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Ilustração: Carlos Soares
Publicado a: 02/03/2022

Sonho 70. Linhas cruzadas de uma dupla improvável.

Notas de Contracapa #1: Egberto Gismonti e Marie Laforêt

Ilustração: Carlos Soares
Publicado a: 02/03/2022

Março de 1970. Egberto Gismonti, de 22 anos, está em Paris a estrear-se como diretor musical da nova temporada da atriz e cantora Marie Laforêt no Bobino, uma popular e centenária casa de espetáculos por onde passaram nomes como Josephine Baker, Jacques Brel, Juliette Gréco ou Léo Ferré. O ambicioso projeto desta nova fase criativa de Laforêt, que tinha recentemente firmado contrato com a CBS, passa ainda pela edição de um álbum de estúdio com o novo repertório. Mas tal nunca aconteceu. A CBS, preocupada com a suposta falta de apelo comercial das canções e com a competição do contínuo lançamento de material inédito pela anterior editora (para saldar o seu contrato com a editora Festival no final de 1968, Marie Laforêt deixou gravados 18 temas inéditos), decide terminar unilateralmente o contrato e processar a artista em tribunal exigindo um valor de 380 mil francos (cerca de 420 mil euros a valores actuais). Mas voltando um pouco atrás, como é que um inexperiente músico brasileiro se torna diretor musical de uma das mais conceituadas estrelas do music hall francês?


Detalhe das capas dos LPs Sonho 70 e Récital (ambos lançados em 1970)

Setembro de 1968. Um jovem compositor de apenas 20 anos consegue que a sua canção “O Sonho” seja uma das 10 selecionadas para a fase final do III Festival Internacional da Canção (FIC), cuja competição decorrerá no Maracanãzinho (Rio de Janeiro). Para além de compositor, o músico faz também os arranjos para a grande orquestra que irá acompanhar Os Três Morais na apresentação do tema, para espanto do maestro Radamés Gnatalli que pergunta ao compositor “Quem fez o arranjo?” “Eu”. “Não, menino, você trouxe o arranjo. Quem que escreveu?” “Ora, fui eu que escrevi”. Mas claro, apesar de recém chegado à música popular, Egberto Gismonti vinha de uma família de músicos, tendo completado o curso de piano do conservatório, escola que frequentava desde os cinco anos de idade. Neste final de 1968, mesmo não tendo sido premiado com “O Sonho”, é decorrente do impacto no Festival que a editora Elenco lhe oferece a oportunidade de gravar o seu primeiro álbum. Entre agarrar essa oportunidade ou prosseguir os seus estudos académicos com uma bolsa de estudo em Viena de Áustria, o compositor, a conselho de Tom Jobim (que lhe pergunta se ele quer “ir a Viena” ou “ir para Viena”), decide-se pelo caminho recentemente aberto como compositor de música popular. Entretanto o tema “O Sonho” continua a amplificar o seu impacto ao ser gravado internacionalmente por músicos tão díspares como Paul Mauriat ou Henry Mancini.


Primeiro álbum de Egberto Gismonti (edição brasileira de 1969 e italiana de 1970)

Fast forward para o IV Festival Internacional da Canção em setembro de 1969. Num ano muita coisa tinha mudado e o ambiente era bem diferente. Com a ditadura militar a entrar na sua fase mais repressiva, com a publicação do AI-5 mesmo no final de 1968, são agora vários os artistas exilados e/ou ausentes do país: Caetano Veloso e Gilberto Gil em Londres, Chico Buarque e Elza Soares em Roma, Edu Lobo com Sérgio Mendes na Califórnia, Marília Medalha a descer aos infernos. Desta vez a canção apresentada por Egberto Gismonti a concurso, “Mercador de Serpentes”, não é selecionada para a final do FIC, mas há quem, entre o público, seja a primeira a aplaudir a prestação. Entre os inúmeros convidados internacionais do Festival está a recém-chegada Marie Laforêt, que, como é noticiado uns dias depois, está no Brasil à procura de compositores para o seu próximo disco de estúdio. Estabelecido o contacto com o jovem Gismonti, surge o convite para que este faça os arranjos de alguns temas. Estes são posteriormente enviados pelo correio e, em dezembro, o convite estende-se para as gravações em Paris e para o acompanhamento ao vivo da cantora na sua próxima tournée. E é assim que, em fevereiro de 1970, encontramos Egberto Gismonti em Paris como músico, arranjador e diretor musical da iminente temporada no Bobino e de imensos concertos no resto desse ano. No repertório, vários temas do compositor são anunciados: “Mercador de Serpentes”, “Janela de Ouro”, “Computador”, “Pêndulo”, “Lírica N.º 1”, “Lendas”, aos quais se juntam temas brasileiros como a recente “Cantiga por Luciana” de Paulinho Tapajós ou o clássico da dupla Baden Powell e Vinicius de Moraes, “Canto De Ossanha”. Para além da temporada inicial no Bobino, a tournée passa por imensos países com uma longa temporada no Canadá em Abril e Maio ou uma passagem por Roma em Junho, onde partilham o palco do Teatro Sistina com Jorge Ben (acompanhado pelo Trio Mocotó) e Elza Soares. A imprensa (críticas elogiosas na Rock & Folk), rádio e televisão francesas acompanham também esta nova fase da cantora. Mas, apesar do sucesso da tournée, a CBS está cada vez mais impaciente.


Reportagem na véspera da temporada no Bobino em Março de 1970 (Egberto Gismonti acompanha Marie Laforêt ao piano).

Especial no programa de TV, Podium 70 (Egberto Gismonti acompanha Marie Laforêt na guitarra).


Tendo contratado Marie Laforêt em junho de 1969, a CBS lança três singles até ao final desse ano. Em 1970 surge não o esperado novo álbum de estúdio, mas um LP com a gravação do espectáculo de Novembro de 1969 no Olympia, intitulado Récital. Depois desse lançamento, e na iminência da ruptura da CBS com a artista, apenas é lançado o single “Computador / Luciana”. Todas as restantes gravações com Egberto Gismonti vão ficar na gaveta durante 50 anos. Apenas em 2020, com a edição da luxuosa caixa de 18 CDs Intégrale de Marie Laforêt (que acompanhou a criação da retrospectiva antes do seu falecimento em 2019), surgem finalmente as gravações inéditas. Nesta caixa, para além das gravações ao vivo de “Janela de Ouro” e “Ciclone” (incluídas no CD Documents et Raretés), surge o CD 1969/70 que junta aos já referidos singles editados na época, as versões de estúdio dos temas “Cabrestero” e “Marleau” (que tinham surgido em Récital nas suas versões ao vivo) mais quatro temas gravados com Egberto Gismonti: “Lírica N.º 1” (Il Faut Savoir Pardonner), “Pêndulo”, “Lendas” (Esclave et Reine) e “Canto De Ossanha”. Este mesmo conteúdo de 1969/70 foi no dia 18 de fevereiro de 2022 lançado no formato LP, sob o título Asphodèles. O fantasma do álbum perdido de 1970 encontra finalmente a sua pele.


O single órfão de 1970 e o LP fantasma Asphodèles de 2022

Paralelamente à partida de Egberto Gismonti para Paris é lançado, no início de 1970, o seu segundo LP Sonho 70. Produzido por Roberto Menescal, o disco tem uma nova versão para “O Sonho” e novos temas do compositor, muitos dos quais estavam a ganhar novas roupagens e letras em francês. Também este disco foi lançado pela Philips (Companhia Brasileira de Discos), mas desta vez utilizando não o seu selo Elenco mas o selo para lançamentos mais populares, Polydor. Independentemente da pouca popularidade do disco, Egberto Gismonti continua a sua intensa e bem sucedida tournée acompanhando Marie Laforêt, tendo aproveitando a sua temporada pela Europa para aprofundar os seus estudos com Nadia Boulanger e Jean Barraqué. Durante o ano é editado em Itália o seu primeiro LP brasileiro e são lançados em França dois singles, um retirado de cada álbum lançado no Brasil. Todos com um impacto reduzido. Apesar da atividade contínua, no final de outubro, Egberto Gismonti está nos estúdios da editora MPS na Floresta Negra, para gravar o seu terceiro disco, Orfeo Novo, para o mercado europeu. O álbum consiste em novas gravações de temas dos dois discos lançados no Brasil (terceira gravação sua para “O Sonho”!) com dois inéditos na guitarra de Gismonti: “Three Portraits For Guitar And Flute” e uma versão para “Consolação / Berimbau” de Baden Powell. Importa lembrar que, apesar da formação académica em piano, a aprendizagem da guitarra tinha sido feita através da transcrição para pauta de discos, nomeadamente discos de Baden Powell. O guitarrista, mais tarde amigo do compositor, insistia sempre na pergunta de quem lhe teria ensinado as suas músicas… Neste disco participam, para além da cantora Dulce Nunes (na época mulher do compositor), dois músicos franceses: o grande contrabaixista Jean-François Jenny-Clark, que nos anos anteriores tinha acompanhado Don Cherry, Steve Lacy ou Joachim Kühn e que era membro do Ensemble Musique Vivante (dedicado à gravação de música contemporânea com obras de Luciano Berio, Pierre Boulez ou Karlheinz Stockhausen) e o flautista Bernard Wystraëte (que irá continuar a acompanhar Marie Laforêt nos anos seguintes). O disco é editado uns meses depois, em 1971. Mas, no início de fevereiro desse ano, já Egberto Gismonti está de volta ao Brasil com novos projectos, entre os quais a gravação de um terceiro álbum para a Philips, disco que nunca chega a acontecer. Fica assim fechada a primeira fase da discografia de Egberto Gismonti. Só em meados de 1972 surgirá o disco Água e Vinho e o respectivo espectáculo, com duas temporadas no Rio de Janeiro (a primeira no Teatro Opinião e a segunda, em Novembro, no Teatro Fonte da Saudade). Este disco vai inaugurar a parceria com o jovem letrista Geraldo Carneiro e o novo contrato com a Odeon (EMI) que se manterá nas décadas seguintes, num percurso absolutamente único de aprendizagem e partilha contínua.


As canções engavetadas em 1970 de Marie Laforêt e as versões originais de Ebgerto Gismonti.

Discografia a solo de Egberto Gismonti (1968-1970):

Egberto Gismonti LP Elenco 1969 / CD Universal Music 2002
Sonho 70 LP Polydor 1970 / CD Universal Music 2002
Orfeo Novo LP MPS 1971 / CD Take5 2008

Discografia de Egberto Gismonti com Marie Laforêt (1970):

Asphodèles LP Polydor 2022 (inclui os seis temas de estúdio)
Intégrale 18xCD Polydor 2020 (inclui os seis temas de estúdio mais dois ao vivo)

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