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Fotografia: Lisa Wormsley
Publicado a: 11/11/2021

Em solo (novo e muito) fértil.

Ill Considered: “Quando tocamos juntos, o ego fica à porta”

Fotografia: Lisa Wormsley
Publicado a: 11/11/2021

Percebe-se que os Ill Considered — trio que já incluiu Leon Brichard, baixista ligado aos MADMADMAD ou Wildflower, e que agora se completa com Idris Rahman no saxofone, Emre Ramazanoglu na bateria e Liran Donin no baixo — preferem tocar do que falar sobre a sua música. O grupo que se prepara para lançar Liminal Space, o mais ambicioso projecto que criaram até à data, tem tido produção intensa desde que surgiu de rompante na cena jazz londrina em 2017, ano em que lançaram o primeiro de 10 registos independentes, sempre gravados em sessões de improviso ao vivo e sempre servidos por capas do artista plástico holandês Vincent de Boer.

Durante muito tempo, o explosivo trio — pontualmente dilatado com a adição de percussionistas como Satin Singh ou Yahael Camara Onono — manteve as suas edições exclusivas no formato de vinil, gerando algumas preciosas peças de colecção (o seu triplo Lp East / West e o lançamento especial THE STROKE, que inclui caixa com frames originais de um filme de animação criado por de Boer, estão já muito bem cotados no mercado coleccionista), mas depois da sua associação à mesma New Soil que gere os destinos da carreira de Theon Cross, os Ill Considered viram a sua música chegar finalmente às plataformas de streaming, forma encontrada para mitigar os efeitos da pandemia que os afastou do seu habitat natural, os palcos, espaços onde foram angariando crescente reputação graças a explosivas apresentações.

Agora, Liminal Space chega com honras de ser descrito como “o primeiro disco ponderado, produzido em condições e com convidados”. De facto, a presença de solistas como Tamar Osborn (Collocutor), Ahnansé (Steam Down) e Kaidi Akinnibi (black midi, Yussef Dayes), dos percussionistas Sarathy Korwar e Oli Savill, do tubista Theon Cross (Sons of Kemet, Steam Down), do vibrafonista Ralph Wyld (Yazz Ahmed) e do trompetista Robin Hopcraft (Soothsayers) deve ser entendida como demonstração de respeito vinda dos pares e reconhecimento pleno da originalidade do trabalho desenvolvido pelo trio nos quatro últimos anos.

O novo álbum inclui mais de 60 minutos de música que na edição física em vinil serão distribuídos por três lados de um duplo álbum que incluirá no quarto lado uma gravura a cargo de Vincent de Boer, artista que também volta a assinar a arte da capa. O grupo, que desenvolveu uma sonoridade sem paralelo que oscila entre a livre improvisação e o groove desenfreado, tendo por vezes tanto de jazz quanto de punk, tem em Liminal Space o passaporte para uma divisão mais visível e se isso lhes abrir as portas do circuito internacional de festivais em 2022, o céu poderá ser o limite.



Contem-me como surgiu a banda.

[Idris] Nós tocámos numa banda que eram os Family Atlantica, que muito provavelmente até chegou a dar algum concerto em Portugal. Tenho a certeza de que fomos a Espanha, por isso é provável que tenhamos passado por aí também. Tanto eu, como o Emre e o Leon tocámos nessa banda. Dei por mim a querer convidar o Emre para uma jam e creio que o Leon também estava a querer ter uma jam com ele. Então, o Emre decidiu organizar tudo com o Leon no estúdio dele e, a meio da noite, liga-me — “Anda lá! Bora fazer uma jam!”. Eu disse “não!”. Tiverem de me ligar uma segunda vez [risos]. Eu estava a beber vinho e a ver um filme com a minha namorada. Quando o Leon me liga, da segunda vez, insistiu tanto que eu acabei por ceder. Foi uma guerra para conseguir sair daquele sofá e deslocar-me até ao outro lado de Londres [risos]. Mas passámos um óptimo momento. Eu estive lá por duas horas antes de ter regressado para o meu sofá, já por volta da meia-noite. E assim fizemos o nosso primeiro álbum. Foi assim.

[Emre] Eu misturei-o e enviei-o ao Leon mas nós não sonhávamos sequer que ia sair dali um álbum. Do nada, o Leon diz que os discos já tinham esgotado. “Mas, espera aí, quais discos?!” [risos] Wow… De repente temos um agente, concertos em todo o lado. “Mas o que é que se está a passar?!” [risos]

[Idris] Aconteceu tudo muito depressa.

[Emre] Ainda há pouco tinhas saído do sofá [risos].

[Idris] Exactamente. Tudo se desenvolveu a partir de uma jam, basicamente. O que o Leon decidiu colocar à venda foi, literalmente, o resultado de uma jam de duas horas.

Deve haver, também, alguma história por detrás do vosso nome.

[Emre] Sem dúvida [risos]. Acho que tinha escrito algo diferente na pasta onde guardei a jam, no meu computador. O Leon leu aquilo. “Ill Considered? Óptimo!” Eu fiquei, “ok…” [risos] A história é basicamente isto.

É engraçado como tudo começou assim, de forma tão espontânea, tendo em conta que tudo o que vocês fizeram desde então parece ter sido muito bem equacionado. Vão neste momento com 10 discos editados, têm a vossa música nas principais plataformas de streaming, conseguiram uma parceria muito sólida com o artista visual Vincent De Boer. São tudo coisas que podem muito bem caber num qualquer plano para dominar o mundo.

[Emre] Quem me dera, man! Basicamente, o Vincent enviou-me um e-mail a dizer que adoraria fazer uma capa. É uma cena que acontece com frequência quando se tem uma banda, ter malta a oferecer-se para ajudar em alguma coisa. O que por vezes não é muito fixe, mas pronto. Quando ele nos apresenta a capa para o primeiro álbum ficámos: “Wow! Isso está muito bom”. Ele acabou por fazer todas. Ele é parte do projecto, completamente. Até já o conseguimos incorporar em alguns dos nossos espectáculos, em que ele faz lá umas cenas de imagem e edição ao vivo. Ou seja, existe de facto um certo conceito, mas isto não é mais do que nós a mantermos o contacto uns com os outros. Não é nada que seja demasiado ponderado. Pensamos em fazer algo e fazemos.

Em relação ao catálogo estar agora também nas restantes plataformas digitais, isso aconteceu porque nos foi sugerido falar com o Fred da editora New Soil. Conhecemo-nos e demo-nos todos imediatamente bem e tem sido assim desde então. Diria que são pequenas pontadas de sorte aqui e ali. Não houve, de todo, um grande planeamento em relação a tudo isto.

Vocês são todos músicos bastante experientes, mas já vos aconteceu terem ficado impressionados durante algum concerto de Ill Considered? Já aconteceu, a meio de algum espectáculo, irem parar a um lugar qualquer onde nunca tinham estado antes? Musicalmente falando, claro.

[Emre] Claro que sim!

[Idris] Com esta banda acontece sempre. Nós estamos sempre a desafiar-nos a ir para onde nunca estivemos. É isso que é lindo nesta banda. Tu nunca sabes o que esperar. Também gostamos de nos colocar fora da nossa zona de conforto.

[Emre] Mesmo a sério!

[Idris] É isso que nos dá pica.

[Emre] E que pica!

[Idris] É isso. Estamos sempre a contornar os nossos limites porque acho que é aí que gostamos de estar.

[Emre] Sem dúvida. É meio que desconfortante.

Entretanto o Leon sai do grupo e entra o Liran. Como é que isso aconteceu?

[Liran] O Idris trouxe-me para aqui. Nós já tocávamos juntos há algum tempo através de outros projectos. Houve um projecto em particular para o qual tocámos durante mais tempo. Sempre houve aquele sensação de que algo ainda iria acontecer entre nós. Do nada, com uma semana de antecedência, ele liga-me para ir gravar o THE STROKE com eles. Perguntaram-me, “que tipo de baixo é que tocas?” E eu, “Fender Precision Bass”. “Óptimo! Ficaste com o lugar! Fantástico”. Foi, literalmente, assim. Foi amor à primeira vista.

[Emre] Sem dúvida. Nas nossas primeiras jams com ele, o Liran nem sabia que já era a contar para o álbum. Só o soube depois [risos].

Tal como se percebe, vocês estão todos ligados a outros projectos musicais. O que é que sentem que é diferente quando se juntam em Ill Considered?

[Emre] É um dos poucos projectos em que eu estou onde não é preciso falar sobre nada no que toca à direcção das coisas. Sentimos que todos partilhamos das mesmas ideias e tudo acontece de forma muito natural. Não há ninguém a tentar puxar os outros para um lado qualquer.

[Idris] E o facto de quase nem falarmos sobre a música em si. Ainda agora, que estamos a terminar de produzir um álbum, raramente falamos sobre a música. Apenas a fizemos.

[Emre] Nós até temos um concerto no próximo domingo sobre o qual ainda mal falámos. Acho que o mais profundo que fomos nesse assunto foi quando o Idris perguntou se podíamos tocar alguns temas do novo álbum [risos]. Apenas dissemos, “ok, cool.”



Gostava de falar sobre a componente da improvisação no vosso novo álbum. O que é que essa função exige de vocês? Altruísmo? Coragem? Determinação?

[Idris] É deixar o ego à porta.

[Emre] Isso. Todos nós produzimos muita música para outra malta. Isso faz-nos ter a audição suficientemente apurada para pensar mais nas coisas como um todo. Nós não estamos preocupados com o nosso som, [o] de cada um. Estamos sim a pensar no som geral do projecto o tempo todo. Isso é algo sobre o qual não falamos porque temos todos a mesma abordagem à música.

[Idris] Sim. Diria que temos aquela mentalidade de produtor dentro de nós. Todos nós temos as nossas directrizes daquilo que é tomar decisões, editar e arranjar as coisas dentro da música para que esta se torne apelativa para o público. Há muitas experiências em comum entre nós e que sobressaem quando tocamos juntos mas nós não temos consciência disso quando estamos a tocar. Quando estamos a tocar, estamos apenas à procura que tudo aquilo nos soe bem. De um modo geral, andamos sempre à caça de ganchos, melodias, cenas às quais uma audiência se possa agarrar. A maior parte das vezes acontece tudo ao nível do subconsciente.

[Emre] Nós fizemos uma cena num espectáculo que demos em Outubro, em que deixámos o público decidir o rumo da nossa actuação através de uns controladores electrónicos. As instruções deles são-nos projectadas em vídeo e, assim, decidem como é que vamos tocar e com que atitude. Nós vemos esse tipo de espectáculo como sendo nosso e do público. E é engraçado porque isso oferece algum tipo de estrutura naquilo que nós fazemos e wow! Foi muito complicado da primeira vez que fizemos aquilo [risos]. Do tipo, “não era nada disto que estávamos à espera, de todo”. Existiram momentos muito bons durante esses concertos.

[Liran] O que achei mais interessante nisso foi a combinação dos músicos. Eu nunca tinha tocado com o Emre antes disso. Com o Idris já tinha tocado e já sabia mais ou menos o que esperar. Mas o que mais me marcou, e de diferentes formas, foi a abertura deles os dois em receber fosse o que fosse que eu tivesse para dar. Eles estavam 100% dispostos a ter uma aventura musical a sério. E se não fosse isso… Eu acho que tu tens de ser curioso para fazer boa música. E indo ao encontro da pergunta que tinhas lançado antes de aqui chegarmos: não existiu qualquer tipo de controlo porque estávamos curiosos para saber onde nos haveria de levar aquela criação. Isso aconteceu tudo muito naturalmente.

Vocês reuniram aqui boa parte de uma certa lista, de elite, dentro da cena jazz britânica. Da Tamar Osborn ao Sarathy Korwar ou ao Theon Cross. Estes encontros aconteceram por iniciativa vossa? Havia um grande desejo em ir ao encontro e trabalhar com estas pessoas ou será tudo fruto de felizes coincidências?

[Emre] Esta era realmente a malta com quem nós queríamos tocar [risos].

[Idris] É verdade. Tivemos a feliz hipótese de conseguir trabalhar com toda a gente com quem queríamos. Estávamos em confinamento, ninguém estava na estrada… Toda a gente estava disponível. Cada uma das pessoas que convidámos gravou. Sempre que perguntávamos, a resposta era “yup!” [risos] “Eu vou ter contigo. Diz-me onde e quando!” Estávamos numa posição luxuosa. Foi só pensar em quem queríamos e todos eles aceitaram prontamente.

Além de toda essa malta com quem colaboraram e do facto de vocês saberem, logo à partida, que este iria ser o vosso primeiro álbum com uma produção mais séria, que outras diferenças encontram no processo que vos levou ao Liminal Space?

[Idris] Não foram muitas. Nós abordámo-lo da mesma forma, ainda assim. A improvisação manteve-se como força motriz da coisa. Até mesmo as camadas adicionais que tocámos depois da sessão principal… foi praticamente tudo improvisado — guitarras, flautas, cornetas… Podia ser eu, de manhã, a gravar improvisos que fazia a meio do meu treino. Pequenos takes que eu gravava e acabava por me esquecer o que eram. Pode dizer-se que foi “livremente composto”. Mas é mais improvisado do que composto. Em relação ao que fizemos em álbuns anteriores, pode dizer-se que foi mais do mesmo.

Ias moldando esses sons ou utilizaste-os tal e qual como foram captados?

[Idris] Algumas das faixas foram mantidas intactas, tal e qual como saíram da sessão gravação, com uma ou outra pequena edição aqui e ali. As outras levaram-nos muito tempo a serem novamente trabalhadas.

[Emre] Aproveitávamos estruturas, tocávamos de novo, partíamos de um pedaço da composição e seguíamos para um lado completamente oposto ao que tínhamos… Há de tudo nesse disco.

[Idris] Sim. Utilizámos muitos métodos diferentes para chegar ao resultado final. Alguns desses processos eram até totalmente novos para qualquer um de nós.

[Emre] E os instrumentos. Usámos alguns instrumentos novos. Descobrimos que o Liran toca gimbri, não é? [Risos]

[Liran] Foi realmente surpreendente. Nem eu sei de onde é que aquilo vem [risos]. Quer dizer, eu sei tocar gimbri, mas daí a tocá-lo para uma faixa… Às tantas o Idris já estava super entusiasmado. Depois a junção entre o baixo e o gimbri nas mãos do Emre… Aquilo estava a soar mesmo bem. O volume do som do gimbri é tão baixinho mas, depois, o Emre a brincar com aquilo, a duplicar e a colar camadas… Isso abriu-me os olhos. Isto é outra das coisas que me deixa entusiasmado para trabalhar com o Emre e o Idris, essa abertura total para com a instrumentação. Não vês muito disso por aí. Aconteceu o mesmo com a harpa japonesa, que por acaso acho que não chegou a entrar no álbum. Basicamente, íamos tocar num livestream e o Idris saca de um instrumento japonês do seu arsenal habitual. Naquela altura ainda estávamos a ensaiar e a ultimar detalhes. Ligámos aquilo ao amplificador de guitarra e, quando damos por nós, já tínhamos uma hora de música com aquilo. Eu acabei por nem tocar no baixo porque aquilo estava a funcionar e a soar lindamente. E falo por mim, mas eu ainda estou a consolidar tudo o que absorvi daquela sessão. Foi tão boa.

[Emre] Eu também adorei essa sessão.

[Liran] Ao ponto desse instrumento agora fazer parte das coisas que levamos para o palco. Anda connosco em digressão.

Vocês conquistaram o respeito de gente como o Brian Eno, Gilles Peterson ou David Holmes. Como é que vocês lidam com tantos elogios?

[Emre] Não muito bem [risos].

[Idris] Quer dizer, é fixe. Mas, pessoalmente, é algo que não me afecta muito. Eu não me deixo entusiasmar com facilidade. Eu gosto de saber que as pessoas gostam da música e é isso. Eu só quero continuar a fazer música como faço.

[Emre] Mas é fixe.

Muito bem. Quem é que vocês apontariam, dentro de uma camada mais ligada à velha guarda, como influências ou fontes de inspiração para aquilo que vocês fazem? E quem é que vos está a cativar mais dentro da nova geração?

[Liran] São tantos…

[Idris] Essa pergunta é difícil.

[Liran] Eu posso dar-te nomes do passado que me possam ter influenciado, mas aquilo que está a acontecer agora é tão encantador e tem-nos dado tantos músicos extraordinários… A malta está a voar. É muito difícil estar a apontar-te só um ou outro nome. Uma grande amiga minha, chamada Maria Chiara, toca comigo numa banda e tem também a cena dela, tem um disco em vista para o próximo ano e é uma criativa brilhante. Ela está sempre a criar e eu tenho um grande respeito por aquilo que ela faz. Se eu tiver de nomear alguém, ela é uma delas. Mas há tanta gente…

[Emre] Eu sempre tive um fraquinho pelo Theon Cross [risos]. Ele é fenomenal. Ele ajudou neste disco a ficar ainda melhor mas, mesmo não contando com isso, ele sempre foi alguém que me suscitou muito interesse desde que o ouvi pela primeira vez. Tem uma abordagem muito diferente, sofisticada. E acho que é isso.

E tu, Idris?

[Idris] É como eles dizem, são tantos… Vou mencionar o Kaidi Akinnibi, que também entra no nosso álbum.

[Emre] Ele é brutal!

[Idris] É brutal e só agora é que está a começar a aparecer. Creio que anda em digressão com os black midi de momento, eles que são também uma banda espantosa.


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