rita Lee de 1973 surge em edição não-autorizada @folha / Arquivos digitais das revistas e jornais brasileiros de 1972 a 1975/ / 1973: O Ano que Reinventou A MPB, Celio Albuquerque, 2013.

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