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Fotografia: Francisco Gomes
Publicado a: 26/07/2016

Mistura, remistura ou nova versão? O que andaram afinal de contas todos a fazer ao “Caravana”?

Fotografia: Francisco Gomes
Publicado a: 26/07/2016

Quando Sam The Kid disponibilizou através da sua TV Chelas a versão instrumental e o acapella de “Caravana”, tema que assinou com Boss Ac, certamente não podia ter imaginado o impacto que tal gesto viria a obter, gerando dezenas e dezenas de respostas.

A internet, sobretudo a das redes sociais mais populares, agitou-se logo depois e aqui no Rimas e Batidas essa agitação foi particularmente sentida, com a nossa “inbox” a ser inundada de questões, dúvidas e comentários: “Vão divulgar a minha remistura?”, “Olá ReB, sou MC e também remisturei o som do Sam The Kid”, “Aqui têm a nova mistura que eu fiz”. Foram dezenas de emails deste género que demonstram que embora saibam perfeitamente o que fazer na hora de carregar nos botões, muitos produtores ainda não sabem exactamente chamar os bois pelos nomes oferecendo o flanco a alguns equívocos de nomenclatura que podem ser mais importantes do que o que parece. Afinal de contas, nenhum jogador de futebol sério diz “vou ali marcar um fora de jogo” quando após um adversário ter despachado a bola pela linha de fundo o árbitro aponta para a marca de canto. Como costuma dizer o povo, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.



[AS ETAPAS DO SOM]

Em termos muito simplistas, depois de ser ideia, melodia escrita na cabeça, palavras passadas ao papel, o que seja, uma canção – chamemos-lhe assim – passa por três fases importantes depois de chegar ao estúdio e antes de a ouvirmos a tocar na rádio ou a bombar num clube: a captação, a mistura e a masterização – três pilares importantíssimos do trabalho de estúdio.

 


CAPTAÇÃO

 

Esta é a fase em que se “captam” os diferentes sons que se vão ouvir num tema: se estivermos a falar de uma banda convencional, com baixo, bateria, guitarra, vozes, etc, parte dessa captação será feita de forma clássica, através de microfones: as vozes, as baterias, os amplificadores de guitarra e baixo, todos podem ser captados e gravados usando os microfones adequados para cada situação.

As captações, neste caso, podem ser feitas “ao vivo”, com a banda a simular dentro do possível em estúdio a mesma dinâmica que terá em palco, com todos a tocarem em simultâneo (e, dependendo do tamanho do estúdio, isso pode acontecer com todos na mesma sala, a distâncias confortáveis de forma a que cada microfone possa fazer o seu trabalho isoladamente ou então em diferentes cabines de captação; bons exemplos desses tipos de estúdio podem ser vistos nos dois primeiros episódios da série Casa das Máquinas da Antena 3, um dedicado ao Estúdio de Paço de Arcos da Valentim de Carvalho, que tem várias salas de captação onde diferentes músicos podem ser posicionados para uma gravação simultânea, ou então num estúdio como o Namouche, que tem uma grande sala de captação onde até uma orquestra pode ser registada) ou então na chamada técnica de gravação “pista a pista” em que o produtor decide captar cada instrumento à vez, começando, por exemplo, na bateria e construindo a gravação bloco a bloco, instrumento a instrumento – o baixo depois da bateria, as guitarras, os teclados, vozes no final, etc.

 


 

Claro que no hip hop as coisas podem ser diferentes, sobretudo se não houver músicos envolvidos na equação e estivermos a falar apenas de um beat cozinhado na MPC ou no computador. Nestes casos, a captação resume-se quase sempre às vozes no caso de temas com MCs, mas, como bem sabemos, o hip hop tem expandido de forma contínua os seus horizontes técnicos com os produtores a revelarem crescente e justificada ambição combinando muitas vezes algum material dos seus beats concebidos electronicamente com o “input” de músicos reais. Neste caso, Orelha Negra é um bom exemplo de um grupo onde ambas as realidades se combinam, com Sam The Kid e DJ Cruzfader a representarem em estúdio – e em palco – essa via mais tradicional do hip hop que recorre a máquinas para fazer “barulho” (samplers, gira-discos), e João Gomes, Francisco Rebelo e Fred Ferreira a assumirem o lado “live” com os seus respectivos instrumentos.

 


MISTURA

 

Esta é a fase seguinte, quando o produtor / engenheiro de som (que podem ser uma e a mesma pessoa ou pessoas diferentes) equilibram na mesa de mistura todo o material captado. É aqui que se define a equalização de cada pista (mais ou menos graves no bombo? Mais ou menos brilho na guitarra?, etc), é aqui que se afinam os equilíbrios de volumes entre as diferentes pistas (a tarola mais alta do que o bombo, o loop de piano mais baixo do que a voz, etc) e é aqui que se aplicam os efeitos desejados (compressão, delays, reverbs, etc) a cada uma das pistas ou a algumas das pistas. É nesta fase que se tomam decisões, que se decide que não é necessário ter a tarola durante o refrão, porque reforça o impacto das palavras que estão a ser rimadas ou cantadas, fazendo os “mutes” necessários, definindo, de facto, a arquitectura sonora de uma canção.

 


MASTERIZAÇÃO

 

Fase final, antes do disco ir para a fábrica. Captou-se todo o som, cada instrumento, cada voz, misturou-se tudo numa peça coerente e agora é tempo de meter o álbum na rua. Já com a mistura final de cada tema na mão, o engenheiro responsável pela masterização terá nas mãos (em fita analógica ou num qualquer formato digital) cada tema com duas pistas, o esquerdo e o direito, aquilo que vocês ouvem em cada ouvido quando metem os auscultadores e escutam o vosso som favorito. A primeira coisa a decidir é a sequenciação: por que ordem irão as pessoas ouvir os 12 temas que compõem o vosso álbum? Isso é importante porque se tenciona contar uma história, porque se pretende que os temas se encaixem uns nos outros de forma lógica.

Depois de definida a ordem é importante perceber que os temas estão equilibrados em termos de volumes, que a faixa três não está mais alta ou mais baixa do que a faixa 4 e por aí adiante. Há normas neste plano e os engenheiros especializados em masterizações sabem bem disso. Tratarão por isso mesmo de ajustar todos os volumes de cada canção de forma a que soem todos idênticos e não haja diferenças gritantes.

Para lá disso, os temas serão ainda alvo de uma equalização final, um último afinar das frequências de forma a criar uma personalidade sónica ao trabalho, refinando graves, brilhos etc. Depois de feito todo esse minucioso trabalho, o engenheiro entregará nas vossas mãos o master final a partir do qual, se decidirem fabricar cds ou vinil, todas as cópias serão feitas.

 


[A REMISTURA]

O álbum foi editado, o single está a bater na rádio e até resulta nos clubes, mas não em todos os clubes. Imaginemos que querem que o vosso single bata também noutras pistas e que encomendam uma remistura. O que é afinal de contas uma remistura?

Ora bem, como o próprio nome indica, uma remistura é uma mistura que volta a ser feita. Nos anos 80 isso significava uma coisa, hoje, claro, significa outra.

Ora vejamos, por exemplo:

 

A este original, o senhor Norman Cook, que o mundo conhece sobretudo como Fatboy Slim, contrapôs uma remistura:

 

 

Para o fazer, Norman Cook terá, certamente, recebido as pistas originais, ou seja a sessão de captação original, decidindo usar na sua remix apenas os elementos vocais originais. Novo instrumental, para as mesmas vozes.

Vejamos agora esta remistura de Arthur Baker, um dos maiores produtores dos anos 80 e um nome importante nos alvores do hip hop (foi ele que produziu “Planet Rock”, por exemplo).

 

 

A partir deste original de Bruce Springsteen e com total acesso aos multipistas da canção, Baker fez várias remisturas com uso abundante de material captado nas sessões originais:

Versão 1, para as rádios sobretudo:

 

https://www.youtube.com/watch?v=zTtZGIOvNjU

 

Versões adicionais, para as pistas de dança de Nova Iorque e do resto do planeta:

 

https://www.youtube.com/watch?v=m_CGEyFDs8Q

https://www.youtube.com/watch?v=Gzjih0HkN-c

 

Inspirado pelo Dub jamaicano e com pleno uso dos instrumentos originais, Arthur Baker criou versões distintas e remisturas na verdadeira acepção da palavra, ou seja novas misturas com uso abundante das captações originais e utilização imaginativa da mesa de mistura, aplicando novos mutes e efeitos nas diferentes pistas, estendendo certas partes, etc.

Aquilo a que hoje se chama, por força da conveniência, uma remistura não é na verdade nada mais do que uma nova produção: quando, como aconteceu com as versões alternativas de “Caravana”, o uso do original se limita ao acapella, ou seja às vozes, descartando os elementos da produção original (até porque não foram fornecidos os ficheiros multipistas), o que se faz de facto é assinar uma nova produção para aquela pista vocal. Um novo beat. Nomear isto como uma nova versão será por isso mais apropriado do que como remistura.

E, claro, se em vez de um novo instrumental, alguém tivesse decidido pegar num outro instrumental já conhecido e aplicá-lo sob as vozes de Sam The Kid e Boss Ac, o que se obteria seria um Mash Up, como este:

 

 

Mas isso é outra conversa, pois claro. Como se costuma dizer, outros quinhentos. Bom exemplo em terras lusas desta prática será o trabalho de Stereossauro a partir do “Solteiro” de Orelha Negra (com Sam The Kid e Regula) a que foram aplicadas partes do “problema de expressão” dos Clã e do “Sexual Healing” do Marvin Gaye. Ora vejam (e ouçam):

 

 

Agora, de volta ao que aqui se aborda, uma das versões alternativas de “Caravana”, a cargo de Madkutz:

 

 

Claro que o inverso, ou seja, gravar uma nova rima para o instrumental que Sam The Kid também disponibilizou mais não será do que o velho impulso das mixtapes, quando os MCs usavam instrumentais já rodados para mostrarem o que valiam. Não é, como nos indicaram alguns MCs, “uma remistura verbal”. Isso nem sequer existe. Chamem ao gesto o que chamarem, no entanto, ele não deixa de ser válido. Como o Slow J deixa perefeitamente claro:

 

 

Concluindo, como é mais do que claro, cada produtor, cada DJ, cada MC pode, evidentemente, chamar o que quiser ao seu trabalho. Pode chamar, nestes casos, “remistura”, “reinvenção”, “retratamento” ou o que a imaginação ditar. isso não tem mal nenhum, como é óbvio. Mas saber pelo menos a origem dos termos ajudará de certeza a que se compreendam melhor os conceitos, o que significa cada gesto, qual o seu valor estético e como trocar de novo as voltas a isto tudo. E isso é algo que o hip hop nunca se cansou de fazer: trocar as voltas ao mundo.

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