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Fotografia: António Júlio Duarte
Publicado a: 17/10/2023

O baterista e compositor português encontra-se a preparar espectáculos com Lotte Anker e Xavier Paes.

Gabriel Ferrandini: “Funciono bem com uma pressãozinha”

Fotografia: António Júlio Duarte
Publicado a: 17/10/2023

Entre a música para teatro, o mergulho nos arquivos e concertos com velhos e novos parceiros, Gabriel Ferrandini mal tem tempo para combinar um encontro e falar um pouco sobre os seus compromissos e projectos actuais. Mas uma pausa entre dois ensaios permite-lhe um desvio para falar brevemente sobre dois encontros que tem programados para breve.

Com a saxofonista Lotte Anker apresenta-se já esta sexta-feira em Lisboa, no Teatro do Bairro Alto, e, no dia seguinte, tratarão ambos de encerrar o programa de 2023 do Jazz ao Centro com um concerto no Centro de Artes Visuais, em Coimbra.

Na agenda do baterista e compositor português perfila-se ainda o encontro com Xavier Paes no âmbito do festival Vale Perdido, a ter lugar na sala Lisa, a 19 de Novembro. Sobre tudo isso, um Gabriel Ferrandini que procura e aceita a pressão fala ao Rimas e Batidas.



Já me referiste que andas cheio de ensaios e que estás super-ocupado. Em que é que tens as mãos neste preciso momento?

A peça que tenho com o Tiago Rodrigues, Na Medida do Impossível, está sempre a acontecer, é uma ongoing tour. Agora está um bocado mais calminho, mas estão sempre a aparecer pedidos e ainda este Verão fizemos muita coisa. Depois tenho aquelas working bands, de malta que… Eu todos os dias estou a malhar com o Pedro Sousa, com o Rodrigo Amado ou com os Caveira, do Pedro Gomes. Tenho trabalhado muito em Má Estrela, vamos tocar em Budapeste este fim-de-semana. Tenho estado cada vez mais tempo a trabalhar a solo, que era uma coisa que… Eu quando ia tocar a solo, tinha de ter toda uma preparação para ir para o palco fazer a coisa. Agora preciso mesmo de passar muito tempo sozinho com o instrumento. Antigamente era uma coisa só para estar. Agora não. Tenho de ver se encontro música sozinho e isso é uma coisa nova. Vou tocar com a Hilary Woods numa digressão pelo Reino Unido, ela acabou de editar pela Sacred Bones. Vai ser uma cena muito fixe, porque eu nunca fiz uma tour lá e vou poder tocar noutras cidades que não apenas Londres.

Quantas datas vais fazer? Tens ideia?

Acho que fazemos 8 ou 9 datas, sendo que duas são em Dublin — é lá que arranca a coisa.

Há dois espectáculos que eu gostava de explorar um bocadinho contigo. Um deles é o que vais dar com a Lotte Anker no TBA. Mas tu também vais fazer algo no programa do Vale Perdido, não é?

Sim, com o Xavier Paes.

Começamos pelo do Teatro do Bairro Alto: vai ser a primeira vez que vais tocar com ela? Já a conheces?

É a primeira vez.

Como é que se cruzaram? Foi uma encomenda?

Há pessoas que eu já ouço desde miúdo. Ela já é mais ou menos uma oldschool. Lembro-me de a ver no Jazz em Agosto, já há muito tempo. Foi daquelas coisas que ficou sempre na minha memória. E ela já cá voltou várias vezes. Foi sempre uma pessoa que me chamou a atenção. Outras coisas foram acontecendo e agora houve esta oportunidade para fazermos alguma coisa. Disse para mim: “É mesmo desta vez e tem que ser duo, aquela cena de não ser uma banda.” Se metes três pessoas no projecto… Tinha mesmo de ser aquela coisa da conversa entre duas pessoas. Eu adoro a cena dela.

Interessa-me um bocadinho perceber como a coisa acontece. Ou seja: tu és convidado por quem programa o TBA, imagino que o Yaw Tembe, para fazer algo com quem gostasses, ou foste tu que chegaste ao TBA com a proposta?

Nós, na altura, até falámos um bocado sobre algo a solo. Mas rapidamente se colocaram problemas de ruído quando é uma coisa mais séria, mais pesada. O Yaw acabou por dizer que gostaria de ter um contexto mais de jazz, não comigo a aparecer lá com montes de subs e amplificadores. O que é óptimo. Mal ele disse isso, eu virei-me: “Tem de ser com a Lotte Anker.” Tive a sorte de tocar com outros velhotes, como o Evan Parker e com o Alexander von Schlippenbach. De certa maneira, eu podia repetir mas…

Também é bom ir tirando items da lista de desejos, não é?

Pois é. E eu já não fazia uma dessas há muito tempo. Já toquei várias vezes com o Schlippenbach, uma ou outra com o Evan, então deu-me essa vontade. Eles estão a ficar velhotes. O Schlippenbach então, está com uns 85 anos e está a partir com cenas umas atrás das outras, sempre ultra-activo em Berlim. É incrível. Mas pronto, foi por isso que escolhi tocar com a Anker. E vai ser uma coisa num contexto de jazz. O Sérgio [Hydalgo] também me anda sempre a puxar e achou fixe eu fazer uma coisa nova. Ele não a conhecia e quando foi ouvir até disse que era brutal.

E vocês ainda não têm ideia do que vai acontecer em palco ou há algum tipo de pré-planificação a apontar para, pelo menos, algumas direcções?

Nós, na verdade, vamos estar três dias antes na Osso, em Caldas da Rainha. Topas?

Sim, sei.

Vamos lá estar três dias a gravar. Entre o ensaio e a gravação são três dias. Depois fazemos os dois gigs, em Lisboa e Coimbra.

Então este encontro poderá também originar um novo disco?

Pode ser. Eu adorava. São três dias de estúdio mais dois lives, já é qualquer coisinha.

São dois espíritos que gostam muito da ideia de procura, não é?

Sim. Ela é mesmo uma improvisadora… Ela está nisto muito antes de eu ter começado.

É impressão minha ou esta cena da música improvisada em Portugal tem conquistado ainda mais força neste último par de anos? Sinto que, nos concertos — e, infelizmente, só consigo ir vendo os que a agenda me permite —, há um público diferente. Sinto que o público está a renovar-se. Também sentes que há um maior interesse por esta música… à falta de melhor termo, mais desafiante?

Talvez. Eu sinto que estou muito confuso. Não sei como é que é possível, mas eu ainda estou meio abananado do COVID. Foi uma coisa que… Eu antes, em 2018/2019, estava a fazer quase 100 concertos por ano. Dali fomos para aquela coisa [do confinamento] e quando tudo voltou já voltou diferente. Apareceram muitas coisas novas, muitas coisas se perderam…

Apareceram algumas salas novas, também.

Pois, é isso. A cidade está um bocado mais esquizofrénica, no bom sentido. As pessoas sempre foram ligadas umas às outras, mas talvez fosse um bocado mais de bolhas. Agora parece que o pessoal se está nas tintas e se mistura muito mais. Já não vejo assim… Se calhar, a malta está a misturar-se mais e isso é uma cena super-criativa. Já não são só os nerds do reducionismo e do free jazz.

E surgem coisas curiosas desses cruzamentos, não é?

Pois. Acho que a malta se está a misturar bastante. E a malta nova é o futuro, com a cena das electrónicas, que vão até ao infinito. Há todo um universo que ali está e é tudo muito rápido, incrível e fácil. Fácil no sentido de… É que eu sou um baterista, as pessoas acham que eu toco um instrumento portátil, mas não. Dá para ser portátil. E parece uma coisa meio medieval, andar aí com uns tambores e a bater numas peles.

Tu tens remediado isso transformando a tua abordagem ao instrumento com as electrónicas que vais adicionando a essa equação, não é?

Aquilo ainda são tambores, não é? [Risos]

É verdade.

Mas acho que me estou a tentar afastar um bocado daquela linguagem mais de drummer, de ritmo — o trabalho rítmico.

Queres desligar-te do tempo?

Epá, sim. Quero encontrar uma coisa mais melódica, mais próxima de uma voz ou de uma casa de banho de discoteca, com graves. A bateria foi feita para ritmo, mas às vezes encontras uns pockets

Na verdade, foi feita para transmitir mensagens de um sítio para o outro. A ideia do ritmo tem a ver com a ideia da repetição. A repetição é uma coisa que te assusta?

As pessoas perguntavam-me se eu não estava em pânico para fazer a peça com o Tiago, porque foi logo uma coisa muito intensa. Nós no primeiro ano fizemos 70 e tal espectáculos. Mais as viagens, as montagens e desmontagens… A malta toda a perguntar-me: “Mas tu não te fartas?” É que eu venho da cena do free jazz, da improvisação, uma cosia que está sempre em aberto. Mas aquilo nunca repete e isso é a cena mais incrível. Nunca repete. O único momento em que aquilo repete ou que me dá um pequeno pânico por alguma coisa a ver com essa ideia de repetição é algumas noites quando começa. É que a peça tem duas horas e eu toco a peça inteira. Os actores estão lá duas horas, mas eu ainda faço um solo gigante no fim. Então, quando aquilo começa eu penso assim: “Outra vez…” Mas mal aquilo arranca… Como nunca é igual, eu posso mudar uma virgula, uma entoação, vou com mais onda.

O que é que provoca a mudança? São os próprios actores que têm nuances na maneira como abordam o texto, é a própria energia da sala, do público, ou é tudo junto?

É tudo junto. Na verdade, nunca sabemos o que é que ali vem, qual vai ser o fantasma daquele gig. Cada gig tem o seu fantasma e nós nunca sabemos. Depois, quando começa… Eu acho que tivemos muita sorte, porque eu fiz a criação toda desde o início e o Tiago puxou sempre muito por mim, pela interacção da música com os 4 actores — somos só 5 no palco. Ele não queria assim uma cena tipo banda sonora ou papel de parede. E eu estou mesmo a tentar ser um quinto elemento ali, então há sempre um diálogo em aberto. Eu tenho uma estrutra que está desenhada, está escrita, mas se hoje me apetecer algo diferente…

Sentes-te um bocadinho como um actor naquela circunstância?

Acho que só não me sinto porque tenho muito volume, estou ali a controlar um bicho, estou lá atrás numa guerra com um “monstro”. Se tem resultado é porque temos uma equipa incrível, porque aquilo tem de estar ali no ponto.

Como é que se chama a companhia?

La Comédie de Genève. Fizemos lá o processo todo de criação. Mas eu acho a repetição fixe. Também não repito muito, portanto… [Risos]

Fala-me então sobre o que é que vai acontecer no Vale Perdido.

No Vale Perdido sou eu com o Xavier Paes. Nós somos amigos, temos estado a acompanhar o trabalho um do outro há muito tempo. Ele vive no Porto e eu vivo aqui. É aquela parvoíce de sempre: fazemos parecer que…

… que o Porto fica noutra galáxia, não é? [Risos]

Pois [risos]. Mas, felizmente, ele vem muito aqui e eu já vi muitas coisas dele. O Sérgio adora-o e puxa-o também… Lá está, foi um desafio dele. Ele sabia que eu queria fazer coisas com ele e sabia que… Então: “E se o fizeres aqui? Isto é um festival nerd. Vocês não o querem fechar com uma cena marada?” Ainda não faço a mínima ideia do que… Mesmo há bocado ele mandou-me mensagem a dizer que temos de estar juntos para começar a trabalhar, para ver se fazemos a tal cena marada. Mas eu não sei o que esperar.

Tanto no caso dele como no da Lotte, tem que haver uma grande dose de confiança e de crença. Vocês primeiro colocam um problema e, depois, sabem que têm um X de tempo para o resolver, não é?

Exacto. É engraçado, mas é isso. É uma pressãozinha. Eu curto e funciono bem assim. Gosto. Mas neste caso, como eu e o Xavier já vamos vendo as coisas um do outro… A Lotte tem uma carreira brutal e está lá na vida dela. Aliás, quando eu recebi o mail, até estava assim, um bocado envergonhado [risos]. Mas ela é espectacular.

Só mais uma pergunta: em termos de edições discográficas, o que é que podemos esperar aí para os tempos mais próximos? Tens coisas alinhadas com o teu nome na capa?

Estou mesmo a ver se consigo fechar este ano — e acho que vai acontecer — o próximo solo. Será a continuação do Hair Of The Dog, mas tem montes de material que eu tenho estado a usar e, nos últimos anos, são coisas que não têm a ver com a bateria. São coisas com cordas, com coro, uma big band… Basicamente, estou a agarrar e a fazer um best of dessas coisas que tenho fora da bateria.

Ou seja, são coisas que já tens gravadas e que queres organizar, é isso?

Sim. Estou a revisitá-las, mas estou também a mexer muito naquilo, para não ser fiel ao que eu já fiz ao vivo. Aquilo está lá, mas eu quero agarrar só no material da composição e da escrita. Lá está, sou eu a querer encontrar mais melodias e harmonias na minha vida, depois com uns ritmos novos em cima daquilo. Vai ser um disco muito produzido. O Hair Of The Dog já o era um bocado.

Muito de laboratório, é isso?

Sim. Este então… Eu estou a adorar este processo. Obriga-me a ouvir as coisas de uma maneira… Olha, estamos sempre na repetição. E quanto mais repete, mais nós encontramos as fragilidades daquilo. Eu só imagino aqueles produtores brutais de hip hop, que ficam malucos durante horas no estúdio a ouvir os beats.


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