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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/01/2021

A ética sampladélica de Daniel Dumile.

MF DOOM samplava a música que mais ninguém queria

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/01/2021

Ok, o teu nome é Alchemist ou Madlib, tens créditos fundos nos subterrâneos, mas o rapper no topo da pirâmide que busca um pouco de credibilidade acaba de comprar um dos teus beats por 50 mil dólares. Levas a cara-metade a jantar mais logo e amanhã telefonas ao teu dealer e dizes algo como: “ainda tens aquele OG do Verocai? Aquele banger da Zâmbia? Aquela raridade dos Placebo? Quanto pelos 3? 7K? Podes embrulhar, passo aí daqui a bocado…”

Essa nunca foi a cena de DOOM. O “vilão” que se revelou numa máscara ergueu a sua identidade – ou o seu mito – em cima de cultura pop muito pouco celebrada: os filmes japoneses de Godzillas de cartão em vez das mais sofisticadas produções de Kung Fu de Hong Kong; os cartoons da Hanna Barbera em vez dos filmes de blaxploitation; os comic books da Marvel em vez da literatura de James Baldwin; a cerveja em vez do champagne; o “1 dollar bin” em vez da Wall of Fame! E isso significou flipar samples de discos que não arrombavam o banco, daqueles que nas lojas se apanham nas caixas a que vão parar os discos sem classe para ocupar espaço nas prateleiras onde se acumulam as peças mais valiosas.

A obra de DOOM está por isso carregada de samples muito comuns e acessíveis de artistas como Isaac Hayes, Atlantic Starr, Steely Dan, Quincy Jones, New Birth, Sade, da S.O.S. Band, dos Spinners ou de Jeff Beck, todos extraídos de discos que numa loja comum de Nova Iorque ou de Los Angeles não custariam mais do que um par de dólares cada um a quem neles arriscasse. Porque para DOOM nunca foi acerca de impressionar colegas de ofício com o sample impossível, mas antes de servir as suas ideias. Muito mais acerca de fazer jus às suas memórias do que afirmar capacidades de diggin’ sobre-humanas. Bem mais importante criar a cadência certa para depois poder desfiar o novelo de ideias do que deixar os “sample heads” a coçarem a cabeça. Como o writer que não está tão importado em escolher o muro ou a parede que lhe vai valer o título de “king”, gizando elaborados planos ao longo de semanas, quanto em assinar um bombing carregado de estilo ainda que pensado e executado no tempo que demora a comer uma sandes de queijo.



Apesar de tudo, no entanto, há um fio-condutor através da história da música negra que se adivinha na sua biblioteca de samples: para lá dos já citados Isaac Hayes, Quincy Jones ou New Birth, a sua óbvia reverência pelo black music continuum ainda conduziu o seu sampler na direcção de música incrível de artistas e colectivos como o Dee Felice Trio, Melvin Van Peebles, Teena Marie, Anita Baker, The Whatnauts, The 5th Dimension, Sade, The Jones Girls, Billy Butler, The Stylistics, Erykah Badu, D’Angelo, Donny Hathaway, Marvin Gaye, Michael Jackson, ESG, Earth Wind & Fire, Joe Tex, TLC, Clarence Reid, Johnny Jenkins, Bernie Worrell. Ao contrário de certos produtores que chegavam a estabelecer datas como baliza definitiva para a sua música – os People Under The Stairs em tempos garantiram que nunca fariam um tema com um sample retirado de alguma rodela de vinil lançada depois de 1973, isto, claro, antes de se terem enamorado pelo disco sound lustroso de finais dos anos 70… -, o senhor Dumile nunca teve manias nem pruridos de qualquer espécie. Ou sequer cuidados, já que muitas vezes samplava-se música com uma carga de décadas já considerável para procurar dificultar o trabalho aos sample spotters que poderiam vir bater à porta a pedir direitos. Como quando samplou “One Hundred Ways” do ultra-comum The Dude de Quincy Jones (disco de 1981 de que os PUTS na sua fase mais obtusa nunca se teriam acercado) na sua “Rhymes Like Dimes” de Operation: Doomsday. E não deixa de ser profundamente irónico que um disco que serviu de molde a boa parte das criações underground dos últimos vinte e tal anos contenha momentos que resultaram de samples retirados de discos absolutamente comerciais (e recomenda-se vivamente a história deste sample em particular contada por Questlove no seu podcast).

Mas nem só de soul vive o homem, e DOOM também foi relativamente permeável às mais sinuosas malhas de jazz, embora sem cometer as loucuras que um companheiro como Madlib certamente cometeu, nunca chegando a enfiar-se pelo rabbit hole que conduz os mais afoitos (e endinheirados…) produtores a prensagens privadas, aos mais cobiçados títulos da Strata East ou Black Jazz, às mais desejadas rodelas mono da Blue Note que custam tanto como um carro decente de 2003 em segunda mão. E isso para o vilão mascarado significava arriscar pontualmente no “bin” de jazz, mas naquele que ficava a repousar no chão com as peças vinílicas mais comuns de gente como Yusef Lateef, Billy Cobham, Lonnie Liston Smith, Jon Lucien, George Duke, Johnny Pearson, Gil Scott-Heron com Brian Jackson, Hubert Laws, Tom Browne, Ramsey Lewis, The Blackbyrds, Azymuth, Bob Dorough ou Charlie Parker. Ou seja, valia tudo: jazz mais bop ou mais soul, mais de fusão ou mais funky, mas muito raramente mais free ou “out there”. Ainda assim, acercou-se de Sun Ra em “The Illest Villains”, faixa dos Madvillain com beat carimbado por Madlib (lá está…).

A obra de DOOM também oferece uma interessante panorâmica sobre o hip hop. Para o autor de Operation: Doomsday samplar snippets da sua colecção de rap era uma forma de afirmar o seu próprio lugar na cultura e talvez de declarar o seu amor pela forma de arte que o alimentou, que o inspirou, que o transformou. Ao longo dos anos, inseriu nos seus diferentes temas pequenos, mas significantes excertos de peças de Boogie Down Productions, Kool G Rap & DJ Polo, Eric B & Rakim, Wild Style, T-Ski Valley, Slick Rick, Marley Marl com Heavy D e Boz Markie, KMD, Ultramagnetic MC’s, Salt-n-Pepa, Nas, EPMD, Just-Ice, Snoop Dogg com Dr. Dre, Big Daddy Kane, M.O.P., Gang Starr, The Beatnuts, Ghostface Killah, Cam’Ron, Jeru The Damaja, Audio Two, De La Soul, MC Jay-ZLyte, Raekwon, Public Enemy, Stetsasonic, LL Cool J, T La Rock com Jazzy Jay, A Tribe Called Quest, Jungle Brothers, J Dilla, Run DMC ou Planet Asia. Uma ampla selecção de diferentes eras e escolas, de diferentes costas, de artistas mais ou menos subterrâneos, mas todos merecedores dessa vénia. Porque DOOM parecia samplá-los como quem aponta para os pares ao lado de quem quer ser considerado.



O rock também não escapou ao sampler de DOOM. Uma vez mais, esqueçam porque não vão por aqui encontrar obscuras peças psicadélicas que na loja certa podem custar os olhos da cara, nada de private presses de bandas de garagem que só estão ao alcance da elite mundial de diggers e que se encontram no topo das listas com os “Most Expensive Records Soldo n Discogs”, mas rodelas bastante comuns de gente como The Beatles, Steely Dan, Jeff Beck, Nektar, Daryl Hall & John Oates, Frank Zappa, Bryan Ferry, Climax Blues Band, Ten Years After, Harry Nilsson, The Electric Prunes, Journey, Creedence Clearwater Revival ou Jane, denotando Dumile uma apetência particular pela electrificação mais clássica.

Os samples que retirou de discos de gente como Caldera, Space, Les Baxter, Morton Stevens, Dom Salvador, Henry Mancini, Golden Boys, Nonato e Seu Conjunto ou Jards Macalé também revelam alguém que não temia a caixa easy listening encostada no fundo da loja a acumular o pó próprio da rejeição imposta pelo gosto dominante. Mas atraído, muito provavelmente, por algum sinal gráfico na capa, por alguma foto prometedora ou apenas por um aguçado instinto, DOOM conseguia, milagrosamente, transformar a vulgaridade em drama boom bap com espessura cinemática.

Mas também há no seu role sampladélico alguns nomes mais sérios a que só alguém com conhecimentos seria capaz de chegar. Pode ser difícil imaginar DOOM a largar verbas de três dígitos por discos de Cortex, The Stark Reality, Galt MacDermot ou Attileo Mineo, mas de alguma maneira algumas rodelas desta gente acabaram nas mãos do beatmaker de Long Island e acabaram por render momentos clássicos. E até Arthur Verocai acabou por passar pela MPC de DOOM, embora seja importante explicar que em 2005, quando sob o disfarce Metal Fingers Daniel Dumile samplou “Na Boca do Sol” para o derradeiro volume da sua série Special Herbs, já estava disponível a reedição de 2003 da americana Luv n’ Haight. E DOOM, ao contrário de sampladores com outro tipo de ética, como DJ Shadow ou Cut Chemist, nunca se importou de samplar reedições. Ou discos de 1 dólar. Mas lá está, samplando os discos que mais ninguém queria, DOOM criou o que poucos lograram alcançar: uma sólida, visionária e plenamente original obra. A eternidade já não lhe escapa.


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