pub

Fotografia: Paulo Nogueira/Theatro Circo
Publicado a: 04/06/2022

A Espanha do presente.

MUSA – Dia 3: um equilíbrio nobre entre agitação e consciência

Fotografia: Paulo Nogueira/Theatro Circo
Publicado a: 04/06/2022

Ao terceiro dia, as máquinas entraram no Theatro Circo. Depois de The Weather Station, Silvana Estrada e Sílvia Pérez Cruz procurarem a contenção nas instrumentações, Maria Arnal i Marcel Bagés e María José Llergo expandiram os seus universos musicais para lá daquilo que as suas maravilhosas vozes conseguem fazer e trouxeram, ao contrário daquelas a quem sucederam, algo que só podia ser do agora.

Até o início foi diferente. Cá em baixo, no meio da plateia, Arnal surgiu, iluminada, a projectar 100 vozes através da sua (e talvez Holly Herndon tenha dado uma ajuda nisso). Muito deste concerto, que girou à volta de CLAMOR (2021), o mais recente álbum da dupla catalã, soou a algo que realmente poderia encaixar em vários filmes de ficção científica (daqueles que não se deixam embevecer totalmente pelas possibilidades do futuro e do espaço, mas onde ainda reside alguma esperança). Por exemplo, “Meteorit Ferit” é uma faixa que, como nos explicou, retrata um meteorito vulnerável que não quer fazer mal ninguém, deixando-nos a pensar sobre a inevitabilidade de certos processos da natureza que, na nossa perspectiva, são absolutamente catastróficos.

Ladeada por Marcel e um outro músico (ambos maquinistas musicais com as mãos postas em sintetizadores e guitarras), a cantora (que confessou ter vivido em Lisboa há alguns anos) não nos permitiu descansar, tanto pela sua energia como pelo que quer revelar acerca de cada canção: “45 Cerebros y 1 Corazón“, tema que também dá título ao seu primeiro álbum, foi onde se alongou mais no preâmbulo, dando-nos a conhecer a história desses 45 cérebros e 1 coração que foram descobertos em bom estado de conservação numa vala comum, em Burgos, do tempo da ditadura franquista — acabou também por referenciar Federico García Lorca, poeta e dramaturgo que foi morto durante a Guerra Civil Espanhola e do quem ainda se desconhece o paradeiro dos seus restos mortais. Uma música criada só com a notícia em mente e que mais tarde, tal como nos confessou, viu o seu círculo fechado quando actuaram nessa zona e puderam visitar o local da descoberta.

Num espectáculo que procurou mais a ambiência electrónica (e por vezes dançável — de uma forma catártica) do último disco, o interessante foi ver como diluíram as linguagens rock e folk do primeiro para construir aquilo que seria expectável ouvir num suposto Dia do Juízo Final, caso fôssemos embora daqui com uma sensação de dever cumprido.



Depois dessa catarse, nada como assentar o arraial e meter os pés bem assentes na terra. Não queríamos falar de ROSALÍA nestes dias, mas María José Llergo encontrou o espaço (sonoro) que há entre Los Ángeles (a estreia mais tradicional antes da fuga para o futuro e para a América Latina da primeira) e Lina_Raül Refree, atirando-lhe uns pós de sons etéreos e sintetizadores pulsantes que se embrulham com a guitarra flamenca.

É isso que ouvimos no disco Sananción e foi isso que pudemos presenciar na sala bracarense (onde se apresentou em formato trio). Vinda da Andaluzia, esta é uma artista de corpo inteiro, como pede o flamenco, que tem como maior inspiração o avô e que, fazendo já spoiler do final, homenageou a enorme Lola Flores no concerto. Altamente comprometida com a sua arte, a andaluza conseguiu emocionar em vários momentos, tal como quando cantou “Nana Del Mediterráneo“, que, explicou, foi escrita depois de mergulhar no Mar Mediterrâneo e pensar nos migrantes que perderam as suas vidas naquelas águas (e como isso lhe dava a volta a barriga).

Completamente entregue a todos aqueles que passaram pelo teatro numa sexta-feira à noite — até disse que iria aprender mais da língua portuguesa para as próximas vindas ao nosso país –, Llergo fez-se sentir pela sua postura intensa e que, vocalmente, honra as maiores divas, não se cansando também de puxar pelos instrumentistas em palco: a ligação (quando estavam apenas os dois) com o virtuosíssimo guitarrista mexeria com o interior de qualquer um. Perguntem a quem esteve no Theatro Circo.

Para quem não está completamente a par do que de fresco e novo se vai passando na cena espanhola, a programação de ontem compensou quem decidiu arriscar, apresentando dois projectos com visões diferentes mas igualmente estruturadas do que se pode fazer com consciência da tradição, da História e do lugar de onde partimos. E todas elas, incluindo todos os outros que nomes que vimos até aqui no MUSA, com sagaz percepção do mundo em que vivemos, abordando questões de pertença, de consciência ambiental e de injustiça social. Vão ouvi-las.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos