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Fotografia: Joana Magalhães
Publicado a: 04/05/2023

As emoções em contraste num novo disco.

MEMA.: “Acho que este disco permitiu-me muito refletir sobre quem sou”

Fotografia: Joana Magalhães
Publicado a: 04/05/2023

Quase três anos já se passaram desde Cidade de Sal, o curta-duração que nos apresentou MEMA., projeto com o qual – atualmente – se apresenta no mundo da música a aveirense Sofia Marques.

Muito mudou desde então. O mundo mudou. MEMA. mudou e a sua nova música é reflexão disso. Passou os últimos dois anos a experimentar, a refinar e a colaborar para criar aquele que, no passado dia 21 de abril, se revelou ao mundo como o seu disco de estreia: LeveEscuro

Leve♀Escuro (como o nome já dá pista) é um disco dividido entre canções mais orelhudas e leves e outras mais texturais e escuras que têm como elemento de condução a exploração de quem Sofia realmente é. É um disco praticamente tão pessoal quanto Cidade de Sal, mas se o seu primeiro EP abordava sonoridades mais folk e tradicionais, Leve♀Escuro é uma nova etapa sonora para MEMA., mais virada para a pop eletrónica dita alternativa, mas que perde o enfâse nas suas explorações com guitarra elétrica (afinal, Sofia acredita em “pop feita com guitarras elétricas com distorção” – corretamente, se nos perguntarem).

Após apresentar o seu disco em Aveiro, no Teatro Aveirense, no passado dia 27 de abril, MEMA. prepara-se agora para subir ao palco do Musicbox, em Lisboa, esta sexta-feira (5 de Maio), onde irá atuar em formato banda.

Para entendermos mais Leve♀Escuro e como os últimos três anos de vida da produtora e cantautora influenciaram a sua criação, o Rimas e Batidas foi conversar com Sofia à beira-mar, local que nos pareceu apropriado para nos inspirar a dissecar com mais eficiência este universo.



Tocaste esta quinta-feira [27 de abril] no Teatro Aveirense. Como correu?

Correu muito bem! Foi um concerto diferente por ser a primeira vez que toquei com banda em vez de apresentar-me como tenho-me sempre apresentado, sozinha. Então, foi bastante mais relaxado da minha parte e foi um concerto muito energético. As pessoas também deram-nos feedback incrível. Foi mesmo brutal e estou mortinha para tocar no Musicbox outra vez com eles.

Tocar na tua terra natal – Aveiro – é sempre um momento especial?

Sim, é como estar numa sala de estar em que estão todos os teus familiares e amigos e mais alguns [risos]. É um ambiente muito familiar e é especial porque foi dos primeiros sítios em que toquei com este projeto – aliás, o primeiro foi Ílhavo, que também é casa – mas Aveiro sempre me deu a mão no que toca a este projeto e ao desenvolvimento da minha carreira artística. O meu coração também está lá e é sempre um momento muito bom [tocar em Aveiro]. 

Este ano lançaste uma música chamada “Fora de Fase”, em colaboração com o piurso, que faz parte de uma compilação chamada RAJADA – Windy Sounds from Aveiro. Como surgiu esse desafio e como olhas para a cena musical atual de Aveiro?

A cena atual de Aveiro, no que toca à música e cultura, está muito viva. Há um investimento muito grande do município, mas também de associações culturais locais em mobilizar e dinamizar encontros entre músicos locais, e a RAJADA surge um bocadinho daí. Surgiu a partir de uma editora chamada VIC NIC, que faz parte da associação cultural Navalha e do projeto cultural VIC // Aveiro Arts House, que é de um grande amigo, o Hugo Branco, e o projeto RAJADA teve mesmo como objetivo juntar artistas locais de vertentes muito diferentes e pô-los a fazer música em conjunto. Eu fiz essa música com o piurso, que é um artista de música eletrónica, e foi muito divertido. É engraçado que nós já gravámos isso há dois anos e só agora é que está a sair. Foi assim um processo bastante longo e é engraçado que quer eu, quer o piurso, fizemos tudo maioritariamente à distância. Acho que só nos juntámos uma ou duas vezes, para gravar em estúdio vozes e guitarras e acertarmos detalhes de mistura, e também para estarmos juntos para o documentário realizado em torno disto com o Nuno Barbosa, videógrafo e realizador de Aveiro.

Aveiro e algumas noções de tradicionalismos inspiraram o teu EP de estreia, Cidade de Sal. Apesar de ainda existirem algumas valências desse universo neste LeveEscuro, sinto que há um afastar da tua parte desse universo. Que desenvolvimento artístico sentes que ocorreu entre o EP e o teu disco de estreia?

Olha, o EP foi sempre visto como um projeto em separado – aliás, é assim que vejo cada disco. Sou a mesma pessoa, a mesma entidade, mas os projetos têm sempre vida própria. Quando comecei o projeto da MEMA. não tinha grande intenção de que o projeto, num todo, fosse de eletrónica folk ou de música tradicional. O que aconteceu no EP Cidade de Sal foi quase uma necessidade, como já expliquei anteriormente. Surgiu um bocadinho porque estava longe de casa e comecei a procurar do que seria – além do fado – interessante de explorar e que expressasse essa minha saudade de casa. Foi um bocadinho por aí que o Cidade de Sal tocou mais na parte folk. Quando comecei a fazer este disco ainda estava um bocadinho presa à expectativa que se criou com esse EP, e se calhar à expectativa que as pessoas tinham de mim – embora saiba que isso está tudo na minha cabeça, essa expectativa externa. Só quando me libertei dessa ideia ou dessa expectativa que outros tinham de mim é que comecei realmente a escrever o disco que seria este Leve♀Escuro e fiz um bocadinho o que me apeteceu. Então, ao nível de desenvolvimento artístico, para mim, acho que acompanhou muito o meu desenvolvimento pessoal, de ultrapassar certos medos, de ultrapassar certas condicionantes psicológicas que criei relativamente a mim mesma. Foi atravessar esses obstáculos até chegar ao Leve♀Escuro, que é uma mistela de géneros e de influências, desde pop que sempre ouvi até ao metal que ouço desde a minha adolescência, desde lamechices até gritos mais empowering, por assim dizer [risos]. Apetecia-me fazer essas coisas, essas misturas, e fiz. Foi o que saiu e fui dar a este disco. E também houve muita experimentação, sabes? Testar coisas. Eu quis que este álbum tivesse mais ênfase nas guitarras porque acredito em pop feita com guitarras elétricas com distorção [risos]. Foi mais ou menos assim que surgiu o Leve♀Escuro.

Essa noção de exploração e essa noção de ultrapassar essas barreiras, para além de ser um tema que está presente no disco, foi também parte da razão por a criação do disco ter sido um processo bastante longo? 

Em parte, sim. Eu estive muito bloqueada durante bastante tempo o ano passado (em particular) e no ano anterior. Estive bastante em baixo e houve várias vezes coisas que me levaram mesmo a estar num estado depressivo novamente, que se calhar tem muito a haver com essa questão das minhas expectativas… Já não o faço tanto porque acho que comecei a trabalhar nesses assuntos, mas é algo que demora tempo. Então, acho que teve muito a ver com essa questão, com essa ansiedade, em que é que os outros vão pensar de mim se fizer a) ou b). E estive muito tempo até desprender-me disso e conseguir dar vazão aos meus sentimentos de forma livre. O disco, aliás, fala um bocadinho também dessa liberdade, de fazermos o que nos apetece, sermos nós próprios, tirarmos a máscara e avançarmos. Mas sim, demorou um bocado de tempo por causa disso. Também não me vejo como uma artista que vá lançar discos à pressa, por assim dizer. Gosto de levar o meu tempo e gosto que as coisas tenham sentido porque quero pôr cá para fora trabalho ou arte que faça sentido para mim, mas que também faça sentido para as pessoas. Enquanto o Cidade de Sal foi um bocadinho mais pessoal, o Leve♀Escuro, embora também seja pessoal, tem um espectro mais alargado e uma vertente um bocadinho mais exterior que também diz respeito àquilo que as pessoas poderão ou não estar a passar e é quase uma bengala para, se quiserem, expressarem-se, lançarem os problemas delas, e extravasar na música. É um bocadinho por aí.

Falas muito de liberdade neste disco. Achas que ser livre implica livrares-te dessas pressões que colocas sobre ti mesma ou que sentes que os outros colocam sobre ti?

Sim, absolutamente. Acho que a liberdade depende muito do nosso estado de espírito, o nosso estado mental. Aliás, a música “A Liberdade É Uma Noite Escura” fala um bocadinho sobre isso. Sobre como, por vezes, por exemplo, quando estamos num estado depressivo, há muita coisa que é involuntária. Por exemplo, quando temos uma dificuldade enorme em socializar – e claro que isto não é generalizado, cada um tem diferentes nuances de depressão ou estados depressivos –, mas essa incapacidade por vezes de estar com outras pessoas da mesma forma ou de querer sair da cama, isso tudo é uma condicionante à nossa liberdade. Não estás a viver no potencial máximo que poderias estar e isso, para mim, foi uma questão que esteve sempre na minha cabeça durante este tempo todo. Tu próprio é que às vezes condicionas a tua própria liberdade. A liberdade existe para ser usufruída e às vezes nós não nos deixamos fazer as coisas que queremos fazer, ou porque pensamos demais nelas – é o meu caso, eu penso demais em tudo – ou às vezes também há consequências negativas dessa liberdade, que nos fazem pensar duas vezes — e isso é bom, claro, mas noutros casos até não é. Por exemplo, apetece-me surfar, mas tenho um medo petrificante de ser levada por uma onda ou de morrer afogada [risos]. Esse próprio pensamento leva-me a, se calhar, não fazer surf e estou a adiar e a adiar e não estou a experimentar coisas que poderia estar a experimentar. Se calhar é um exemplo parvo, mas foi o que surgiu por estarmos aqui à beira-mar.

Lembro-me quando era puto tinha um pesadelo recorrente em que na praia do Furadouro [em Ovar] ocorria um tsunami e então deixei de querer ir à praia bué tempo por causa disso.

[Risos] Fogo! Eu por acaso acho que o mar mete muito respeito, e acho que a zona de Aveiro até nem é dos sítios mais agressivos, mas há sítios em que o mar… Por exemplo, ali perto de Torres Vedras, em Santa Cruz. O mar ali, caraças, tem uma força! Mete respeito e é preciso ter cuidado, não é?

Sim, mas o mar é livre para fazer isso.

Pois, é isso. Lá está, o mar não pensa demais, o mar faz o que quer [risos]. Temos que ser todos mais mar.

Referenciaste deste disco ter nascido um pouco da experimentação. Na última entrevista que concedeste mesmo ao Rimas e Batidas, em 2020, falavas que o teu processo de composição começava maioritariamente pela criação dos beats. Notaste alguma diferença na tua abordagem para criar as canções deste disco comparativamente com abordagens prévias?

Hmm… Mais ou menos. Acho que agora foi tudo muito mais híbrido, talvez e a escrita quase sempre esteve a par com a composição musical. Porém, cada canção teve quase um processo diferente. Algumas – muitas – começaram pelo instrumental, muitas vezes pela guitarra, mas a “Cá Dentro”, por exemplo, começou quando eu tinha um microfone aberto, porque estava a gravar outra das canções do disco, e comecei simplesmente a debitar o que me vinha à cabeça. Aliás, essa canção tem uma história muito engraçada. Eu gravei assim quase tudo no momento e ia escrevendo, mas gravei sem qualquer referência de tom, sem qualquer instrumento por trás, etc. Então, quando quis adicionar instrumental, notei que estava semitonada, ou seja, não estava na afinação padrão que todos os sintetizadores estão e em que normalmente afinamos as guitarras, etc. Voltei a tentar gravar as vozes na afinação padrão para ser mais fácil de ter um instrumental todo em sintonia, mas não gostei de como soava e acabei mesmo a usar a gravação original que está semitonada. Deu um trabalhão a afinar cada sintetizador exatamente no tom em que a voz estava, cada guitarra ao tom que aquilo estava. Então, esse processo foi muito diferente de tudo o resto, mas a maioria começou pelos instrumentais, até porque houve muitas canções que fiz em parceria, pelo menos na parte das letras. Por exemplo, o Luís Água [SLR], que foi espetacular, mesmo excelente, ajudou-me as letras para me ajudar a transmitir algumas coisas que queria transmitir, como na “Ligas”, que é uma canção assim mais leve, ou a “Solta a Dor”, em que ele ajudou bastante. O processo de criação deste disco foi muito mais colaborativo e acho que isso também mudou bastante. Por exemplo, a “Mulher”, em que eu já tinha um instrumental praticamente fechado, mas não tinha uma melodia para a voz, e então foi aí que a Elizabet Oliveira também entrou com uma melodia para a voz. Aliás, a melodia desse tema é praticamente toda dela com algumas nuances minhas porque sou eu a cantar [risos], mas essa melodia foi praticamente ela que escreveu e a letra também foi muito em parceria com ela. Houve todas estas nuances neste disco que o EP Cidade de Sal não teve porque foi um trabalho mais solitário. Aliás, isto foi uma experiência que já queria muito fazer há já algum tempo, que era trabalhar com outras pessoas. Às vezes, quando trabalhamos sozinhos, estamos na nossa bolha e não vamos além da nossa bolha, seja por medo ou porque simplesmente não conseguimos, porque as nossas competências, as nossas experiências, não são tão alargadas quanto juntar as experiências dos outros, as influências dos outros. Por exemplo, é muito fixe trabalhar com o Água porque nós temos uma linguagem muito semelhante ao nível da pop. Mas depois, por exemplo, o meu irmão [Rúben Marques], que participou na “Cá Dentro”, ele é todo metaleiro – tem uma banda de metal e faz parte dos Tales for the Unspoken, mas como a canção tinha aquele punch todo que só me lembrava vulcões e erupções e eu não sei fazer aquele berro do metal, perguntei-lhe se ele podia vir lá a casa gravar o berro dele e acho que ficou brutal. Houve todo um conjunto de pessoas envolvidas neste disco, como a Elizabet com a sua escola do r&b e hip hop, e mesmo a Mariana Barros do violino, com uma linguagem musical muito diferente da minha e tudo isso enriqueceu bastante as canções. É um bocado por aí.

Que outras colaborações gostavas de fazer? Lembro-me que recentemente foste convidada dos D’Alva no concerto deles no Porto, por exemplo…

Olha, por acaso o Ben [Monteiro] e o Alex [D’Alva Teixeira] são amigos há muitos anos. Conhecemo-nos, acho eu, há dez anos quando vim morar para Lisboa e acho que desde aí que clicámos — muito a nível pessoal, claro, mas mesmo a nível musical. Já falámos mil vezes em fazermos coisas juntos, seja escrever ou produção, mas ainda não tivemos essa oportunidade. Mas são pessoas muito queridas para mim e são muitos talentosos eles os dois. Aliás, a banda toda o é, e eles são muitos queridos e tentam sempre incluir toda a gente. Enquanto uns fecham portas, eles são as pessoas que tentam sempre que toda a gente tenha acesso às mesmas portas que eles tiveram, e até outras. Aliás, no início, muito deste projeto aconteceu graças à partilha de contactos que o Alex e o Ben fizeram comigo, desde assessoria de imprensa a contactos de distribuição. São pessoas assim muito queridas e com quem gostava de facto de trabalhar. Depois outras, ao nível de colaborações, adoro o trabalho do Pedro Mafama. Aquele último álbum dele, o Por Este Rio Abaixo, é incrível, e também gosto mesmo muito dos projetos anteriores deles. Também adorava um dia mais tarde ter um tema com a Teresa Salgueiro, que é assim uma voz que adoro. Adorava Madredeus, são assim um dos grupos que tenho como heróis de infância ou adolescência da música portuguesa. Portanto, ya, Pedro Mafama e Teresa Salgueiro são os nomes que me lembro com quem gostaria mesmo de colaborar.

No final de 2020, em entrevista à Altamont, confessavas que, por essa altura, já andavas a explorar novas coisas no período em que o Cidade de Sal estava a ser finalizado. Mais tarde, em 2021, lançaste três canções num EP no Bandcamp – UNRELEASED. – que soam quase como uma ponte para aquilo que seria este LeveEscuro. Que relação existe entre essas três faixas e as explorações que fizeste neste teu longa-duração de estreia?

Nenhuma! [Risos] Por acaso, não existe mesmo nenhuma [relação]. Vou-te explicar o que são essas três faixas. Quando comecei o projeto que seria o Cidade de Sal, eu tinha dez faixas para editar. As que estão no EP e mais essas três faixas, que na altura pensava que iam fazer parte não de um EP, mas de um álbum. Só que na altura pensei que era o meu primeiro trabalho e não queria lançar logo um longa-duração, mas aquelas três faixas diziam-me muito – por exemplo, adoro o tema “Terra Molhada”, é dos meus temas favoritos. Porém, ao mesmo tempo, saíam um bocadinho fora do espectro mais tradicional que queria para o Cidade de Sal e, então, ficaram de fora. Depois, fiz esse lançamento no Bandcamp porque gostava mesmo muito das canções e queria tê-las cá fora, mesmo que não fosse no streaming. Não as queria lançar ali porque para mim não fazia sentido na altura e continua a não fazer. Não existe uma ligação direta, não, porque tudo isso já foi escrito e gravado em 2019 e eu era uma pessoa muito diferente em 2019 daquela que sou agora.

Obrigada pela correção! Assumi que existisse uma relação por ser mais na vertente da pop eletrónica do LeveEscuro.

Sim, sim, mas por acaso não teve uma ligação direta com o disco. Está mais relacionado com o Cidade de Sal e com esse período do que com o resto.



Na “Estou Bem” – que por acaso foi o primeiro single deste disco -, tu cantas “Tudo em mim é uma contradição”. De que forma é que a criação deste Leve♀Escuro permitiu-te explorar essas contradições existentes dentro de ti?

Foi mesmo pela via da extravasão. Foi a tal coisa que falámos no início, de derrubar os obstáculos que tens na tua cabeça. Acredito que toda a gente tem um bocado, não diria de contraditório, mas todos temos dois lados, de certa forma. Por acaso, é difícil de explicar, mas eu tanto posso parecer uma pessoa bem disposta, e se calhar quem fala comigo… Por acaso, é engraçado. Agora com banda, nós em estrada falamos muito, conversa-se muito, e por acaso o baterista, o Hayden [Nóbrega], dizia-me que quando me conheceu, achava que eu era uma pessoa muito séria. Pelas conversas que tínhamos pelas redes, ele pensava que eu era uma pessoa muito séria, mas depois ali, na estrada, estava sempre na galhofa. Portanto, tenho um bocadinho esses dois lados. Tanto tenho um lado sério como tenho um lado mais informal, e acho que toda a gente tem esse lado, e depois tanto tenho o lado de encorajamento como tenho o lado depressivo. Então, estou sempre aqui entre estes dois mundos. Acho que este disco permitiu-me muito refletir sobre quem sou e acho que me permitiu quase perceber-me melhor via estas canções. Todo o processo foi um bocado doloroso e conturbado, mas acho que este disco foi essencialmente isso. Perceber-me melhor enquanto pessoa e o meu lugar na sociedade, o que está à minha volta e o que significa para mim, com essas contradições todas. 

Se tivesses de escolher uma faixa do disco para ser a sua centerpiece, qual seria?

Eu acho que não consigo [risos], mas acho que a faixa de entrada [“Cá Dentro”] é muito forte. Por acaso, acho que a primeira e a última resumem bem o disco. É engraçado, “A Liberdade É Uma Noite Escura” fala um bocadinho dessa dicotomia, não é? A letra dessa música é muito sombria, mas o instrumental contrabalança essa escuridão. É um instrumental mais leve. A “Cá Dentro” é um grito de força, mas, ao mesmo tempo, tem muita dor. Então, são assim as duas que eu diria que resumem o disco. Não te consigo apontar apenas uma.

Uma referência que sei que tiveste em mente neste disco foi a Rina Sawayama. Que relação tens com a música dela?

[Risos] Só perguntaste isso pelo Primavera [Sound Porto], pá! [Risos] Mas é engraçado. A primeira música que ouvi dela foi a “Snakeskin”, que é do SAWAYAMA – e por acaso até acho que foi pelo Rimas e Batidas. Foi a primeira música que ouvi dela e não gostei. Achei que parecia muito random, que estava tudo misturado. Mas depois continuei a ouvir e bateu — e fiquei um bocado obcecada. Eu gosto muito da música da Rina, principalmente desse álbum, SAWAYAMA. Sinto que é um álbum livre, que não tem aquele preconceito de género musical, de que só por ser pop, não pode usar nada pesado ou que tem de ter uma linha condutora em que as músicas são quase iguais umas às outras. Não senti isso, senti o oposto. Senti liberdade, senti que foi feito por uma pessoa que gosta de tantas coisas diferentes, que se permitiu a fazer isso, e acho que isso também me inspirou a seguir um caminho semelhante de liberdade plena naquilo que quero fazer.

Que outros artistas da pop te entusiasmam atualmente?

Deixa-me pensar… A Rina é uma delas, não é? O que ando a ouvir nos últimos tempos? Nem sei… Ando a ouvir muito k-pop também.

K-pop é muito fixe. Acho que é uma referência que deve ser tida em conta, atualmente, quando se faz pop. A produção deles é incrível. BLACKPINK? Incrível.

É incrível, é tudo perfeito, e as BLACKPINK são o grupo de k-pop que mais gosto. Mas não gostei deste último álbum [BORN PINK], achei um bocado desinspirado. Ultimamente, também Charli XCX, que ouvi muito no último ano. Ela faz sempre coisas diferentes e sempre um bocado em screw it, e estou-me a esquecer de alguém que ando a ouvir bué. Deixa-me ir ver à minha playlist! [Procede a abrir o Spotify no telemóvel para verificar o que anda a ouvir]

Acho underrated em conversas não se poder ir ao telemóvel confirmar informação! Normalize-se!

Por favor, faz isso! Normaliza essa cena. Mas olha, voltei a ouvir Lana Del Rey. Ela está sempre a lançar álbuns e eu curto bué da música dela porque notas que ela é muito verdadeira a ela própria, não é? Estes anos todos, notas que não foi pressionada por possíveis influências. Às vezes, vemos artistas com um álbum em que são eles e está a arrebentar, e passado um tempo, notas que ficam iguais a toda a gente, que estão a trabalhar com os mesmos produtores de toda a gente e fica tudo muito igual. Com ela, por acaso, não acontece isso. Se calhar, está sempre muito igual, mas igual a ela. Ela tem um disco ao qual regresso sempre, que é o Ultraviolence. Adoro.

É um grande disco.

Sim, sim. Além disso, tenho aqui mais… Kylie Minogue. Acho que estou um bocado saudosista ultimamente, porque fui ouvir aquele disco [Fever] em que ela tem a “Can’t Get You Out of My Head“. Também muito M.I.A., que é uma artista que me entusiasma sempre bastante, e uma artista chamada Fletcher.

Não conheço!

É uma artista queer americana assim com uma pop muito ligeira, que por acaso ouvi muito durante este último ano, e estou um bocado entusiasmada para ver o que ela faz a seguir. Outra que tenho ouvido um bocado passivamente, porque não sou eu que normalmente vai meter o disco dela, é a Miley Cyrus. Acho-a super underrated. Ok que ela está super no topo, mas há sempre aquela conversa dela ter vindo da Disney, blá blá. A Miley Cyrus tem uma voz do caraças! Ela rasga-se toda para cantar aquilo e os últimos dois discos dela [Plastic Hearts e Endless Summer Vacation] foram muito fortes. Então, é uma artista que acompanho passivamente, digamos [risos].

Em 2021, participaste no Festival da Canção com a canção do Stereossauro, “Claro Como Água“. Como vês hoje a tua passagem pelo Festival?

O Festival da Canção naquele ano foi muito atípico, não é? Foi um ano de COVID ainda, em que nós nem sequer na green room podíamos estar perto uns dos outros a não ser nos nossos banquinhos. Então, foi assim um bocado estranho. A nível do processo, gostei muito de conhecer o Stereossauro. É uma pessoa muito trabalhadora, e se há pessoa que está sempre, sempre a fazer música, é ele. Ele não baixa os braços e é mesmo daquelas pessoas que religiosamente todos os dias faz música, e é uma pessoa muito aberta. Nesse aspeto, foi muito fixe conhecê-lo. Agora, se voltaria a fazê-lo [ir ao Festival da Canção]? Acho que não. Pelo menos, não tão cedo – mas não descarto completamente essa possibilidade. Acho que foi uma experiência que permitiu-me perceber muita coisa acerca daquilo que quero ou não quero, e acho que me endureceu o carácter em alguns aspetos porque tanta exposição, para já, não é muito saudável em certos aspetos, não é? O público eurovisivo é muito fixe, mas, ao mesmo tempo, é muito bully, e eu até não fui das que apanhou assim comentários mais agressivos, mas custa-me ver outras pessoas a passar por isso. Acho que foi uma experiência que me fortaleceu e deu-me perspetiva e, então, vejo de forma geral com algum positivismo. Não vou dizer que adoro a 100% o que fiz na altura, mas eu também quando lanço uma coisa, se calhar passado dois dias, também já não estou a gostar muito do que fiz. Portanto, isso para mim faz parte da minha evolução, porque quando lançamos coisas, já estivemos a trabalhar nelas se calhar um, dois anos, e o nosso carácter, especialmente quando nos expomos a coisas diferentes, também crescemos e evoluímos muito rápido. Mudamos muito e muito rápido.

Quando fizeste o Cidade de Sal, fizeste-o numa altura pré-explosão desta cena toda do tradicionalismo meets contemporâneo que está muita gente agora a fazer. Quando reouvi o Cidade de Sal, dei por mim a pensar no Gótico Português dos Glockenwise, porque acho que o teu EP de estreia captura mais um lugar fantasmagórico e fantástico desse lado tradicional ao invés de ser apenas um adorno kitsch. Como vês estas movimentações atuais da inclusão desse lado mais tradicional na música portuguesa contemporânea comparativamente com o que te rodeava há três anos?

Olha, por acaso ainda não consegui ouvir esse disco [Gótico Português]! Mas acho que é positivo, sabes? Por um lado, é seca, mas por outro, estamos a voltar a valorizar coisas que há muito tempo se tinham esquecido, como elementos da música tradicional portuguesa que talvez não fosse tão abertamente disseminada e acarinhada. Então, vejo isso de forma muito positiva. Por exemplo, há um projeto que tenho ouvido bastante, que é a Ana Lua Caiano. Aquilo está tão bem feito, a miúda é incrível, e acho que de toda a gente que está a fazer o estilo agora, a Ana Lua Caiano é aquela que tu começas a ouvir na rádio e quase tens de parar o carro para tentar perceber quem é esta pessoa porque queres ouvir mais. É mesmo incrível o trabalho que ela faz. E é tão nova, sabes? Acho isso muito bonito e se toda a gente estivesse a fazer como ela, era espetacular. Mas sim, na generalidade, acho que é bom. Nós se calhar começámos a ver isso acontecer ali ao lado em Espanha, com a ROSALÍA e o C. Tangana e outros, como a Maria José Llergo, que esteve o ano passado no Primavera [Sound Porto], que também tem um bocadinho de mistura, apesar dela ser mais tradicionalista no que toca à estética dela. Mas acho que é muito fixe estarmos finalmente a usar coisas sem ser só fado. Eu não tenho nada contra o fado, adoro fado, mas existem coisas além do fado. A única cena que sinto que não se está a dar atenção suficiente neste movimento é às pessoas que já faziam isso antes de ser popular. Por exemplo, Dazkarieh sempre fizeram isso e eles sempre tiveram esse cuidado de promover música tradicional portuguesa com a visão a misturar com o que quisessem. Não só com eletrónica, não só com rock, mas até com outros tradicionais do mundo. Acho que também devíamos começar a olhar para quem já tinha feito isso antes – e estou a dizer os Dazkarieh porque é o exemplo que tenho mais em memória, mas há muitos outros que fizeram isso também. Aliás, eles sempre tiveram um trabalho muito orientado e muito focado na preservação da música tradicional portuguesa, incluindo ir mesmo aos sítios com as pessoas que continuam a preservar esses estilos, desde grupos folclóricos a grupos de adufeiras, e fazer um trabalho contínuo com as comunidades locais. 

Em 2022, abriste o palco principal do segundo dia do festival Vodafone Paredes de Coura. Num ecossistema como o português, dependente dos grandes festivais, que importância tem para um artista emergente tocar num palco principal como Coura?

Olha, acho que foi uma oportunidade única e foi uma honra. Acho que é importante dar essa visibilidade, claro. Se foi o palco certo? Não sei [risos]. Era muito grande, foi muito assustador! Ainda estou muito em fase inicial, e por acaso não foi no dia da música portuguesa. Então, questionei um bocado o que estava ali a fazer, percebes? Aquela síndrome do impostor a entrar em cena. Mas acho que os festivais são muito importantes para dar visibilidade, principalmente estes festivais que incluem nomes sonantes, que trazem sempre mais gente. Acho que é extremamente importante dar lugar a artistas nacionais nesses festivais. Aliás, acho que devia haver quase uma quota também para artistas portugueses em festivais, porque normalmente ficam um bocado esquecidos. Estou bué contente de ver, por exemplo, a META_ no Primavera Sound [Porto] deste ano, que tem um cartaz incrível e gostava muito de ir ver a META_ a tocar lá. É uma pessoa que já admiro há algum tempo e é uma artista independente na verdadeira aceção da palavra. Essa exposição é extremamente importante para que outros comecem a escutar música portuguesa, porque cada vez mais temos produção nacional incrível – e aqui refiro-me a música feita em Portugal, que na verdade, não é feita só por portugueses – mas tem havido cada vez mais coisas e com cada vez mais qualidade. Acho que isso é super, super bonito, e acho que toda a gente devia conhecer estes artistas e sermos considerados um bocado ao mesmo nível de quem vem de fora, não é? Nós não somos menos do que quem vem de fora. Então, porque excluir a massa nacional de festivais grandes, não é?

O que há mais no futuro para a MEMA.? Além do concerto do Musicbox, claro.

À partida, vamos ter outros concertos este ano que vão ser anunciados ao longo do tempo, e tenho também algumas colaborações em manga. Fiz uma residência artística em Évora no final do ano passado com o fadista Duarte e fizemos ali coisas que temos muita vontade de gravar e de partilhar com toda a gente. É um bocadinho diferente do meu registo habitual e, então, também foi um desafio por aí. Entretanto, já comecei a fazer alguma música nova, mas não consigo ainda prever se vou ter um disco ou um EP para o ano ou não. Ainda está tudo em aberto, mas podem esperar que eu continue a fazer música e continue a trazer coisas diferentes, porque é um bocadinho isso que quero fazer. Não quero ser uma artista que estagna ou que não se renova, quero ser uma artista constantemente em busca de coisas novas e de expandir também, na sua própria estética e além disso. Gostava muito que o meu próximo disco fosse feito completamente em colaborações, com features mesmo, e gostava de continuar a empurrar esta narrativa e esforço de ter um álbum maioritariamente feito por mulheres, porque é uma coisa que sempre foi muito marcante para mim. Como é que existem tão poucas mulheres a ter visibilidade em funções mais técnicas, ou mesmo a nível artístico? Se formos ver os cartazes – nada contra homens – mas são maioritariamente homens cis. Não há grande representatividade nesse sentido e acredito muito que, para mudar essa narrativa, é preciso também que nós próprias comecemos a mudar a narrativa, que as pessoas consigam ver que isto é tudo feito por mulheres e não somos menos que os homens. Porquê a condescendência? Porquê a exclusão de certos espaços? Tens artistas como a META_, que falei há bocado, ou a EVAYA, que tem um trabalho lindíssimo, e tens tanta gente a saber produzir e a fazer mistura e mastering. Portanto, gostava mesmo de apresentar um disco, um EP ou um álbum, mas que seja praticamente só feito com features de grandes mulheres da música independente e maioritariamente produzido e trabalhado por elas. Acho que é uma coisa que está mesmo no meu coração há muito tempo e eu quero fazer parte dessa mudança.


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