Baterista e compositor de mão-cheia, Gabriel Ferrandini tem uma brilhante e prolífica carreira no campo do free jazz e da música improvisada. Para além de diversas colaborações com ilustres nome das mais exploratórias vertentes do jazz, de entre os quais se podem destacar músicos como Alexander Von Schlippenbach, Axel Dörner, Evan Parker, John Butcher, Nate Wooley, Peter Evans, Sten Sandell ou Thurston Moore, o baterista é também membro dos afamados Rodrigo Amado Motion Trio e Red Trio, formações portuguesas, de projecção internacional, ambas instâncias da mais sólida e experimentada improvisação livre de faceta jazzística que se faz em terras lusas.
Mas não só nesta dimensão de improvisação tem o músico lisboeta desenvolvido a sua actividade criativa. Porventura o primeiro indício de ruptura com a “liberdade e energia” da música improvisada tenha mesmo ocorrido em Volúpias (2019, Clean Feed Records), trabalho que, resultando de uma residência artística de um ano na Galeria Zé do Bois, traça tangentes com o jazz dito tradicional, inserindo referências desse mundo numa estrutura também moldada por visões impressionistas e minimalista. Já em Hair of the Dog, registo a solo agora lançado como número primeiro da estreante CANTO, a ruptura é (quase) total, sendo fundamental ir ao âmago das motivações e percepções do autor sobre a sua própria obra para melhor a compreender.
Hair of the Dog é, portanto, um álbum insulano na carreira de Gabriel Ferrandini, o qual habita uma geografia musical singularizada, ligada apenas por um istmo à tradição contemporânea e electroacústica. Sobre ele pairam cirros de densa carga emocional, os quais formam uma intersticial teia diáfana, que permite, de entre as várias imagens alegóricas que dele emergem, o vislumbre do iluminado facho do legado de Carlo Gesualdo, do qual bruxuleia tanto a vida como a obra do veneziano. Hair of the Dog é, assim, o paliativo do dia seguinte, um trabalho íntimo sobre construção e destruição, lucidez e ebriedade, motivação e apatia, ego e sombra, vida e morte, desespero e esperança, amor e ódio; ou sobre todas as relações dicotómicas (e todas as infinitesimais discretizações que, separando dois pólos, as constituem) que tecem o tecido fibrilar que estabelece o complexo vínculo de alguém consigo mesmo, de um artista com a sua obra.
Em entrevista ao Rimas e Batidas, Gabriel Ferrandini falou sobre a história subjacente a este seu novo trabalho a solo, o qual se esboçou ao longo dos últimos cinco anos, num percurso antes movido a motivações poéticas do que a fitos de exploração musical. Além de traçado o percurso de criação desta obra “radical”, foi também discutida a sua significação, as (possíveis) influências que moldaram o seu desenvolvimento, a relação do músico com o selo que a cunha, e o enquadramento das suas apresentações ao vivo. Para terminar, foi apontada mira ao futuro para brevemente discutir os seus próximos planos.
Numa conversa que, amiúde, por virtude da natureza da obra que a motivou, resvalou para a filosofia e reflexão, Ferrandini revelou-se um criador distinto. Assim, consciente do fojo que abraça a estética pura, o músico esculpe com recurso a uma outra matéria – de génese emocional, poética e metafísica, poder-se-ia dizer, à falta de designações mais concordantes –, a qual tem potencial de se espraiar por um campo de acção que transcende o hermético domínio dos sons e suas (ou não) harmonizações. Afinal, a música não é só música, e Ferrandini, com uma demonstrada rica e eclética bagagem interior, sabe-o bem.
Recentemente lançaste Hair of the Dog, o teu novo trabalho a solo, lançado pela CANTO. Como tem sido a recepção deste trabalho e como é que ele tem maturado?
Ainda é um bocado cedo para perceber isso porque o álbum saiu há pouco tempo, mas é óbvio que já teve o seu espaço – aquele que pôde ter até agora. Para te ser sincero, acho que tem sido bastante overwhelming. É um trabalho muito diferente daquilo que tenho feito até agora, e as coisas do disco que eu fiz até hoje foram só ao vivo e, então, não estavam solidificadas num álbum. Tem sido super bem recebido. Sinto uma satisfação enorme. É raro sentir-me satisfeito, mas o feedback tem sido incrível.
Pode-se dizer que, em várias dimensões, este álbum rompe com alguma da música que tinhas vindo a fazer anteriormente. Tens tido uma carreira brilhante no campo do free jazz e da música improvisada. Em 2019, lançaste Volúpias, que não rompeu totalmente com essa estética, mas inseriu-a numa estrutura que tanto vai beber ao jazz dito tradicional como a correntes impressionistas e minimalistas. Já este Hair of the Dog habita nos campos da música contemporânea e electroácustica. Como se deu este processo de evolução musical?
Como disseste, venho do universo do jazz, do mundo jazzístico. Fiz o meu percurso normal de escola, académico, etc. Mas depois a parte artística de linguagem e criatividade que acabei por desenvolver na minha vida e carreira foi mais próxima do free jazz e da improvisação livre. Isso foi uma coisa que me ocupou e foi a minha escola. As Volúpias, depois de muitos anos a tocar aquela coisa do free jazz que tem muito a ver com liberdade e energia, fui eu a querer encontrar uma coisa com mais tensão e poesia, que não fosse só sobre fogo ou energia no vermelho. Depois, este disco é como se fosse um outro layer. Não digo que seja exactamente ir contra mim, porque isto é uma coisa que está dentro de mim. Este trabalho que tenho feito tem a ver com alguns pedais que uso na bateria e com ideias de tirar sons que habitualmente não ouvimos na bateria. Isso foi uma coisa que encontrei fora deste mundo do jazz e da linguagem jazzística.
Imagina, todos os instrumentos têm as suas virtudes e as suas limitações, e a bateria acaba por ser o instrumento que, por excelência, é team player. A bateria está ali, no fundo, para ajudar toda a gente. Isto foi uma maneira natural, que apareceu na minha vida e que eu resolvi desenvolver, não sei se de libertar a bateria, mas, pelo menos, de encontrar uma música que estava escondida dentro dela: o que está para além do ritmo e além daquelas coisas habituais de que estamos à espera, não só rítmicas, mas também tímbricas. Foi uma forma de encontrar uma maneira emocional de me ligar a estas coisas novas que descobri na bateria. Foi um processo, de certa forma, tão complicado, que eu nunca tive pressa de fazer este disco. O meu primeiro solo sério – que é na verdade onde tudo isto começa – já foi há quatro anos. E eu como tenho este espírito do jazz que encara o palco como um laboratório, resolvi que o importante era ir para palco e experimentar coisas novas, ver o que resulta e o que não resulta, pôr o som lá fora e mexer no material. Agora, depois de quatro anos com alguns concertos a solo importantes e com algum peso, finalmente lá cheguei a este sítio.
Como ouvinte, sinto muito essa vertente emocional que referiste. Aliás, quem ouve este álbum, sente que lhe está subjacente uma enorme e densa carga emocional, a qual emerge através da criação paisagens sonoras de grande tensão que colidem com expedições purificadoras, quase catárticas. Quanto é que deste trabalho é exploração sonora e quanto dele é uma viagem ao teu interior mais íntimo e pessoal? Consegues separar essas duas dimensões criativas?
Eu acho que na verdade é mais a segunda. Falaste de paisagens sonoras, as quais, para mim, são uma coisa que pode acontecer, mas é apenas uma consequência, nunca um ponto de partida. Na verdade, não tenho qualquer interesse em estar a fazer uma paisagem sonora. Aquilo que eu quero falar, e a única coisa sobre a qual eu poderia falar, mesmo caindo em erro – mas pronto, lá está, é aquilo que eu tenho –, é, no fim de contas, falar sobre mim, sobre a minha dor, a minha fé, a minha esperança, o meu desespero. É sobre isso que eu estou a tentar falar. Ao mesmo tempo, tenho este instrumento que é um instrumento primordial, antigo – o ritmo é uma coisa que é muito natural a nós, seres humanos –, o qual também tem o seu lado incompleto, sendo muito complicado emocionalmente: se tocar um acorde maior, menor, diminuto ou aumentado, tu consegues logo dizer-me qual é o mood, se é uma coisa que é mais para baixo ou para cima; mas bater num prato ou numa tarola é uma coisa que emocionalmente é muito difícil de decifrar. Já as Volúpias tinha sido um processo emocional – por isso é que é um disco meio baladeiro. Depois de todo o trabalho que tinha estado a apresentar, que era uma coisa muito forte, violenta, até, este álbum sou eu a procurar essa tal poesia. Apesar de plasticamente ser diferente, acaba por ser a mesma coisa, tanto que depois fui buscar as vozes do Gesualdo, os sopros que escrevi para uma peça em Madrid, etc. A bateria está lá, está sempre presente, mas tem um papel narrativo – não há ali nenhum ritmo óbvio que dê para agarrar; é tudo bastante emocional.
E o interessante é que este álbum foi criado ao longo dos últimos cinco anos, estou certo?
Há duas maneiras de ver a coisa. O trabalho a solo, sério, começou a ser desenvolvido há quase cinco anos. Foi nessa altura que comecei a mexer com esta matéria, a tal coisa paralela ao free jazz e ao jazz que fui fazendo até agora. Depois, há a produção especifica deste disco, a qual tem menos tempo, muito menos, pouco mais de dois anos. Envolveu reunir o material, fazer edição, compor, fazer os arranjos; depois também tive um produtor a trabalhar comigo, o Miguel Abras. Nessa parte estamos a falar de pouco mais de dois anos.
Mas, no fundo, só agora é que desvelaste abertamente esta tua vertente musical. Para alguém que se encontra de fora, parece que a Caixa de Pandora foi aberta de repente, expondo ao mundo as tragédias humanas, bem patentes na música deste Hair of the Dog, mas também, claro, guardando sempre uma certa dose de esperança. Mas porventura esta não seja a melhor analogia. Consegues identificar algumas reminiscências desta sonoridade e abordagem em trabalhos anteriores ou consideras Hair of the Dog hermético em si mesmo?
É complicado porque tudo é um continuum. Estamos sempre numa linha. Quando fazemos um trabalho, olhamos para ele e até podemos sentir que é o melhor que podíamos fazer naquele momento, mas passado um ou dois anos já estamos noutra e, de repente, esse trabalho parece-nos pré-histórico. Acho que tudo o que fiz até hoje foi o que me trouxe aqui e, ao mesmo tempo, acho que não, pois há aqui qualquer coisa de groundbreaking no meu próprio trabalho, tanto que tive, como baterista, de me separar um bocado das bandas, da própria natureza puramente rítmica do instrumento. Há aqui muita coisa que acho que tive de pôr em causa e que tive que mudar. Lá está, é uma mistura, foi todo um processo até aqui. As Volúpias, por exemplo, foi uma espécie de carta de amor ao jazz, à minha escola, àquilo que eu aprendi com os meus colegas; fui eu a tentar devolver alguma coisa a esta história incrível que é a história do jazz, a esta cultura incrível, com este peso histórico feito de tantos nomes e heróis; as Volúpias foi a minha tentativa de devolver qualquer coisa à linguagem da qual tanto bebi. Já o Hair of the Dog está para ali sozinho, é uma coisa solitária. Se me perguntares que estilo musical é este disco, não te sei responder – aquilo não tem nada a ver com nada. Portanto, é um disco – pelo menos para mim, na minha carreira, nas minhas coisas – que acho que está ali num sítio estranho, diferente, bastante solitário, mas, de certa maneira, acho que é a coisa mais fiel que fiz até hoje.
Talvez daqui a uns anos consigas olhar para trás e ter uma perspectiva diferente, ver até que, se calhar, não é um disco assim tão solitário.
Pois, espero que sim [risos]. Espero que isto seja um início e não um fim, claro.
Os inícios da polifonia no século XII e XIII, com a escola de Notre Dame, estão evidentemente na base das inovações cromáticas e harmónicas introduzidas por Carlo Gesualdo no século XVI, as quais voltaram a ter expressão na música do final do século XIX e século XX, sendo Stravinsky, por exemplo, um dos nomes que se enamorou pela música do compositor veneziano. O que te levou a resgatar este compositor relativamente obscuro, quer na fama que tem, quer na vida que teve?
Há dois lados sobre essa questão. Na minha relação com Carlo Gesualdo, há primeiro um lado em que eu adoro a música, tão simples quanto isso. Acho aquilo maravilhoso, lindo, adoro! É algo que me persegue ao longo dos anos. Quando já acho que estou farto, volto a ouvir aquilo tudo outra vez. Ao mesmo tempo, a relação com Carlo Gesualdo tem a ver com a ideia deste disco. Conheces a expressão hair of the dog?
Não conheço…
Hair of the dog é um expressão anglo-saxónica que significa aquilo que tu bebes com álcool no dia em que estás ressacado. Pode ser qualquer coisa: cerveja, vinho, cocktails ou whisky. O próprio Hemingway tinha o seu próprio hair of the dog, e há hair of the dogs conhecidos, famosos. Neste disco, na verdade, o que interessa aqui é aquela ideia de que what kills you also saves you, de que há momentos e fases na nossa vida em que estamos presos em loops nos quais não sabemos se estamos bêbedos ou ressacados; não sabemos se há uma coisa que, se calhar, nos está a fazer mal, apesar de, às vezes, estar no buraco ser aquilo que nos permite encontrar uma luz e, noutras, estar muito confortável ser uma falsa sensação de segurança que também nos pode trazer apatia. Este disco para mim tem a ver com isso: libertar-me das convenções que são as normais da bateria e tentar quebrar com determinadas coisas. A verdade é que não estou a quebrar com absolutamente nada, mas dentro da minha pequena história é qualquer coisa.
Para mim, a grande questão do Gesualdo, à qual eu estou constantemente a voltar, é a questão da motivação. Porque é que ele, depois de matar a mulher e o filho e ir viver sozinho num castelo, continuou a compor? Apesar de ter lá uns criados, as pessoas já o consideravam meio monstruoso e, por isso, ele não tinha praticamente coros que iam lá cantar a sua música, e as igrejas também já não o aceitavam. Então, como é que tu tens um homem que está a compor para um coro e que nunca ouve a música que faz? Há este lado incrível, visionário e virtuoso de que ele foi capaz, mas a questão é como é que ele encontrou, dentro desta solidão toda, a motivação para inventar uma música completamente revolucionária e que ele nunca tinha ouvido? Dentro de toda aquela dor e desespero, há uma fé qualquer que o guiou para encontrar este ouro. Ele encontrou e descobriu aquela coisa maravilhosa e conseguiu inventar uma música linda de morrer, complicada e difícil, que ele nunca tinha ouvido. Se não fosse uma motivação e fé extraordinárias [,tal poderia nunca ter acontecido]. E isto está relacionado com o hair of the dog: bebemos uns copos, destruímos o nosso corpo e acordamos ressacados, mas há qualquer coisa de valioso que encontramos nessa experiência, nessa catarse, nessa destruição. Por isso é que às vezes, no dia a seguir, voltamos a beber um copo, porque, na verdade, não faz mal e até encontramos qualquer coisa aí de valioso e criativo.
É realmente um caso interessante porque a motivação do Carlo Gesualdo nunca poderia ser a ideia de um dia poder expor aquela música; teria de ser, talvez, o prazer de a fazer, mesmo estando mergulhado naquele desespero imenso…
Ele quase nunca ouviu a música dele! À partida, a música da fase mais importante, quando começam os madrigais, que é quando ele já está isolado, o Gesualdo ouviu aquilo duas ou três vezes na vida porque depois até os coros deixaram de lá ir. Como é que tu escreves uma música que nunca vais ouvir? É surreal…
E, além de Carlo Gesualdo, a quem mais estendes a mão neste novo trabalho? Um ouvinte externo, como eu, consegue encontrar pontos de contacto entre Hair of the Dog e o legado musical de figuras seminais como Xenakis, Stockhausen e John Cage. Mas porventura estes possam até já ser nomes um bocado longínquos. Há alguma referência que consigas classificar como importante para a feitura deste álbum?
Essas são pessoas que eu estou constantemente a consumir. Não posso dizer que não me influenciaram porque obviamente que o fizeram. Até nas Volúpias, pode parecer que não, mas há ali uma estrutura e uma componente conceptual que poderá ter sido influenciada pela carga muito forte associada ao impacto dessas pessoas no meu instrumento e na minha música. Se eu tirasse as vozes do Gesualdo, se calhar já nem sequer iríamos estar aqui a falar dele, mas a realidade é que o Gesualdo me influencia quase diariamente. Neste caso, como temos ali o exemplo táctil – está ali, está no disco! –, fica mais claro, mas não te consigo dizer de que maneira é que estas pessoas me influenciam. Agora, que elas estão constantemente na minha vida, estão. Dentro desses que falaste, um dos modernos que eu sou completamente viciado e que passo a vida a ouvir é o Morton Feldman, de quem até talvez dê para ouvir influência ali num sítio ou outro do disco, mas mesmo assim acho que não… O Feldman, da escola americana, é dos que eu passo mais tempo a conviver na minha vida.
Relativamente ao processo de composição de Hair of the Dog, foi este feito em tempo real, no momento da gravação, ou já tinhas escrito as peças anteriormente?
O que o disco é na verdade é um best of de quatro concertos a solo. Foram concertos que eu estruturei, apesar de muito abertos, porque mais de metade era baseado em improvisação. Os concertos tinham estruturas, movimentos e andamentos, mas nada realmente composto. Havia coisas que sabia que iam acontecer, mas nunca de que maneira, quando ou como iam acontecer. Era uma coisa bastante impressionista e radical ao mesmo tempo. Como tinha estas coisas gravadas, o que fiz foi revisitar estes quatro concertos, retirar aquilo que achei melhor e, por fim, compor a partir daí. Portanto, fiz uma espécie de um arranjo a partir de material que já tinha. Nessa medida, é um disco que não existe: tiro um pouco daqui, um pouco dali… A segunda malha é a que tem mais composição porque estive numa residência em Madrid, no Matadero, e aqueles sopros que se ouvem na segunda malha vêm de uma composição que escrevi para três sopros. Mas o disco no geral é uma espécie de revisitação de quatro concertos que dei, e nessa revisitação faço uma espécie de best of. É basicamente eu a tirar o que acho que funcionou melhor, mas criei obviamente uma nova narrativa para cada música: pus o Gesualdo numa, puxo mais os pratos ali, os sub-graves aqui, etc. Mas tudo aquilo que se ouve no disco fui eu que toquei, nada daquilo é efeitos ou pós-produção. O que pode existir é enaltecimento de certos microfones nesta parte da bateria ou amplificadores, mas tudo o que se ouve ali foi feito por mim e pela bateria.
Achas que esse processo de composição em tempo real, por ser menos premeditado e, portanto, mais intimamente ligado aos processos naturais e incontornáveis da tua psique, permitiu explorar a sombra de que falava Carl Jung e que é referenciada em notas de apresentação de Alex Zhang Hungtai? O ego aparece sempre, quer queiramos quer não, mas a sombra é muitas vezes reprimida.
Pois, lá está, o próprio título do disco tem a ver sobre isso de que falas. É tudo um jogo: sou eu? Será o meu ego? Será a minha sombra? Às vezes somos uma sombra de nós mesmos, às vezes somos comidos pelo próprio ego… e este loop, este ciclo, este jogo, é aquilo sobre o que estou a tentar falar. A primeira malha chama-se “Anjo Solidão”, e eu chamo-me Gabriel, que é o nome do arcanjo. “Anjo Solidão” sou eu sozinho, na minha solidão. A segunda malha chama-se “Naifa Diabos”, título referente ao Miguel Abras, que foi quem produziu o disco comigo. O São Miguel, que também é outro arcanjo, supostamente foi quem enviou o diabo para o inferno. E, portanto, eu, na minha solidão, encontro o Miguel, e é como se fosse ele que enviasse a minha solidão, o tal diabo, lá para baixo para a terra. É como se ele me ajudasse, resolvesse, fosse assim um herói e um amigo da minha própria história. Uma vez tendo sido a minha solidão, o meu diabo, enviado para o inferno, temos depois a última música que é o “Beginnings”. O álbum é uma espécie de confusão minha, uma falta de capacidade de perceber onde começa e acaba o ego, onde começa a sombra e onde esta acaba. Apesar de estar feliz e super satisfeito com o disco, no fundo sou eu à procura de quem eu sou, de quem é a bateria, do que quero da bateria na minha vida, e isso é uma coisa que às vezes está acima do meu ego. A própria bateria às vezes irá ensinar-me coisas sobre mim; eu vou morrer e a bateria vai cá continuar… é um jogo complicado.
A verdade artística é igual à verdade humana ou são entidades distintas?
Wow… [pausa]
Pode parecer que esta pergunta cai aqui do nada, mas vem no sentido de que este disco, tal como tu próprio disseste, também foi um processo de exploração íntima e pessoal. O que gostava de discutir é se a verdade artística que é apresentada tem correspondência com a tua verdade como ser humano, ou se, pelo contrário, achas que é impossível que isso aconteça a partir do momento que pode existir um fosso entre intenção e resultado. Por exemplo, Valéry dizia que a escrita é um “sacrifício de pensamento” porque escrever pára o pensamento devido a o tornar dependente de palavras para a sua expressão. Em termos musicais, esta ideia poder-se-ia traduzir na incapacidade de reproduzir no instrumento certas ideias e intenções…
Claro, mas, se não as consegues reproduzir, isso é quem tu és. Tu és essa falta de capacidade. Nós somos obcecados pelo potencial. Olhamos para uma pessoa e vemos o potencial, e se essa pessoa não estiver no seu 100% achamos que ela está a vacilar, que só está nos seus 80% de capacidade. Mas, se calhar, essa pessoa é essa falta de capacidade. A pessoa não só é o que é, como também tem o direito de não ser 100% incrível e de humanamente poder errar e vacilar.
Nesse aspecto, em relação ao que perguntaste, há uma coisa que cada vez mais me tem assustado e que eu demorei muito tempo a perceber e só agora começo a compreender quando leio coisas de certos pensadores ou falo com algumas pessoas mais sábias que estão a minha volta, que tem a ver com o perigo da estética. Penso que é aí que isto se aproxima da pergunta que me fazes. Durante muito tempo acho que pensava na verdade artística como uma questão estética, uma questão de criação de uma linguagem ou uma qualquer outra coisa conceptual. Mas percebi que há um perigo aí. A estética, na verdade, não interessa absolutamente nada. A estética é uma espécie de uma distração, é uma maquilhagem linda de se olhar, mas que funcionalmente não tem um verdadeiro papel metafísico ou poético. A estética é um vício que não nos resolve nada. Isto para dizer que a questão humana é que resolve, lá está, a tal verdade humana. Imagina, se calhar este disco pode não ser bonito ou funcional, mas se houver uma tentativa de estar o mais próximo possível daquilo que eu estou a tentar falar… Se calhar nem vou conseguir dizer o que quero, se calhar não tenho as ferramentas ainda para lá chegar, mas é tudo um processo. Se lá chegar, se estiver mais próximo do que estava ontem, isso já é uma verdade artística porque é isso o que eu como humano estou a tentar expressar, com todas as suas virtudes e erros. Se fosse uma coisa só artística, cai nesse jogo do estético, que é como se fossemos todos uns falsos escultores – estou para aqui a esculpir uma ideia, e então? É como se fosse uma colecção de gosto. O que é que interessa o meu gosto? Eu achar que isto é mais fixe e aquilo menos fixe. Mas o que é que interessa o meu gosto? O que interessa é aquilo que me dói e o que não me dói e como é que eu organizo isso no meu ofício.
Como surgiu a tua ligação à CANTO? É de alguma forma especial que o Hair of the Dog tenha sido o primeiro número desta nova editora?
A primeira vez que toquei na ZDB acho que foi em 2008. Eu fui o segundo concerto do Sérgio Hydalgo e, portanto, crescemos os dois juntos, cada um no seu mundo. Ele, como programador, envolvido com todos os géneros possíveis e imaginários da música, desde o maluco do laptop à Angel Olsen. O Sérgio de alguma forma sempre viu qualquer coisa em mim: percebeu que eu era maluco, que tinha ambição, energia, que sou um romântico. As Volúpias, que já são de 2017 ou 2018, são o primeiro pequeno monólito do nosso trabalho. Eu tocava muito na ZDB e ele acompanhou o meu trabalho. Depois, queria escrever o meu primeiro disco, queria fazer composições de jazz, mas não tinha coragem de escrever logo um disco, então queria uma residência para me poder reorganizar, estrutura e experimentar, e o Sérgio disse logo que sim. Para nós foi incrível. Eu fiquei super feliz e o Sérgio também – o disco foi super bem aceite! Quando esse trabalho ficou finalmente solidificado e veio cá para fora, penso que ganhou uma cara própria. O Sérgio então propôs ser o meu manager. Ele disse-me: “Gabriel, acredito no teu trabalho e quero estar contigo nele, quero ajudar-te, quero discuti-lo, quero estar contigo nisto”. Entretanto, começou a ser desenvolvido o trabalho a solo, o qual eventualmente foi parar a este disco, e o Sérgio sempre me incentivou muito a continuá-lo. Não que ele não goste de jazz ou não se identifique com as bandas com que eu toco, mas eu acho que o Sérgio sempre viu qualquer coisa neste trabalho que o fascinou, que ele acha que é diferente, que não há ninguém a fazer, que há uma linguagem nova a ser explorada. Dentro da minha força, também tenho as minhas inseguranças, e o Sérgio ajudou-me muito, além de propor e expor-me a situações novas: levou-me para a Alemanha, ao Matadero, fiz residências, arranjou-me condições – tudo coisas importantes para desenvolver este trabalho. O Sérgio sonhava já há muito tempo com uma editora, porque acho há qualquer coisa nos concertos que começou a ser pouco para ele. Um concerto tanto pode ter uma coisa maravilhosa de comunhão de ritual, que é uma coisa muito antiga nossa [, da humanidade], mas, ao mesmo tempo, tem um lado muito efémero, porque um concerto começa, acaba, e já foi. Não há nenhum problema com isso, mas ele, por ser o “gajo” dos concertos, descobriu rapidamente que a forma de tornar essa coisa mais sólida era fazer o disco. Portanto, isto eram tudo coisas que, sem se saber, andavam em paralelo. Um dia, o Sérgio virou-se para mim e disse: “Desculpa, mas é óbvio que o disco a solo é o primeiro disco da minha editora”. [Risos] Quando o disco já estava a ficar mais próximo do final, perguntávamo-nos o que é que íamos fazer. Já andávamos a falar com umas editoras, a pensar e a discutir; chegámos mesmo a enviar material. Mas, um dia, o Sérgio disse-me: “Não, desculpa, tenho que ser eu a fazer isto porque é óbvio que, depois de tanto tempo, é este o disco que vai começar a editora”. E eu disse: “Claro que sim!”. Nem discutimos um segundo sobre aquilo.
Estreaste este trabalho ao vivo no Teatro Viriato, em Viseu, e segue-se o concerto no Jazz em Agosto da Fundação Calouste Gulbenkian. Queres-nos falar um pouco mais sobre a componente visual que acompanha estas apresentações?
Para essa parte, chamei o Vasco Futscher, que é um amigo, escultor, que trabalha maioritariamente com cerâmica. Adoro o trabalho dele; adoro aquela componente matérica, física: os vidrados, os reflexos, e toda aquela a coisa que por ali anda à volta. Porque ele não é um ceramista, ele trabalha com cerâmica. Este disco, que obviamente fala sobre mim, sobre as minhas coisas, tem, ao mesmo tempo, o problema da bateria. Há uma coisa que eu costumo brincar, a que eu chamo a síndrome do macaquinho. Há um lado de espetáculo associado à bateria que as pessoas querem ver: as baquetas a voar, o baterista todo suado no final do concerto… Há um lado performativo que eu compreendo – e não há qualquer problema nisso -, mas que também distrai daquilo sobre o que eu estou realmente a falar. E todas estas ideias que tenho estado a falar contigo do Hair of the Dog são coisas para mim tão sérias e espessas que a única maneira de falar sobre isto em palco sem correr estes riscos foi criar algo mais próximo de uma peça e não de um concerto.
E assim, no fundo, o foco acaba por não estar totalmente em ti, no teu lado performativo enquanto baterista…
Isto não é sobre a bateria! Não é sobre as minhas capacidades técnicas ou sobre os meus virtuosismos. Isso, desta vez, não é para aqui chamado. O que é chamado para aqui são as ideias do Hair of the Dog. Eu queria uma coisa muito simples, mas que tivesse impacto, e, em Viseu, acabámos por desenvolver um pêndulo. Fizemos uma bola gigante, com quase 70 quilos, que estava pendurada por um cabo de 12 metros, e que o Vasco tinha de comandar fora de palco (as pessoas não o viam). Eu estava escondido atrás da linha de luz e, portanto, o que as pessoas viam era o pêndulo que, lá está, para mim, tinha tudo a ver com este álbum: uma vez lançado, uma vez que o movimento começa, já está, já começou; já não tem como parar e já não se sabe se começou na direita, ou na esquerda, ou se isso até interessa, ou quando é que vai parar. The motion has started… O pêndulo é escravizado pela sua própria força. Quem é que manda ali? É a força centrífuga? O que é que é? Já não interessa, está ali, é um escravo de si mesmo, é uma energia que está ali – e isto tem tudo a ver com o Hair of the Dog. Agora, infelizmente, para a Gulbenkian não temos esse pé-direito de 12 metros porque estão em obras lá fora. Este ano não vai haver anfiteatro ao ar livre. Também não vamos poder fazer no auditório grande e, portanto, vamos para o auditório pequeno – que eu adoro! Adoro aquela sala, acho espectacular, mas só temos um pé-direito de quatro metros. Portanto, neste momento, ainda estamos a traduzir a peça para perceber como vamos falar destas coisas e como é que, matéricamente, em termos do objecto, o iremos fazer. Em Viseu, correu muito bem… [o espetáculo] é uma cena muito intensa, muito imersiva, a música está super alto e eu toco às escuras. Estou feliz. É uma boa equipa esta com quem eu trabalho.
Para terminar, o que podemos esperar de ti num futuro próximo? Há alguma coisa nova que estejas a preparar?
Olha, a próxima coisa que tenho de organizar é algum material que escrevi para uma orquestra de 16 cordas e voz. É uma coisa muito próxima da música contemporânea, onde toco muito pouco ou quase nada. É outra cena! Já tenho algum material gravado, mas são coisas que ainda estou a revisitar. Mas esse é o próximo trabalho que gostava de pôr cá fora, pelo menos em nome próprio.