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Fotografia: Tomás Barreda
Publicado a: 13/04/2022

Sem cedências.

Máry M: “É importante criar espaços para as mulheres fazerem hip hop e ajudá-las para que elas não desistam”

Fotografia: Tomás Barreda
Publicado a: 13/04/2022

Passar por algo e transformá-lo em arte é um verdadeiro dom, não tão comum como se possa pensar. Enaltecendo a beleza de uma vulnerabilidade despida de artifícios, Máry M criou o seu próprio oásis, onde o amor à música e a causa feminista se juntam à urgência de criar e resultam num refúgio terapêutico, tanto para si como para qualquer pessoa que procure na arte um porto de abrigo.

O Rimas e Batidas falou com esta rapper sobre o seu primeiro álbum, Incidência, para descobrir mais por detrás do conceito e ainda sobre as suas influências e o foco de luz que pretende deixar aceso para quem também quiser entrar.



Este é o teu primeiro álbum, acredito que seja um grande marco na carreira de qualquer músico. Conta-nos mais sobre o conceito por detrás deste disco e como surgiu.

Inicialmente, eu queria fazer algo mais conceptual, queria que houvesse uma interligação entre todas as músicas do álbum. Comecei a prepará-lo em 2019, mas na altura não tinha ainda claro que conceito é que ia tratar, embora já estivesse na fase de criação, na construção de algumas letras, até já tínhamos alguns beats. Acho que o conceito do álbum foi assim um bocado… inicialmente não tinha pensado ainda nele, ou seja, queria fazer, mas não tinha ainda chegado a ele. No entanto, as duas letras que comecei por escrever foram a “Rainbow” e a “Fata Morgana”  e depois um dia estava a pensar nisso e lembrei-me que existe uma coisa em comum entre essas duas músicas: os títulos são ambos fenómenos naturais de ilusão óptica. Então, no fundo, acho que encontrei essa resposta nas músicas que já estava a preparar e acabei por fazer uma interpretação metafórica minha sobre esses fenómenos. A partir daí foi um trabalho de investigação, de ler bastante sobre fenómenos naturais de ilusão óptica, coisas que têm a ver com física e comecei a criar, pensar e ler sobre isso, para desenvolver as metáforas e a minha interpretação sobre elas e escolher os títulos. É isso que acaba por ligá-las. Daí também depois mais tarde nasceu o título do álbum, Incidência, que acaba por ser aquilo que todos eles têm em comum, a incidência de luz. É preciso haver incidência de luz para se dar um arco-íris, ou uma aurora boreal, ou o espectro de Brocken ou… todos na verdade [risos].

Isso é muito interessante, eu pessoalmente nunca tinha ouvido falar do fenómeno Fata Morgana.

A Fata Morgana é um fenómeno que só acontece em algumas zonas do mundo. Se colocares na net, vai-te aparecer uma imagem clássica de um barco que está no mar, mas que parece que está no céu, é uma ilusão óptica. Tem a ver com a temperatura, com a luz e nessa música a metáfora que crio à volta da Fata Morgana, em específico, é a questão do ego e do egocentrismo, algo que exploro nessa letra, aludindo ao fenómeno que acaba por ser o barco que está à superfície, mas que não parece estar. Essa acaba por ser uma música que funciona um pouco como um break no álbum, porque foi gravada em live act, só com bateria, tocada pelo meu produtor, o Gaiato. É diferente porque foi uma música que não gravámos propriamente em estúdio, em som de estúdio, foi assim uma coisa mais natural, mais orgânica. 

A tua primeira faixa “Intro” tem um cariz bastante poético, quase a funcionar como um presságio para um disco que é tão introspectivo. Sempre quiseste iniciar esta obra com esta música, como forma de dar o mote de que seria algo mais pessoal?

Honestamente, a “Intro” foi a última coisa que eu escrevi no álbum, portanto essa introdução acaba por ser já um mini resumo daquilo que vou falar, que são, como disseste, coisas muito introspectivas, coisas que me preocupam, algo que se resume um pouco na afirmação: “eu tenho-me sentido assim ao longo da minha vida, não me tenho sentido super enquadrada nas coisas, tenho sentido certas inquietações e vou falar delas aqui.”

Um dos temas predominantes não só nesta primeira faixa mas ao longo de todas as músicas é mesmo essa “inquietação, desconforto, urgência de ação” que sentes. De onde surgiu essa necessidade de criar e expor este teu lado?

Eu acho que isso é um resultado de eu ser uma pessoa bastante reflexiva e talvez também tenha a ver com a minha formação em sociologia. Acabo por ser uma pessoa bastante auto-crítica e exponho coisas que eu fui sentindo ao longo da vida como mulher e como mulher pertencente à comunidade LGBT também. Acabo por transparecer isso nas músicas, porque são as minhas vivências. Neste primeiro álbum achei que fazia sentido introduzir-me assim. 

Em “Iridescência” introduzes também um tema muito importante e outro dos mais predominantes ao longo do disco: a luta feminina e o feminismo. Sendo mulher e artista, quais consideras que sejam as maiores dificuldades com que te deparas ao expores a tua obra ao mundo?

Enquanto mulher, a primeira dificuldade que eu encontrei foi a de ter a auto-estima suficiente para me expor dessa forma, porque acho que as mulheres não são socializadas para o espaço público, então essa foi para mim talvez a maior batalha, interiormente. A partir daí, existe o facto do rap ser um estilo sobretudo masculino, então as mulheres ou a imagem das mulheres acaba por ser filtrada pelas experiências dos homens, por aquilo que a maioria dos rappers falam. Nesse contexto, a mulher acaba por aparecer muitas vezes como um objecto, ou uma musa ou como um troféu, uma coisa mais fútil. Ou como mãe também, por exemplo. Essa primeira música, no fundo, é uma forma de afirmar: “ok, nós também estamos aqui, nós também fazemos e nós, ou eu, no caso, vou falar sobre as vivências das mulheres, sendo eu mulher”. Vou falar na primeira pessoa, vou falar sobre coisas que me acontecem, vou falar sobre coisas que eu vejo também, dentro do rap e acaba por ser assim uma música introdutória mais agressiva, se quiserem. Mas o rap também é um estilo tão cru e tão dado a falar sobre as coisas sem filtros, porque não fazê-lo sobre as nossas vivências enquanto mulheres?

O que seria crucial, na tua opinião, para haver mais visibilidade e respeito pelo feminino no hip hop tuga?

Não sei se sou a melhor pessoa para falar disso, mas eu acho que uma coisa muito importante é as mulheres não deixarem de fazer rap, não deixarem de fazer hip hop. É um caminho muito complicado, não é fácil entrar na indústria, eu mesma estou nessa luta e aquilo que acaba por acontecer, que também acontece com os homens, é que muitos acabam por não ter essa consistência, ou seja, acabam por lançar uma música ou um álbum a cada dois anos ou assim. Como há menos mulheres no rap, é mais difícil elas ficarem. Além disso, sabemos que as mulheres têm outro tipo de actividades que os homens acabam por não ter, a certa altura da vida a maioria torna-se mães, além do trabalho têm a casa, que muitas vezes, infelizmente, acaba por ser uma tarefa que não é partilhada e é muito difícil conjugar estas actividades. Por outro lado, também é muito difícil fazeres rap não conhecendo ninguém, porque precisas de ter um estúdio, precisas de investir dinheiro e eu acho que como há mais homens na indústria acabam por se dar mais entre eles, acabam por ter essa facilidade. É importante criar espaços para as mulheres fazerem hip hop, ajudá-las para que elas não desistam.

É importante lançar esse apelo, fazem falta, para verem que há mais gente nessa luta.

É um apelo para mim também [risos].

E como é que tu entraste nesta indústria? 

É assim, eu não me considero dentro da indústria. Gostava muito e espero que isso um dia venha a acontecer, mas para mim foi muito difícil, até porque eu não tenho propriamente muitos amigos que façam ou que gostem sequer de rap. Tinha um amigo que me introduziu ao rap e acabou por ser com ele que comecei a partilhar as primeiras coisas, mas foi muito através dos concertos a que eu ia. Fiz parte da Hip Hop Rádio e de outros projectos dentro do hip hop, fazia reportagens e outras coisas e foi assim que comecei a ir conhecendo mais pessoas, foi mais por aí.

“Miragem” é uma faixa extremamente poderosa, com a qual infelizmente muitas mulheres pelo mundo inteiro se podem identificar. A abordagem de storytelling aliada aos efeitos sonoros da respiração, passos e todos esses sons contribui para algo que chega até a ser desconfortável de ouvir. Sentes que é preciso começar a ser mais desconfortável para que as pessoas finalmente entendam? 

É preciso falar dessas coisas, sim, e obviamente que não é fácil e não é confortável falar disso, mas às vezes acho que é preciso realmente colocar um bocado os nossos medos e receios de lado em prol de um bem maior, e neste caso esse “bem maior” pode ser a abertura de um debate público para este tipo de situações. Essa música, para mim, faz todo o sentido no álbum porque, lá está, um dos meus objectivos era falar sobre aquilo que as mulheres passam e as vivências que acabam por marcar as nossas vidas. Infelizmente, este tema em específico não é tão falado, mas acontece diariamente e não acontece só aos outros. Não é uma coisa que aconteça só a pessoas que nós não conhecemos ou que vemos na televisão, é uma situação que muito provavelmente já aconteceu a uma ou mais pessoas que nós conhecemos, certamente. Não é fácil falar sobre isso e muitas vezes esses traumas acabam por ser vividos sozinhos por essas pessoas, então a ideia desta música passa por querer passar a mensagem de que não estão sozinhas e também procura despertar uma certa sensibilidade em pessoas que não passam por isso.

Na música “Rainbow” dizes a bonita frase: “Sonho do bom é poder ser como eu sou”. Como é que te caracterizarias enquanto Máry M?

Não sei se o vou ser sempre, mas, enquanto artista, sinto-me sempre em processo de construção. Neste álbum explorei alguns temas que achei que precisavam de ser falados e que eu queria falar e em termos de sonoridades também experimentei algumas coisas diferentes. Apesar do boom bap ser sempre uma coisa que está presente, este disco tem também algum rock, tem algumas coisas mais de clássico, beats mais de trap também, mas acho que é isso, um processo em construção. Gosto de muita coisa, então neste momento fez-me sentido fazer isso. Nos próximos projectos acho que vou tentar inovar, porque também gosto de desafios, gosto de fazer coisas diferentes, então sim.

Em “Brocken” tocas no assunto relativo a poetas serem fingidores e dás a ideia de que talvez haja muita gente que escreve sem sentir, enquanto tu “escreves para não te afogares na lama”. Que mensagem pretendes passar com a tua música?

Com essa música em específico, lá está, também foi uma metáfora que eu criei para o espectro de Brocken. Sobre esse espectro, aquilo que aparecia muitas vezes na literatura era que, sendo uma sombra grande da pessoa que lá está e que se reflecte numa montanha, era muitas vezes definida como os fantasmas da própria pessoa que iam atrás dela. Nessa música acabo por explorar um bocado isso e, como sou uma pessoa muito auto-reflexiva, acabo por ter muitas inquietações. A música ou o rap não tem necessariamente de ter uma mensagem por trás, acho que pode não ter, mas a mensagem que eu passo é muitas vezes a de “dói-me”. Pelo menos neste álbum é um sentimento que prevalece, é algo que não me é fácil.

Existe aquela crença de que um artista atormentado não pode deixar de o ser em prol de criar as suas melhores obras ou conseguir criar de todo. Concordas com essa crença? Padeces da mesma? 

Eu acho que a arte é muitas coisas e de facto há muitas obras que foram feitas na ressaca dessas dores ou situações assim mais marcantes. De certa forma, é verdade que me identifico com isso, mas não significa que a arte tenha de ser só isso, porque também é verdade que é entretenimento e às vezes não nos apetece estar só a ouvir os problemas dos outros [risos]. Às vezes é preciso umas coisas mais leves, coisas que nos distraiam e acho que não deixa de ser arte ou não deixa de ter qualidade por isso. Eu consigo identificar-me nas duas coisas, acho que neste projecto fui mais por um lado, não significa que em outros não vá por outros lados, mas, sim, acho que é preciso ter uma grande capacidade para sofrer e transmitir isso, seja através de uma música, de uma letra, de uma escultura ou do que for. É preciso pensar muito sobre ela própria e isso é uma capacidade que acho que nem toda a gente tem.

Também nesta faixa “Brocken” introduzes a tua primeira colaboração do álbum, Bella Larbac, mas existe ainda mais uma, Denise, na “Green Flash”. Como surgiram estas colaborações? Já as conhecias anteriormente?

Sim, são duas amigas. A Bella é uma rapper do Brasil, nunca a conheci pessoalmente, mas já nos acompanhamos desde 2017, então sempre tivemos a vontade e fazer uma música juntas e achei que fazia sentido naquele tema ela entrar. Com a Denise também já a conhecia há vários anos, ela é uma pessoa que já faz música há muitos anos, canta sobre beats sobretudo de hip hop, é da velha escola do Porto e acho que também fazia sentido entrar, portanto são duas pessoas que eu admiro imenso enquanto pessoas e artistas.

Para o futuro, tens algumas colaborações de sonho?

De sonho? Todas! [risos]. Eu tenho muita coisa que gostava de fazer. Óbvio que gostava de fazer uma música com a Capicua, gostava de fazer uma música com o Slow J, amava, são artistas que eu admiro imenso. Gostava de fazer uma música com a Maro, que ganhou agora o Festival da Canção, não sei, há muitos artistas com quem eu gostava muito de colaborar, mas uma coisa de cada vez.



Ouves outros artistas para te inspirares ou obteres alguma influência?

Muitos. Lá está, estes que eu mencionei são três deles: Capicua, Slow J e Maro. Tenho muitos outros: a nível internacional, adoro a Nathy Peluso.

Ia perguntar, já que mencionas nomes de artistas que cantam em espanhol, se a frase “mi cama vacía” que dizes em “Aurora” seria uma referência a Kali Uchis.

Exactamente! É uma referência à Kali Uchis também. Sei lá, gosto também muito de coisas mais reggaeton, ouço muita música argentina, muito rap argentino, então podia também dizer alguns nomes: Trueno, Rels B também gosto muito. Gosto muito de hip hop e não só, então… ouço muito Xamã também, rap brasileiro.

“Aurora” é aquela música para quando batem aqueles sentimentos de uma relação falhada. Sentes que a música serve como terapia para ti? 

Escrever é, sobretudo, o meu processo terapêutico. Desde que aprendi a escrever que escrevo muito, nos diários, poemas e assim. Essa música da “Aurora” em específico é uma música que fala de uma relação que acabou e foi uma das últimas músicas do álbum a ser escrita e composta, porque eu já tinha essa música fechada, já tinha letra, já tinha beat, só que, entretanto, a relação acabou. Não me fez sentido nesse momento falar de uma coisa alegre quando eu não estava e foi muito difícil conseguir escrevê-la. Precisei de alguns meses de dor e de meio que superar para conseguir esquecer isso, então acho que é um processo terapêutico, mas leva o seu tempo, nem sempre é automático, porque muitas vezes também nos bloqueia e-

Se calhar reabre a ferida, não é?

É isso e quando estás a sentir aquilo com essa intensidade torna-se mais difícil, ou, pelo menos nessa música em específico, escrever sobre isso e ter esse distanciamento para escrever sobre isso.

Em “Green Flash” dizes: “Se eu me for amanhã, perdoa aquilo que fui hoje”. Tens alguns arrependimentos na tua arte?

Não, acho que na minha vida em geral até, arrependo-me de muita pouca coisa, porque acho que é sempre bom errar. Essa música da “Green Flash” é uma reflexão mais sobre a morte, que também é um tema que me apoquenta imenso e acaba por girar mais em torno desse medo, algo que me assusta, mas não tenho assim algum arrependimento.

Expões também o assunto relativo ao Instagram ser uma mistura de exaltação e farsa. De um ponto de vista de uma artista, em termos de prós e contras, qual achas que sejam os maiores contras no que toca à divulgação e promoção pessoal nesta era predominantemente tecnológica?

Há muitos prós, sem dúvida, contras…[risos] Há sempre aquela linha ténue entre aquilo que tu dizes e a interpretação do outro e se as pessoas interpretarem aquilo de uma certa forma e te julgarem consoante aquilo que tu disseste, num determinado momento, corres o perigo do cancelamento [risos].

A tal cancel culture. Achas que é nociva?

Ai, é muito nociva. As pessoas têm de entender que nós somos muitas coisas e vamos sendo ao longo da vida e aquilo que eu disse hoje amanhã pode já não fazer sentido. Isso não significa que não devemos ter responsabilidade naquilo que dizemos e na forma como dizemos, que acho que também devemos ter, sobretudo as pessoas com mais visibilidade, mas isso é o que eu acho, também quem sou eu para impor ao outro esse tipo de coisas. E acho que é um perigo, porque se as pessoas interpretarem aquilo de uma forma muito agressive corres o perigo de a partir daí escalar para ameaças e cancelamento. Depois se uma pessoa diz aquilo, então tudo o que ela faz é horrível e não é válido, quando é preciso ter alguma cautela e pode ser uma situação muito má a nível psicológico. Não é fácil de encarar que de repente milhares de pessoas ou centenas estejam contra ti a dizer coisas horríveis, portanto acho que todos nós devemos também ter cuidado quando decidimos falar do outro publicamente.

Dois detalhes curiosos acerca desta obra é que para além de falares espanhol em algumas músicas, também existem duas faixas com uma vibe mais rock. Porque é que isto acontece? Tens um amor especial a esse género musical e a essa língua?

O espanhol apareceu há muito tempo na minha vida, falo espanhol fluente, fiz Erasmus em Espanha e metade dos meus amigos são espanhóis. Essa relação que falo em “Aurora” era com uma pessoa de Espanha, então acaba por ser um país que visito frequentemente e está na minha vida, por isso expresso-me muito em espanhol e passo metade dos meus dias a falar espanhol e a ouvir. Obviamente consumo muita coisa feita em espanhol, essa parte vem daí. Depois relativamente a beats que possam ser mais rock, acaba por ser também essa mistura de que estava a falar inicialmente, acho que actualmente podem-se misturar estilos de forma a ficar algo realmente bom e aí é uma coisa simplesmente que eu gosto. Não que eu ouça só rock, não que eu ouça só rap, mas são coisas que eu gosto e coisas que eu queria explorar.

Voltando a um dos assuntos prioritários neste álbum, as últimas faixas voltam a trazer com grande impacto um discurso feminista, contando até com vários samples de alguns discursos ou canções alusivas ao assunto. Como escolheste esses samples?

O sample que eu utilizei na “Halo” foi retirado de uma conversa de um podcast no YouTube, já não sei qual, mas quem falava era a presidente da UMAR, que é uma associação de mulheres e achei interessante a conversa e que era algo que encaixava naquela música. Depois o sample na “Cinturão de Vénus” é uma interpretação de Lena D’Água de uma música de José Mário Branco, em que fala no fundo sobre a quase submissão das mulheres e sobre o espaço privado ser só das mulheres e o espaço público não, então achei que fazia sentido colocá-los ali.

Consideras também que este é um bom mecanismo para passar a mensagem e tentar “educar” quem possa ouvir?

Sim, porque acho que é informação, são outras pessoas a falar. Óbvio que temos de fazer isso sempre com alguma cautela e algum respeito, no caso da Lena D’Água, por exemplo, pedi-lhe directamente se podia utilizar, ela foi super querida. Acho que quando faz sentido e se for para somar, só tem coisas boas.

Ainda na “Halo”, mencionas a possível crítica: “Nunca vais ser como a Capi” e exploras a ideia de que já era bom se conseguisses ser a Mary, ou seja, seres tu própria, autenticamente. No que toca a mulheres no hip hop, sentes que há mais apoio ou competição?

Há mais apoio sem dúvida e quem diz o contrário tem de se informar [risos]. Quando as pessoas descobrem que eu faço rap ou ouvem as minhas músicas, a primeira coisa, logo, é elas próprias colocarem essa comparação: “Ah, vais ser como a Capi” ou “Tu és melhor que a Capi” ou “Não ‘tá tão bom como a Capi” e isso para mim… oxalá um dia, seria um sonho conquistar tudo aquilo que a Capicua fez, é uma referência para mim, uma pessoa que eu adoro, com quem eu me dou bem, mas quer dizer, também quando o Slow J apareceu ninguém estava a compará-lo assim ou a dizer que ele ia ser como x ou y. Acho que isso é uma coisa que com os homens não acontece, porque eles são muitos. Não existe só um lugar para as mulheres e é isso que nós temos de trabalhar todos os dias.

Relativamente às mulheres no rap, há várias, há um grupo que se chama Hellas e são vinte mulheres que vão fazer agora um álbum, no qual eu também participo. Somos todas amigas, partilhamos todas experiências, vivências e então acho mesmo que as pessoas que dizem isso sobre as mulheres são as mesmas que competem entre si e que não se valorizam. Acho mesmo que não é verdade e que as pessoas devem informar-se melhor antes de falar.

Na “Cinturão de Vénus” é feita também uma crítica social muito acentuada e podemos inclusive ouvir frases como: “Já passámos a fase em que era insulto ser gay” e “A realidade da mulher não é a do porno, nem dos raps”. Acreditas que é possível uma mudança mais acentuada relativa à glorificação e uso extremo deste tipo de assuntos nas músicas de hip hop? Por onde passa essa mudança?

Eu quero acreditar que a mudança passa por falarmos mais e mais abertamente sobre isso e sobretudo nós, mulheres, falarmos mais sobre isso. Porque é um assunto que nos toca diretamente, então chega sempre um determinado momento em que precisamos de dizer “calma.” É isso, a vida da mulher não é aquela que está predominantemente nos raps, não é aquela que está na porno[grafia], é muito mais do que isso e é muito pouco disso. Relativamente à outra frase, é sempre, enfim. Se o rap é machista? Acho que sim. Acho que é só ouvir algumas músicas. E homofóbico, o que é que não é? É quase tudo, então também entra muito no rap como insulto, palavras como “maricas”, esse tipo de linguagem. No fundo é dizer que isso é uma mensagem que tem sido passada ao longo de muitos anos, mas que não é por isso que eu agora tenho de aceitar e tenho de usar isso como a minha verdade, porque não é. E se eu tenho esta pretensão de mudar alguma coisa, acho que pode começar por aí.

O que queres trazer de inovador para o hip hop português? Como achas que te destacas? 

Neste primeiro projecto e mesmo eu enquanto pessoa, como estava a dizer, tenho sempre essa pretensão de querer fazer do mundo um lugar um bocadinho melhor, deixá-lo melhor do que estava quando o encontrámos. Sei que o mundo não é um lugar tão fácil para as mulheres, para as pessoas negras, para as pessoas que não cumprem a norma da sexualidade predominante, então acho que essa é uma luta interior que eu tenho e acabo por espelhar nas músicas. Posso trazer obviamente essa visão e sobretudo esse espaço seguro, se as pessoas quiserem ouvir a música, se as mulheres quiserem ouvir músicas e não se sentirem desvalorizadas ou se as pessoas da comunidade LGBT quiserem ouvir música e não se sentirem destratadas. Mais do que ouvir Máry M, podem ter a certeza de que não sou uma pessoa que dissemine esses estereótipos na minha vida pessoal e é possível fazer rap sem isso, completamente possível. Não falo só de mim, há várias pessoas no hip hop e em Portugal que o fazem, mas acho que ainda há muita contracorrente.

Tens um carinho especial por alguma das faixas?

Tenho um carinho especial por várias. Tenho um carinho especial pela “Aurora”, porque foi uma música que acompanhou um processo muito pessoal, em que eu estava a passar pela rotura de um relacionamento, como expliquei. Nessa música participaram vários músicos, nomeadamente quem compôs a música foi o Philippe Marques, que é um pianista português, houve um violinista e violoncelista que participaram também e eu fico sempre muito emocionada quando essas pessoas aceitam participar nesses projectos. É uma música que mete também canto lírico, no refrão, algo que não é muito comum, então acho que por todas essas razões tenho um carinho especial por essa música.

Quais serão os teus próximos passos? Onde gostarias ainda de chegar?

Acho que o meu principal obcjetivo neste momento é conseguir ser consistente, porque a última música que eu lancei foi em 2019, portanto já foi há algum tempo e sei que a música é uma coisa que obriga a uma determinada constância, algo que eu não consegui dar até este momento. Para mim, passa por isso e por sentir que estou a melhorar a nível de escrita, a nível de interpretação, sobretudo, esses são os principais objectivos.


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