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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/12/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #73: ILL CONSIDERED

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/12/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Ill Considered] Liminal Space / New Soil

O título do novo album dos Ill Considered é revelador. A liminaridade define o estado – físico, psicolológico ou até metafísico – que se encontra entre duas dimensões, lugares, condições. Ora, o grupo que, actualmente, inclui o saxofonista Idris Rahman, o baterista Emre Ramazanoglu e o baixista Liran Donin (que substituiu o híper-activo Leon Brichard que é membro de madmadmad, Wildflower e Pokus) parece estar de momento nesse preciso lugar liminar, algures entre a missão a que se propôs desde que se estreou em 2017 e o futuro que agora se escancara diante de si, lidando com a tensão gerada pela vertigem da liberdade improvisacional que sempre lhes norteou as criações e a vontade de testarem outras opções, mais “organizadas”, aproveitando as potencialidades que o estúdio lhes proporciona.

Há várias considerações que se devem ter quando se pensa na abundante produção dos Ill Considered nestes últimos quatro anos. Em primeiro lugar a sua aguerrida independência, manifestada na forma como geriu os seus lançamentos. E foram 10 (!!!) títulos (9 álbuns mais um projecto especial a que chamaram 10 – The Stroke), sempre lançados em vinil e durante bastante tempo inacessíveis nas plataformas de streaming, facto que lhes garantiu uma devota base de fãs.

Por outro lado, esses trabalhos resultaram sempre de livres improvisos colectivos, bastas vezes registados ao vivo, como aconteceu com Live At The Crypt, Live at Total Refreshment Centreou com East / West, um programa artístico claro que, percebe-se agora, serviu para que eles mesmos encontrassem uma linguagem e desenvolvessem uma praxis própria, distinta da de outros colectivos que têm marcado a preenchida agenda do jazz britânico contemporâneo. Na entrevista que nos concederam em Novembro último, os Ill Considered explicavam, nesse caso pela voz de Idris Rahman, que o vórtice do desconhecido sempre os atraiu: “Nós estamos sempre a desafiar-nos a ir para onde nunca estivemos. É isso que é lindo nesta banda. Tu nunca sabes o que esperar. Também gostamos de nos colocar fora da nossa zona de conforto”, admitia então o saxofonista. Ora esse impulso – a palavra “estratégia” será desadequada neste contexto – para o salto no abismo resultou em álbuns de contagiante energia que os colocam num patamar distinto da de boa parte da actual geração que integram, já que a componente “free” do seu jazz é talvez mais pronunciada do que a que se identifica em registos dos seus pares.

O facto de terem também trabalhado em cada uma dessas cobiçadas peças de colecção com o mesmo artista plástico, Vincent de Boer (e fiquem atentos a este espaço porque dentro em breve publicaremos uma reveladora entrevista com o pintor e designer holandês), também atribui a esse conjunto de edições uma unidade ainda mais vincada, uma espécie de relatório em 10 partes de uma experiência de busca de um som que hoje é facilmente reconhecível, fazendo-se, uma vez mais, de uma tensão liminar entre a implosão de formas – rítmicas, harmónicas… – e a dimensão hipnótica do groove, entre o grito e o sussurro e até, num plano mais melódico, entre sugestões de uma certa aproximação a modos próprios das músicas do magrebe, mas também ao lado mais extático do som tardio de John Coltrane.

Para o mais recente álbum, Rahman, Ramazanoglu e Donin resolveram alterar um pouco as coisas, usando os consideráveis skills de engenharia do seu baterista, que é um reputado produtor e engenheiro de som que soma créditos técnicos em discos de Theon Cross, Noel Gallagher’s High Flying Birds, Katie Melua, Lilly Allen ou, por exemplo, Spiritualized, e de produção em trabalhos de Richard Ashcroft, Lou Rhodes ou Black Honey. Desta vez, o trio nuclear foi para estúdio com ideias mais estruturadas, mas começou, ainda assim, por gravar bases com generosas doses de improvisação, deixando no entanto suficientes espaços abertos para acrescentarem aos temas alguns importantes contributos.

A saxofonista barítono Tamar Osborn (Colluctor), o tubista Theon Cross (membro dos Sons of Kemet e cujo álbum a solo mais recente, já de 2021, Intra-I, lançado pela mesma New Soil responsável por Liminal Space, foi produzido por Ramazanoglu), os saxofonistas tenor Kaidi Akinnibi (que toca com Black Midi, entre outros nomes) e Ahnanse (Nala Sinephro ou Steam Down são nomes com que já colaborou), o trompetista Robin Hopcroft (membro dos Soothsayers e músico com créditos em trabalhos de Zara McFarlane ou Anthony Joseph) e o percussionista Sarathy Korwar foram todos chamados a adicionarem válidos contributos, facto que decisivamente torna Liminal Space no trabalho texturalmente mais diverso dos Ill Considered. Ainda assim, a sua pronunciada identidade sónica mantém-se inalterada, sinal claríssimo do investimento criativo no refinamento da sua direcção musical efectuado ao longo dos 10 registos anteriores.

E assim, este espaço transitório que os Ill Considered exploram neste álbum espraia-se entre o êxtase do espírito e a solidez do groove, com cada um dos três músicos do grupo a demonstrar vigorosos argumentos técnicos: o sinuoso e pronunciado baixo de Liran Donin é a fonte dos grooves a que Emre Ramazanoglu depois injecta criativo músculo, soando como uma locomotiva ou um tremor de terra, absolutamente imparável e incansável. E claro, o tenor e o clarinete baixo de Idris Rahman são fonte inesgotável de luz e sombra, uma âncora melódica de distinta personalidade, que expõe a sua verve em imaginativos riffs que servem sempre como uma espécie de mola que impulsiona os restantes músicos em direcção às estrelas. Um portento de energia anímica que marca peças como “Sandstorm” ou “Loosed”, “Light Trailed” e “Dervish” (esta particularmente intensa, aquele tipo de peça que quando termina dá ao ouvinte a sensação de ter acabado de correr 10 quilómetros ou mais, tal a aceleração cardíaca que impõe). Mas em “Pearls”, peça que se estende quase por 10 minutos, há um tom de quase oratório que mostra um outro lado do saxofonismo de Rahman, mais espiritual e poético, prenúncio de um futuro que o trio, aliás, está já a revelar no exercício em curso a que chamaram 12 Days of Christmas e que pode ser acompanhado aqui, uma versão reinventada ao longo de 12 dias de “Coventry Carol”, uma peça coral devocional do século XVI, “tão obscura quanto negra” que Rahman, Donin e Ramazanoglu transformam diante dos nossos ouvidos num pretexto para ascenderem à estratosfera.

Todo este material parece ser conjurado para ser escutado ao vivo, sobretudo se puder igualmente beneficiar de convidados pontuais em certas peças, algo que certamente renderá uma experiência ultra-intensa já que os Ill Considered não sabem fazer as coisas de outra forma. Dedos cruzados para que os possamos escutar em Portugal em 2022.

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