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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 25/10/2023

Bendito encontro a fechar a 21ª edição do certame.

Lotte Anker & Gabriel Ferrandini no Festival Jazz ao Centro’23: a sorver a hora dourada

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 25/10/2023

Tudo conjugado para o inolvidável: o derradeiro concerto da 21ª edição do Festival Jazz ao Centro — Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra; o encanto das madeiras do cavername do telhado; final de tarde de Sábado; dois músicos na candura do primeiro encontro; o som orgânico do concerto em acústico. 

Gabriel Ferrandini, em entrevista recente concedida a este mesmo espaço, referiu-se à vontade, já de há anos, em tocar com Lotte Anker: “Disse para mim: ‘É mesmo desta vez e tem que ser duo, aquela cena de não ser uma banda.’” Gizados os planos, aconteceu mesmo o desejado. Depois de uma estadia no espaço de residências artísticas da Osso na Aldeia de São Gregório (Caldas da Rainha), onde viveram em 3 dias a música um do outro, em diálogo, a chuva e o vento da intempérie e a praia mais perto. Saíram dali para partilhar em duo com o publico do Teatro do Bairro Alto em Lisboa e do Centro de Artes Visuais em Coimbra.

Anker é uma versátil saxofonista dinamarquesa, com larga experiência em diversos agrupamentos de música jazz improvisada e experimental. Mantendo actividade em duo (com o guitarrista Fred Frith), trios (com o pianista Craig Taborn e o baterista Geral Cleaver ou com Sylvie Courvoisier ao piano e Ikue Mori na bateria) ou ainda em quarteto com Johannes Bauer (trombone), Clayton Thomas (baixo) e Paul Lovens (percussão). Fez parte da programação do Festival Jazz em Agosto em 2017, onde Ferrandini terá feito juras de vontade a si próprio para que um encontro musical com Anker um dia tivesse lugar. Poderia de igual razão a história ser ao revés, Ferrandini tem tocado muito (e bem) e o seu baterismo é hoje uma atraente e cativante música a ter sempre em conta. O seu disco a solo Hair of the Dog é um esticar dos limites de onde nos pode levar uma bateria, enquanto que nas prestações em concerto se apresenta a “desconstruir a bateria imerso na escuridão”, como no título da crónica de Rui Miguel Abreu a um desses momentos.

No palco rés-do-chão, um trio de saxofones (soprano, alto e tenor) em repouso e uma bateria anexa a uma miríade de pequenos gongos de mão e outros elementos ressonantes numa plataforma. Tudo a pedir “toquem-me!” A sala encheu-se em igual demonstração de vontade, para ver e ouvir. Anker ocupa-se do saxofone soprano, Ferrandini invariavelmente da bateria e partem em viagem sonora. Do soprano sai um vozear que convoca e, por instantes, lembra o duduk dos confins da Arménia. Neste arranque, os instrumentos em diálogo tacteiam-se, concedem pequenas pausas intermédias numa apresentação mútua e cortês, mas em toada crescente de intensidade, demonstrando a cada nota o encaixe cada vez mais cúmplice. Avançam em frases sucessivas de inebriante beleza na palheta de mão dada às baquetas incessantes em polirritmias desmedidas. Depois a descida a notas suspensas são prenúncio de uma chegada desde o saxofone. Anker toca o soprano com desmesura, conhecendo onde se esconde cada som pretendido na mesma medida que Ferrandini o faz com as peles da sua bateria — revela-se em ambos a entrega absoluta ao instrumento, são consonâncias no conteúdo e na forma, suores de intensidade.

Duas peças de improvisação na mudança de luz, a do final do dia permeando-se aos poucos pelo foco rubro da sala. A golden hour estava em curso, e aqueles dois músicos também. Anker faz chegar às mãos o maior dos 3 saxofones em cena, o tenor. Envelhecido, nota-se a patine do tempo sobre o metal. Anker de tenor amparado no corpo pelo regaço e de cotovelo assente nos pés entrecruzados faz lembrar na figura a divindade hindu, Ganesha, símbolo de novos começos e sabedoria, nem de propósito ao ali vivido. A música passa para um lugar curativo, numa acção de carácter mais exploratória, quer pelo manuseio das chaves do tenor, ou até pelo som directo da palheta ao corpo do instrumento, quer pelo emprego do arco de cerdas utilizado na campânula, a convocar o ressoar do metal. Da bateria chegam também ondas mais exploratórias e o recurso aos gongos de mãos é frequente, com súbitos desvios do gongo após o toque, criando um efeito ondulatório estilo doppler e acrescentando dimensão e encanto ao lugar. Também nas mãos sábias de Ferrandini as peles são levadas a esticar mais, impostas sucessivas pressões com os mesmos gongos em acção modular ondulante, também surgem caixas de ressonância de madeira na convocatória. Cada som nesta peça tem um propósito e desperta a curiosidade do saber de onde saiu, e há cabeças a esgueirarem-se, na medida do possível, para ver o som. Parecia um fim a chegar ao concerto, porém havia uma pista reveladora de uma peça mais, afinal ainda havia um terceiro saxofone que não tinha sido usado, o alto ainda repousava ali deitado ao lado direito de Anker. Voltam à cena e a suspeita confirma-se, Lotte recorre ao saxo alto para o que ainda havia de música para ver e ouvir. Adolph Sax (1814-1894) inventor do saxofone, haveria de ter gostado de estar ali, perante alguém que num mesmo concerto tocava 3 das 4 variantes do instrumento. E foi ver Anker na sua praia, talvez na da Foz do Arelho (quem sabe?), a manusear sabiamente e com destreza as chaves do alto, em cadências que convocavam à dança dos sentados. 

E quando, como neste encontro, “o nosso chão tem sonhos e vontade”, como escreve e canta A garota não a Zé Mário Branco, caminhamos agradecidos e rendidos aos sonhadores de vontades de fazer tais encontros nestes Encontros de Jazz.


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