Entramos na “Rua Nova da Piedade” empurrados pelo ar que se solta do tenor de Pedro Sousa. O contrabaixo de Hernâni Faustino segue-se, como algo ligeiramente rugoso que se sente com as mãos na parede de um quarto escuro. Só depois é que Gabriel Ferrandini se “mostra”, com a sua bateria a cirandar por entre os outros instrumentos, sem pressas mas expressiva nas suas diferentes cores metálicas, de peles e de madeira. E antes que se dê por ela, já nos encontramos na “Travessa de São José”…
Ferrandini titulou as peças deste Volúpias, o seu disco de estreia como líder, com os nomes das ruas que calcorreava a caminho da Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, onde esteve em residência com um projecto designado como Volúpia das Cinzas que o viu alternar, durante um ano, ciclos de escrita, de ensaio e depois de apresentação ao vivo de novo material, com o trio como destino último das suas ideias, trabalhadas em formatos expandidos, retrabalhadas, buriladas e esculpidas posteriormente até à forma económica que ganhariam depois em estúdio, numa casa do Alandroal devidamente equipada com os microfones de Cristiano Nunes.
O som é um detalhe importante na força que Volúpias demonstra desde os primeiros instantes. Pedro Sousa é luz nos nossos olhos, está mesmo aqui diante de nós, e entra-nos na cabeça sem pedir licença, com um tom sério, afirmativo, sem indecisões discursivas, mas também sem as dramáticas explosões a que não se poupa noutros contextos e registos. Já Hernâni Faustino é todo ele sépia, posicionando-se no fundo da cena, quase desenhando a moldura para cada um dos quadros, com um som nobre, de funda personalidade harmónica, como se percebe claramente no solo que nos leva até ao fim da “Rua da Academia das Ciências”. E Gabriel Ferrandini? Da combinação de “overheads” e de microfones mais próximos da tarola, do bombo e dos timbalões, surge uma imagem sonora nítida, que aproveita toda a bateria, revelando-a em pequenas explosões cromáticas que afirmam o baterista como um expressivo e imaginativo executante, sem temores, capaz de seguir fios narrativos ou de experimentar a mais pura abstracção em diferentes momentos.
A volúpia, diz-nos o dicionário, é o prazer que retiramos dos sentidos, mas a música que Gabriel Ferrandini nos mostra neste trabalho inscrito no catálogo da Clean Feed faz-se de uma quase tortuosa contenção, sem as derivas orgásmicas que por vezes se associam ao free jazz e sem longas explorações de ideias. Os temas são invulgarmente curtos – o mais breve queda-se logo abaixo do minuto e meio e seis das nove peças do alinhamento oscilam entre essa económica marca e uns espartanos 4 minutos e 7 segundos; só um tema, “Rua da Barroca”, que fecha o álbum, se espraia para lá dos 10 minutos, com os dois restantes a circularem em torno das marcas dos 5 e 6 minutos – o que revela bastante trabalho assumido pelo trio para domar as ideias, circunscrevê-las a formas mais reduzidas sem que isso implique sacrificar a riqueza musical que se quer mostrar.
E Volúpias é um disco decididamente rico. Desde logo porque aceita o desafio de desbravar o terreno que se estende entre os campos da composição e da improvisação livre, procurando ir a fundo nesse meio termo de difícil acesso precisamente porque renega os extremos. E isso consegue-se com muito trabalho: a escrita de Ferrandini – e o trabalho de arranjo sobre duas peças de Bruno “Ondness” Silva que inspiram “Rua do Século” e “Rua dos Caetanos” – manifesta-se no apontar de direcções melódicas e harmónicas para o saxofone e para o contrabaixo, mas também na exploração dedicada de cada ideia, em sucessivos ensaios, até se alcançar o patamar desejado. E quando isso acontecia, certamente após intensivas sessões que se dilatavam no tempo, era necessário cortar, eliminar, descartar, transformar epopeias sonoras desbragadas em pequenos poemas de cor, ritmo, melodia e harmonia. Abstractos, claro. Mas ultra-expressivos.
Tome-se “Rua João Pereira da Rosa”, por exemplo, desde a exposição poética de Faustino à entrada de Sousa, com um discurso sussurrado, com frases alongadas, verdadeiras pinceladas grossas numa tela ampla a que depois se aplicam os salpicos de Ferrandini, pequenos detalhes de cores diferentes que se revelam decisivos para o impacto geral do “quadro”, que se revela em jogos cromáticos de plena beleza, com cada instrumento a procurar a companhia do próximo, sem atropelos, como se cada um soubesse a direcção que o outro vai tomar no próximo compasso. Como se isto estivesse escrito, determinado e devidamente mapeado…
Gabriel Ferrandini é um líder de mão-cheia, um criador de corpo inteiro que agora acrescenta à sua impressionante elasticidade como músico – ele que toca com o Motion Trio de Rodrigo Amado, com o RED Trio, com Caveira, com Thurston Moore ou Nate Wooley, com Evan Parker ou Ricardo Toscano, sempre com a mesma generosa entrega, sempre com o mesmo nobre abandono, sempre com a mesma espantosa imaginação – a valência da escrita, da condução, o que lhe abrirá, certamente, outros caminhos e, espera-se, se traduzirá em mais entradas numa discografia em nome próprio que, sinceramente, não poderia ter tido melhor arranque.