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Publicado a: 02/03/2016

Nerve no Lusitano Clube: Contágio nervenacular

Publicado a: 02/03/2016

[TEXTO] Manuel Rodrigues [VÍDEO] António Barbot [FOTO] Ricardo Miguel Vieira (do arquivo Rimas e Batidas)

Nerve chegou, viu e venceu. O rescaldo das duas noites que encheram o Lusitano Clube, em Lisboa, no passado fim-de-semana, não podia ser mais positivo: o público vibrou, acompanhou as canções sempre que necessário, participou em ocasiões chave do alinhamento (no sábado, a compreensível falta de fôlego no derradeiro e agitado verso de “Alter Ego” foi camuflada por um coro uníssono) e não descansou enquanto não trouxe o músico de volta ao palco para um encore, onde foi possível ouvir temas como “Cidade Perfeita”, “Cartas Como O Gambit” e “Lenda”». Que mais podemos retirar de duas noites imaculadas onde foi possível viajar de Promoção Barata a “Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança” com mestria sobre-humana? Muita coisa.

Existem duas facetas em Nerve que merecem um sublinhado destaque: a da complexidade lírica, alcançada através de um vasto número de figuras de estilo, um tremendo à vontade no campo da cultura geral e um inegável domínio do léxico – ouvir T&C/AVNP & NMTC implica ter um computador ao lado com o browser aberto e um calhamaço da Porto Editora na mesa-de-cabeceira; e a da simplicidade enquanto artista performativo, de pés bem assentes na terra e sem recorrer a artifícios dissimulatórios – a forma como se apresenta em palco, sozinho, sem auxílio de DJ ou banda, secundado pela sua estante de máquinas e constantemente preocupado com o transporte da mensagem do emissor ao receptor, comprova-o. Os opostos atraem-se, diz-nos o velho adágio popular, mas são raras a vezes em que a colisão atinge tamanha excelência. Há que tirar o chapéu.

Ainda assim, Tiago Gonçalves, nome que figura no seu bilhete de identidade, consegue ir ainda mais longe e não se deixa ficar apenas pela interpretação de canções em catadupa. Enquanto revisita a sua obra, o artista faz questão de introduzir os temas e as respectivas casas-mãe ao público e ainda repreende o mesmo por condutas que o próprio considera inadequadas ao momento. Na primeira noite, na pausa entre “Subtítulo” e “Monstro Social”, responde ao piropo de uma fã (não era suposto isto ser crime?) comparando-a com o tipo de pessoa que se desloca a uma galeria de arte com o intuito de estragar a obra alheia. Mais pincelada, menos pincelada, a verdade é que não houve mais perturbações até ao final. Nem Kanye West teria sido tão feliz na entrega da mensagem.

O Lusitano Clube, espaço que acolheu as duas actuações de Nerve, localizado no bairro de Alfama, é, ao fim ao cabo, uma associação em fase de restauro. Não sabemos se houve alguma premeditação na escolha do local, mas a verdade é que a sala de espectáculo, localizada no ginásio dessa mesma associação, decorada com um espelho muito antigo, ao bom estilo das películas de terror dos anos 70, umas ventoinhas estáticas, um espaldar e umas cordas que podiam servir de pano de fundo a uma saga de dor e tortura (estamos em época de Óscares, há que dar asas à imaginação), casou na perfeição com alguns dos temas mais sombrios do alinhamento, como “Água do Bongo”, “Subtítulo» e “Conhaque” (em parte reforçado pelo acordeão de Nathanael Sousa). O cenário a dar relevo a um enredo, já por si, rico a nível gráfico.

Não há temática que Nerve não aborde no seu catálogo de músicas. E como não há música que não tenha o seu inconfundível cunho pessoal, não há temática que não soe rigorosamente a Nerve. Ou seja, por mais que o artista rime sobre amor, depressão ou questões relacionadas com o quotidiano, como trabalho e relações interpessoais, nunca poderão ser vistas como tal. Serão sempre umas cenas maradas (ouvir “Coincidência”) oriundas da cabeça de alguém que decidiu um dia desabafar com o mundo através de metáforas inteligentes, histórias intrigantes e ganchos magnetizantes. A música de Nerve pode não seduzir à primeira, pode não ser tão imediata como a esmagadora maioria da banalidade que nos assalta os ouvidos no dia-a-dia, mas quando agarra não descola. Daí à militância nos concertos é um tiro. Quem não se queira envolver que fuja enquanto é tempo.

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