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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/03/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #51: Yann Gourdon & Filipe Felizardo / Cordeiro / PEDRA

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/03/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Yann Gourdon & Filipe Felizardo] La Langue de l’Ophiolite / Trás-os-Montes Records

Um encontro. Ou, melhor, talvez, a concretização de um encontro que já tinha acontecido, ainda que não fisicamente. Talvez as energias que Filipe Felizardo e Yann Gourdon canalizam através das suas respectivas artes já tivessem chocado algures no cosmos, provocando as explosões silenciosas que conduziram então ao encontro que aqui tão bem se documenta, nesta belíssima edição da Trás-Os-Montes Records realizada a partir de material recolhido durante uma residência artística que teve lugar em Macedo de Cavaleiros e Podence. Gourdon, como explica Filipe na missiva enviada em Setembro de 2019 a Elisa Cepeda (reproduzida nos materiais impressos incluídos na edição física), “é um músico francês que toca vielle à rue – uma super rabeca eléctrica modificada por ele”. Felizardo refere-se à sanfona ou realejo, instrumento popular e ancestral de que o músico francês extrai uma verdadeira cascata de envolventes sons harmónicos que parecem ter tons de terra, férreos, oxidados, como os antigos ferrolhos dos portões de quintas há muito abandonadas. E Filipe, claro, toca a sua guitarra eléctrica e respectivo amplificador, acrescentando ao som metálico e mineral de Gourdon uma espécie de lava lenta, um drone líquido e escaldante, harmonicamente rico, todo ele fagulhas incandescentes. Juntos, Gourdon e Felizardo, evocam as forças tectónicas primevas que ergueram montanhas, cavaram vales e moldaram as paisagens que hoje temos como naturais. Este álbum resulta de gravações sem planificação efectuadas pelo duo num antigo pombal convertido cuja “estrutura circular”, e as palavras são do próprio guitarrista, “favoreceu uma centrifugação das emissões dos nossos amplificadores”. Um remoinho de vibração eléctrica, um maelstrom poético, avassalador, que nos agarra, engole, e nunca mais nos devolve a esta realidade. Sim, tem essa força.



[Cordeiro] #1 / Ed. de autor

Que belíssima surpresa, este #1 de Cordeiro, designação artística de Miguel Cordeiro, compositor, teclista e programador que aqui reuniu e conduziu um pequeno ensemble com João Guimarães (saxofone soprano, clarinete e flauta), Miguel Ramos (baixo eléctrico, guitarra eléctrica) e Marcos Cavaleiro (bateria e percussão). Este álbum, gravado por Cláudio Tavares entre 6 e 9 de Outubro de 2019 (lembram-se de 2019?…) nos estúdios Arda, conta com produção de António Vasconcelos Dias e masterização de Miguel Pinheiro Marques e começa por se afirmar, precisamente, pela sua elevada qualidade técnica: dotado de uma transparência sónica absoluta, é uma daquelas gravações que nos permite fechar os olhos e quase visualizar a sala em que foi registada, o lugar físico ocupado por cada música, o ar que cada instrumento ou amplificador fez vibrar em frente aos microfones. Musicalmente é um trabalho feito de detalhes, económico e esparso: Cordeiro parece ponderar cada nota que escreve e o lugar de cada um dos músicos nos arranjos que pensou para este álbum que se desenvolve como uma banda sonora instrumental para um filme que corre suave no ecrã da imaginação de cada pessoa que a ele lhe ofereça de forma generosa os seus ouvidos.

Marcos Cavaleiro exibe aqui uma técnica prodigiosa (escute-se o arranque sincopado de “A Cabana do Avô Vitorino”) e um absoluto domínio do tempo rítmico, proporcionando aos seus companheiros bases de propulsão segura, matematicamente exacta, mas ainda assim fluída. É a isto que se chama groove. Por cima, os sintetizadores de Miguel Cordeiro voam livres, pulando entre a espacialidade do Herbie Hancock mais cósmico e a modernidade das derivas electrónicas contemporâneas mais dadas à contemplação. O todo é uma lição de sofisticação, rigor, de acentuada inventividade melódica, um trabalho de delicados rendilhados que se expandem na peça “Outubro” em que além dos elementos já referidos colaboram ainda Hélder Vales (trompa) e Daniel Dias (trombone), tornando-se aí mais nítido o potencial orquestral das composições de Cordeiro, que parecem a cada momento evocar cenas específicas dos nossos filmes favoritos. E há por aqui até uma qualquer insustentável leveza pop, como “Pisar chão firme outra vez” tão bem evidencia: uma canção que não precisa de voz, mas que nos conta uma história qualquer sugerida pelo revelador título. Uma delícia. Espero sinceramente que o #2 não tarde.



[PEDRA] Karimeen EP / Jazzego

Azar Azar, primeiro, Minus & MrDolly pouco depois e agora PEDRA, mais um elemento para ajudar na expansão tranquila do universo da portuense Jazzego. Em entrevista disponível aqui mesmo ao lado, Pedro Castro apresenta-se e desenha-nos o seu mapa “astral” em que se encontram estrelas brilhantes do mais moderno firmamento jazz como Yussef Dayes, Alfa Mist, Yussef Kamaal, Christian Scott, Robert Glasper ou Tom Misch… Com as ferramentas próprias do hip hop, programações de filiação boom bap e samples evocativos de outros passados impressos em vinil, o seu ep de estreia, Karimeen EP, inscreve-se sem problema na corrente JazzNãoJazzPT que tem vindo a ganhar tracção em tempos recentes. Licks jazzísticos nas melodias conduzidas ao piano ou guitarra, sem fogos de artifício técnicos ou pronunciada complexidade estilística, mas com eficaz balanço e sólido bom gosto na escolha dos loops e na estruturação dos arranjos.

Para a festa desenvolvida em três momentos distintos – os temas “Red Drum”, “Karimeen” e “Bangus” – são também convocados dois outros produtores muito diferentes: o sombrio Il-Brutto, mais habituado a outro tipo de ambientes, que transforma o algo cósmico tema-título num jogo de sombras, carregado de ecos cinemáticos e de pulsar solene e marcial, e também SaiR, possível vizinho no bairro estético JazzNãoJazzPt que injecta a uma linha de baixo monstruosa em “Bangus”, feita daqueles graves que sacodem corpos quando são debitados por sistemas de som de potência generosa. Nada de errado aqui, excepto, talvez, o facto desta estreia se quedar pelo formato digital. Mas hey, isso é uma queixa de alguém que ainda não percebeu muito bem que raio são os NTFs por isso, não liguem…

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