Janeiro de 1969. Elis Regina, Edu Lobo, Os Mutantes, Gilberto Gil e Chico Buarque. São estes os músicos selecionados para representar o Brasil no iminente MIDEM (Marché international du disque et de l’édition musicale), na época um dos mais prestigiados eventos de música no mundo, com diversas apresentações ao vivo para a nata da indústria musical. O evento tem a data marcada para o terceiro fim de semana de janeiro em Cannes, França. Mas o verniz da normalidade termina aqui. Quando a linha dura da ditadura militar se havia instalado no poder em março de 1967, com a presidência do Marechal Costa e Silva, qualquer esperança de um regresso à democracia no Brasil, suspensa pelo golpe militar de 1964, desaparece completamente. Nos meses seguintes o regime torna-se cada vez mais intolerante com qualquer ameaça real ou imaginária. E uma cascata de detenções, torturas e assassinatos intensificam-se durante o ano de 1968. Um dos protestos pacíficos contra este crescendo de ilegalidades e brutalidade (com destaque para os acontecimentos da “Sexta feira sangrenta“) tem lugar no final de junho no Rio de Janeiro com a “Passeata dos 100 mil“. Entre os muitos artistas e intelectuais presentes contam-se Gilberto Gil, Edu Lobo ou Chico Buarque. O culminar deste crescendo repressivo dá-se a, por sua vez, 13 de dezembro, com a publicação do AI-5 (Ato Institucional 5), um dos 17 decretos especiais promulgados entre 1964 e 1969. Com a sua entrada imediata em vigor, quaisquer resquícios de liberdade política, de opinião ou independência judicial desaparecem. Em São Paulo, Gilberto Gil é preso juntamente com Caetano Veloso. No Rio de Janeiro, Chico Buarque é detido em casa e levado para interrogatório. Embora acabe por ser libertado no final do dia, apenas pode deixar a cidade com autorização militar superior.
Janeiro de 1969. Chico Buarque contacta os militares e é autorizado a ausentar-se do país para a anunciada viagem ao MIDEM em Cannes. Tem 24 anos e não irá regressar ao Brasil nos próximos 14 meses. Já Gilberto Gil não irá viajar com a comitiva por motivos óbvios: está preso. Mas não oficialmente, claro. O seu agente, Guilherme Araújo, numa entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo” justifica a sua ausência com compromissos do músico no Brasil e outros motivos sobre os quais prefere não falar. Logo após a apresentação no MIDEM, Chico Buarque parte para Roma com a sua mulher, Marieta Severo, grávida de 7 meses. Nos meses seguintes, as notícias vindas do Brasil e as mensagens de aviso de Caetano Veloso (exilado com Gilberto Gil a partir de julho desse ano em Londres) são desencorajadoras, revelando uma forte probabilidade de prisão imediata no caso de regresso. E aquilo que era para ser uma curta estadia de semanas acaba por se transformar num exílio “voluntário” de longos meses. Uma adaptação difícil apesar da alegria do nascimento da sua filha Sílvia a 24 de março.
Apesar de ter passado parte da sua infância em Itália, a fluência no italiano está perdida e tem de ser rapidamente recuperada, até porque a sua editora de então, a RGE (Rádio Gravações Especializadas), não perde tempo e quer um disco gravado e editado rapidamente. Trata-se de um álbum com versões cantadas em italiano de canções editadas originalmente no Brasil (essencialmente do seu álbum de estreia). Neste não podia faltar “A banda”, grande sucesso de 1966, que também em Itália se tinha destacado na interpretação da popular Mina Mazzini no ano seguinte. O disco conta com a supervisão de Antonio Pecci Filho, mais conhecido como Toquinho, e é produzido por Sergio Bardotti que também assina a tradução das letras e que irá acompanhar Chico Buarque em todo o seu périplo italiano. Como na época o mercado dos singles ainda era mais importante que o dos álbuns, é retirado do álbum um single ‘Far Niente / Una Mia Canzone’, sendo seguido pela edição de um outro single. Este, ao contrário do álbum, contém dois temas originais: “Cara Cara” e “Ciao Ciao Addio”. Serão os únicos temas originais lançados por Chico Buarque em 1969. Tanto o álbum como o single são também lançados pela RGE no Brasil. Sem grande repercussão, vão marcar o fim do contrato do compositor com a editora, apesar de esta continuar a tirar partido do fundo de catálogo de Chico Buarque com o lançamento de duas compilações na Itália. Trata-se de Il Mondo Di Chico Buarque de Hollanda, lançado ainda em 1969 e Le Sue Canzoni, lançado em maio de 1970 (ambas usando as gravações originais em português dos seus três primeiros álbuns brasileiros). Para além dos lançamentos discográficos e de ocasionais apresentações na TV italiana, é com o seu amigo Toquinho que parte numa tournée na qual fazem a abertura dos shows da lendária Josephine Baker. Os espectáculos não lhes trazem muito reconhecimento mas tornam a sua estadia viável financeiramente.
Com o avançar do ano de 1969, o fôlego inicial e as esperanças de uma carreira internacional esfumam-se. Toquinho regressa ao Brasil em novembro e é firmado um novo contrato com aquela que se está a tornar a editora de referência para moderna Música Popular Brasileira (MPB), a Philips. Contrato acompanhado de um muito necessário adiantamento financeiro. No início de dezembro, o produtor Manoel Berembein viaja para Itália para começar a produção do próximo álbum de Chico Buarque, que trará finalmente a gravação de um novo lote de canções. Os arranjos vão ser repartidos por Antônio José Waghabi Filho (mais conhecido como “Magro” do conjunto MPB-4), Erlon Chaves e César Camargo Mariano. O invulgar processo de gravação inicia-se com o registo em Roma da voz e guitarra “guia” de Chico Buarque. Estas gravações de referência são enviadas para o Brasil onde a secção rítmica definitiva (piano, baixo e bateria) é gravada. De volta a Itália, é a vez de Chico Buarque adicionar em estúdio as suas partes de forma definitiva. As fitas são finalmente enviadas de volta ao Brasil onde a orquestração é adicionada e é feita a mistura final (o processo de gravação é ainda em quatro pistas) para aquele que será o seu quarto álbum de originais. Em fevereiro de 1970, o disco está pronto para ser lançado. E ao mesmo tempo começa a ser noticiado o regresso ao Brasil de Chico Buarque, que assina em Paris o contrato para uma temporada de shows na boate Sucata. O regresso acontece, finalmente, no dia 20 de março de 1970. Um regresso bem badalado (um conselho de Vinicius de Moraes para evitar no imediato complicações com a ditadura militar) com a presença de todos os media, da banda de Altamiro Carrilho e dos amigos no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro.
A Philips de André Midani não perde tempo e, em menos de duas semanas, o disco Chico Buarque de Hollanda N.º 4 é lançado, um especial para a TV Globo e uma temporada de shows na Boate Sucata irá decorrer nos meses de abril e maio. A banda de suporte de Chico Buarque é de tirar o fôlego: Osmar Milito (piano), Novelli (contrabaixo), Robertinho Silva (bateria), Paulo Moura (sopros), mais o MPB-4 com quem irá sempre partilhar o palco até 1975, altura em que deixa os palcos por quase uma década. A temporada e o disco são bens recebidos, mas Chico Buarque terá sempre pouco apreço por este disco e por muitas das suas canções. Com efeito, o disco é um trabalho de transição para uma maturidade que se irá plenamente afirmar nos discos seguintes, sendo um trabalho pouco desigual e com pouca coerência musical, provavelmente resultado do processo fragmentado da sua gravação. Seriam, nas palavras de Chico Buarque, “as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho”. E o regresso traz novas dificuldades. Antes do exílio, algumas letras tinham sido censuradas e a peça escrita por Chico Buarque, “Roda Viva” tinha acabado por ser banida (já depois dos ataques pela organização paramilitar “Comando de Caça aos Comunistas“), mas agora a censura prévia estava instituída e era sistematicamente aplicada. Todas as letras e espectáculos tinham de ser previamente aprovados pelos censores. Muitas letras serão simplesmente proibidas, noutras há palavras que têm de ser mudadas e frases dolorosamente negociadas e alteradas. Quanto aos espectáculos ao vivo, é obrigatória uma apresentação prévia do espetáculo apenas para os censores.
Mas esta é apenas metade da história. Aproveitando a pausa entre o contrato da RGE e da Philips no final de 1969, é também assinado um contrato com a RCA italiana para a gravação de um álbum e temporadas de promoção para o ano de 1970. O disco, idealizado pelo seu amigo, produtor e tradutor Sergio Bardotti, terá como orquestrador nada mais nada menos que Ennio Morricone. O trabalho de gravação do disco tem lugar entre 11 de maio e 12 de julho de 1970 nos estúdios da RCA italiana. Mas, apesar das incertezas no regresso, com o passar do tempo Chico Buarque decide que o regresso ao Brasil será definitivo, até porque irá ser pai pela segunda vez. Mas o compromisso italiano mantém-se e numa curta viagem a Roma (de 24 de junho a 5 de julho) são gravadas as suas partes para o disco com Ennio Morricone. Pouco tempo depois, em agosto, Chico Buarque está de regresso a Roma para uma temporada que inclui a promoção ao lançamento do novo disco, batizado Per un Pugno di samba com lançamento para o mercado italiano em setembro. Ao contrário do programado, o conjunto MPB-4, que acaba de lançar um dos seus melhores álbuns Deixa Estar…, não o acompanha para uma série de concertos na Europa. Já o elegante disco da RCA, que respira por todos os sulcos o toque inconfundível do maestro italiano, tem como repertório uma mistura de seis novas canções (que tinham sido gravadas de um modo distinto uns meses antes para Chico Buarque de Hollanda N.º 4) e novas versões para seis temas mais antigos (ainda dos anos RGE). O disco não tem muito impacto, nem mesmo com o lançamento em janeiro de 1971 de dois dos temas mais fortes num single: “Samba e Amor” e “Rotativa” (tema utilizado nessa altura pela RAI para a “Escola Aberta”).
A colaboração de Chico Buarque com Ennio Morricone é também editada em 1971 em Espanha e em França. Estas outras edições europeias não seriam assinaláveis se contivessem o mesmo disco lançado originalmente em Itália. Mas, independentemente de pequenos ajustes na duração das faixas e de a base instrumental se manter, a surpresa está na pista das vozes, onde não ouvimos Chico Buarque a cantar em italiano, mas sim em português. Discos siameses, portanto. Um detalhe curioso é esta versão do tema “Samba e Amor” estar ausente da edição espanhola, quiçá um corte de um censor mais pudico em plena ditadura franquista. Muitos anos depois, já nem Chico Buarque se lembrava de ter gravado as duas versões daqueles discos! Mas o tempo não pára e dia 7 de novembro de 1970 Chico Buarque regressa ao Brasil de barba e bigode, um sinal da fase mais adulta que aí vem. Em dezembro nasce a sua segunda filha, Helena, e mesmo no final desse mês é lançado em single o samba, “Apesar de você”. Marcando dois dos anos mais atípicos na carreira de Chico Buarque, o exílio italiano acabou por resultar em quatro álbuns. Fora o disco “de carreira”, editado pela Philips, e que se manteve em catálogo, os restantes discos só voltaram a estar largamente acessíveis com as edições em CD entre o final dos anos 90 e início dos anos 2000.
Post scriptum. Quanto aos restantes artistas da comitiva ao MIDEM em Janeiro de 1969, Gilberto Gil só irá voltar do seu exílio forçado em Londres em 1972, Elis Regina é interrogada em novembro de 1971 por declarações à imprensa na Europa, sendo coagida a assinar uma”‘confissão” e a interpretar o hino nacional das olimpíadas do exército de 1972, Edu Lobo parte para os Estados Unidos durante 1969 (a sua única gravação desse ano foi feita em agosto com o saxofonista Paul Desmond) e só regressará em 1972. Para além da censura recorrente que vai atrapalhar grande parte da posterior carreira de Rita Lee, Os Mutantes não sofreram perseguições tão marcadas, eventualmente por serem tão jovens nesse início de 1969. Rita Lee, a mais velha do trio, tinha acabado de fazer 21 anos, a 31 de dezembro de 1968.
Discografia ‘italiana’ de Chico Buarque 1969-1970:
Chico Buarque De Hollanda (LP RGE-RCA 1969 / CD 1997 – inclui os temas inéditos do single) – cantado em italiano.
Cara a Cara / Ciao Ciao Addio (Single RGE-RCA 1969) – cantado em italiano.
Chico Buarque De Hollanda • Nº 4 (LP Philips Mono 1970 / LP Philips Estéreo 1983 / CD Philips 1989) – cantado em português.
Per Un Pugno Di Samba (LP RCA IT 1970 / CD BMG 2003) – cantado em italiano.
Sambas Do Brasil / Por Un Puñado De Samba* (LP RCA FR/ES 1970 / Sonho De Um Carnaval CD RYM 2000) — cantado em português.
*reeditado em LP com outra capa em 1975 em França e Uruguai.
Principais fontes: Periódicos (arquivos digitais): Jornal do Brasil / O Pasquim / Revista Manchete / O Cruzeiro / Revista Trip – Marieta Severo, 2004, G1 / Folha de S. Paulo // Livros: Para seguir minha Jornada — Regina Zappa, 2011 / Histórias de Canções Wagner Homem, 2009 / Songbook Chico Buarque – 4 volumes — Almir Chediak, 2009 / Tantas Palavras — Humberto Werneck, 1995 / Chame o Ladrão — Natália Lambert, 2006 // Sites: Instituto Moreira Salles – David Drew Zingg / Instituto António Carlos Jobim / Chico Buarque / Memórias da Ditadura