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Fotografia: Ronaldo Land
Publicado a: 28/12/2022

Samba no pé (e de fé).

Marcelo D2: “Não acredito que o Lula tenha a chave do paraíso, mas ele tem a saída do inferno”

Fotografia: Ronaldo Land
Publicado a: 28/12/2022

Aos 55 anos, Marcelo D2 está na flor da idade. Inquieto, ele se juntou novamente aos parceiros do Planet Hemp (BNegão, Formigão e Nobru) para fazer um retorno depois de mais de 20 anos. De forma quase unânime, Jardineiros surpreendeu a todos por mostrar que a banda ainda tem muito para queimar (literalmente). Mas antes deste, D2 já havia concluído o seu próximo disco solo, previsto para fevereiro de 2023, que dessa vez dará protagonismo ao samba — podem ouvir e ver o videoclipe de uma prévia no Facebook do músico.

Algumas dessas músicas inéditas já têm sido mostradas ao público brasileiro no Samba do D2, e também estarão presentes no repertório dos dois concertos que o artista fará em Portugal em conjunto com o coletivo Bamba Social nos dias 26 e 27 de Janeiro, no Hard Club e Casino Estoril, respetivamente. Essa parceria de Marcelo com os Bambas não é novidade. Em 2018, eles gravaram o single Cadê Cascais”, que faz parte do álbum Na Fé (2020). Agora, em formato de roda de sambas, D2 e os Bamba Social fazem um Pré-Carnaval com clássicos do samba e seus novos sons.

Na conversa rápida e objectiva que tivemos via Zoom, numa tarde do estranho verão brasileiro – em que o frio se fazia presente –, Marcelo D2 adianta detalhes do que virá no seu projeto dedicado ao samba, a volta explosiva do Planet Hemp, as apresentações que fará em Portugal, ancestralidade e o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo, após quatro anos complicados, principalmente para quem vive de arte. (Vale lembrar que o rapper, sambista e diretor de cinema foi um dos que mais se opôs ao presidente atual, publicando críticas constantes no Twitter e principalmente nas suas músicas – o disco do Planet mostra muito bem isso).



Mais de 20 anos depois, o Planet Hemp faz seu retorno com o álbum Jardineiros. Por que decidiram voltar só agora?

Ah, cara! Meio que estava decidido que a gente nunca mais ia fazer um disco do Planet Hemp. Mas, sei lá… depois desses últimos anos, da ascensão da extrema-direita no país, a gente tinha tanta coisa pra falar, tanta discussão sobre esse assunto e queríamos participar como cidadão. Enquanto Planet, a gente estava muito a fim de falar sobre isso também, de dar nossas opiniões… foram momentos tão difíceis no país. Acho que era um momento do qual a gente estava a fim de participar. Então, saímos daquele lugar de nunca mais fazer som juntos, para um lugar de vamos participar dessa conversa, vamos dar nossa opinião. Foi incrível fazer tudo de novo, de escrever com o BNegão, de fazer um disco de banda, que é algo que não faço há mais de 20 anos, né, cara!? Nesses últimos 20 anos de carreira, eu só tenho feito trabalhos solo. Então, dividir o processo criativo foi bem interessante também. A gente começou achando que teríamos que fazer um álbum de guerra, mas acabamos concluindo que precisava fazer algo de amor, tá ligado!? Um disco sobre cuidado, por isso Jardineiros, sobre plantar, semear, cuidar pra poder colher. Mais do que fazer para o público, a intenção era fazer pra gente mesmo.

É também uma forma de fazer uma conexão com o momento do Brasil, né!? Seja por causa das porradas que a gente vem tomando desde 2018, e da necessidade do amor, de geral se conectar com familiar, com os amigos. Estava todo mundo meio perdido, tanto pelo governo quanto por causa da COVID…

É, cara, quando eu decidi fazer música, desde o começo que me encantei e fui mordido pelo bichinho do rap, pela cultura hip hop, eu sabia que era quase que um ato de cidadania. A música pra mim é muito mais um ato cidadão do que para alimentar meu ego enquanto artista. Eu quero mais é participar do que está acontecendo no país. Vai muito além do que uma forma de expressão, tá ligado!? É essa coisa de acompanhar o que a gente está vivendo mesmo.

Esse é o papel da arte. Porém, muita gente coloca a arte num lugar exclusivo de admiração e acha que ela não tem esse papel de conscientizar, contestar, bater de frente e até mesmo ser militante.

Acho que a arte, cara, principalmente a música, que talvez é a arte mais consumida de todas as artes, pode ser qualquer coisa. Pode ser sua companheira naquele momento de tristeza, no momento de alegria… e como eu falo numa letra nova minha: “também se luta com uma canção”.

Nessa volta do Planet, você tem feito os shows da banda e também os seus solo, que novamente tem o samba como protagonista. Como é feita essa divisão de tarefas?

Quando a gente fez o [álbum] do Planet, eu já estava com o meu disco de samba pronto [que vai sair em fevereiro]. Eu não parei de fazer show, mas a gente deu uma atenção a mais para terminar o disco da banda. O Planet Hemp ainda é um projeto paralelo, sabe qual é!?. Ele não é mais a prioridade na minha carreira, mas é uma parada que é a minha vida. Talvez essa falta de vontade de fazer algo novo, antes desse, era isso: a gente gosta tanto da banda que nem queria mexer nela (deixa ela quieta aí). Mas acho que fizemos um trabalho à altura dos que foram os outros três primeiros. Esses dois pesos me completam muito… já que eu estou indo mais para o samba, eu tenho o Planet Hemp como um lugar de batalha. Já o samba é um lugar de conexão com a ancestralidade. Eu comecei a fazer esse show de samba faz uns quatro shows atrás, não avisei muito ninguém (tá ligado!?)… as pessoas vão lá achando que vai ter um show do Marcelo D2 de rap, mas chegam lá e tem uma “porrada” de samba na cara. No meu caso, o samba ainda está colado no rap, porque não tem como eu tirar o rap da minha vida. Meus amigos sambistas (o Zeca Pagodinho, o Arlindo Cruz) falam que eu sou sambista. Então, esse projeto é um projeto de maturidade e de ambição artística, porque a minha vontade é de fazer algo relevante e que tenha a ver com a minha idade também, sabe!? Eu não me vejo cantando trap com auto-tune. Acho que vai ficar ridículo um cara de 50 anos fazendo trap com autotune, É maneiro o Matuê fazendo, o [Filipe] Ret, os moleques mais novos. Igual fazer dança no TikTok… é maneiro pra caralho pra um adolescente. Agora pra um homem barbudo, véio, eu acho ridículo. Isso tem tudo a ver com a minha vontade de fazer alguma coisa que seja relevante. Nesses últimos anos foram momentos de reflexão para todo mundo. Quem perdeu a oportunidade, quem não mudou, quem não se planejou para uma mudança ou afirmou o caminho, perdeu uma grande chance, porque a gente teve períodos duros de muita incerteza. Eu planejei o meu futuro, os meus próximos anos, e ele está no samba.



Seja qual for o projeto, você sempre traz uma inovação. Cada disco que você faz vem com algo diferente, como em Assim tocam os MEUS TAMBORES, que trouxe o público para participar… Agora, qual é o direcionamento desse próximo de samba?

Cara, basicamente… eu falo que o conceito dele é ancestralidade de futuro. Ele é a minha vontade de conectar o passado, o presente e o futuro. Como diz o [Luiz Antônio] Simas, um parceiro meu… ancestralidade é algo que está aqui neste momento. O que ficou no passado é passado. Ancestralidade é o que vejo aqui… é esse teu corte de cabelo, é o meu corte de cabelo, é a nossa comida, tá ligado!? Isso é o que vai nos levar pra frente. Nós somos um povo de muita sabedoria, e a nossa tecnologia é diferente. Não é uma tecnologia fria. Toda essa expertise do que a gente entende como tecnologia vem dessa ancestralidade mesmo, das coisas dos orixás, dos nossos antepassados, do conhecimento que a gente traz. E não podemos negar isso. Acho que é uma burrice a gente negar isso e não passar pra frente. Falando naquela coisa de por que eu estou aqui, por que estou aqui falando com você, por que estou aqui há 30 anos fazendo música, por que disso tudo? Acho que eu tenho uma missão, e minha missão é instigar essa conversa. Não sei qual é a sua idade, mas tu deve ser bem mais novo que eu…

Estou na casa dos 35 anos…

Você é 20 anos mais novo do que eu. Então, o teu papel agora como um cara de 35 é vim até mim com 55, e a gente conversar sobre isso pra quando tu tiver 55 falar com um de 35 e assim vai a vida, tá ligado!? É assim que a gente vai sobreviver, deixar o nosso legado, construir um mundo melhor para os que vêm atrás. A gente tem esse papel, que é muito importante. O interessante é que com 20 anos eu não tinha a mínima ideia do que isso representava. Com 35 eu comecei a pensar, e agora com 55 eu tenho total certeza desse caminho. É por isso que eu estou indo para o samba, porque ele representa tudo isso. Eu não estou aqui negando o rap, muito pelo contrário, eu amo cantar rap e vou fazer isso para o resto da minha vida. Mas quanto mais eu me aproximo do samba, mais me aproximo da nossa história.

E o samba está no seu DNA. Não tem como separar o Marcelo D2 do samba. O interessante é que você também consegue caminhar entre o rap e o rock de uma forma tranquila e mantendo sua identidade.

É, cara, eu fui criado dentro de todos esses ambientes, tá ligado!? Tem uma amiga minha que fala uma coisa que sintetiza muito o que a gente está falando, que é a parada de você usar a camisa de uma banda. Ela fala: você não pode usar a camisa de uma banda se você não conhece. Você tem que usar a camisa da banda se você conhece, ouve… porra, que palhaçada você botar a camisa de uma banda só porque é hype. Você tem que ouvir e se conectar. Eu fiz isso e me conectei. Eu nasci no samba, porque minha família fazia isso em casa. Quando era adolescente, eu fui para o rock e punk rock, skateboard, depois eu conheci o rap. Então, pra mim, tudo isso é um lugar muito natural.

Toda essa estrutura do show do Samba do D2, você também vai levar para as apresentações em Portugal com o Bamba Social?

Sim! O Bamba Social é um coletivo de artistas, pelo menos eu vejo assim. Então, eu quero chegar nesse ambiente e ser mais um artista ali dentro. Tudo bem que nesses shows, eu estou indo para fazer minhas apresentações e o Bamba será a banda de suporte, mas eu quero que essa relação se alimente muito mais e que daqui a pouco eu seja um artista ali dentro. Toda essa coisa que falei de ancestralidade, eu falo desde 2003: a procura vale mais do que a batida perfeita. Então, para mim ir para Portugal e tocar com esses caras é sensacional. Ver essa galera que está fazendo samba aí é quase que um lance antropológico. Os portugueses vieram para o Brasil e depois o samba vai para Portugal, tá ligado!? É tão interessante ter essa ligação. Por outro lado tem aquele peso, porque eu vou mostrar o samba para os portugueses, mas também vou levar um pouco do Brasil para os brasileiros. Eu imagino o quanto deve ser difícil morar fora do país, estar longe das raízes, longe da comida… mais do que música, eu quero que essa experiência seja sensorial mesmo, de cheiro da comida da avó, do sol da praia do Rio, do clima de subúrbio do Rio de Janeiro. É tudo isso que a gente vai tentar passar um pouquinho nesses show.

A procura da batida perfeita nunca acaba… Você vai por um caminho onde vai descobrindo coisas novas. Fazendo uma comparação com a nossa realidade, o que esperar do futuro que nos aguarda com um novo governo. É também uma busca constante por algo melhor?

A utopia é necessária. A gente está vivendo agora numa distopia. Tudo o que a gente mais odeia é o que estamos vivendo agora nesse país. A utopia é muito necessária. Essa procura já é a felicidade, porque se você acorda todo dia e pensa que vai construir um país melhor, é muito diferente de você acordar todo dia e falar assim: “caralho, eu não posso morrer, eu tenho que sobreviver”. É muito diferente. Então, eu acho que o governo do Lula [presidente eleito do Brasil] traz essa utopia, é essa esperança de um mundo melhor. Eu não acredito que o Lula tenha a chave do paraíso, mas ele tem a saída do inferno. Então, o que se propõe daqui pra frente é a busca por esse mundo utópico. Eu acho que a gente nunca vai ter um mundo perfeito. Somos sobreviventes desse lugar, mas se temos essa esperança, de cada dia uma conquista ao invés de ser cada dia uma sobrevivência… de tu chegar em casa todo dia pra dormir e saber que construiu alguma coisa para um mundo melhor é muito diferente. Acho que o Lula traz isso pra gente. É por isso também que estou querendo fazer samba, tá ligado!? Eu já passei por algo parecido (você talvez não porque é mais novo) quando acabou a Ditadura Militar. Foi na época que comecei a fazer música e a gente tinha essa esperança, e melhorou. Da Ditadura até 2016, quando teve o golpe [contra a presidenta Dilma], a gente teve um país que era próspero. A gente viu a emprega doméstica indo pra Disney, os negros na faculdade… a gente teve um país próspero e é sobre essa melhoria que a gente está falando.


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