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Fotografia: Vera Marmelo – Gulbenkian Música
Publicado a: 07/08/2021

Perder-se no escuro também é caminho.

Gabriel Ferrandini no Jazz em Agosto 2021: desconstruir a bateria imerso na escuridão

Fotografia: Vera Marmelo – Gulbenkian Música
Publicado a: 07/08/2021

Na belíssima entrevista que concedeu a João Morado e que está publicada aqui mesmo, no Rimas e Batidas, Gabriel Ferrandini, num feliz esclarecimento da natureza de Hair of The Dog, o seu mais recente trabalho que ontem mereceu apresentação no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito da edição corrente do festival Jazz em Agosto, explicava que essa obra resulta de uma tentativa senão de “libertar a bateria”, então, “pelo menos”, traduz o esforço de “encontrar uma música que estava escondida dentro dela: o que está para além do ritmo e além daquelas coisas habituais de que estamos à espera, não só rítmicas, mas também tímbricas”. Pode dizer-se que a missão a que o músico se propôs foi plenamente cumprida, numa sala mergulhada na penumbra.

Em palco, ao início, nada se vislumbra, para lá de uma difusa forma que vai ganhando algum relevo através de um ténue foco de luz que não nos deixa adivinhar exactamente o que se move ali. Será uma pessoa? Um objecto? Na já mencionada conversa, Ferrandini esclarecia tratar-se de um pêndulo, uma obra do “amigo” e escultor Vasco Futscher, que serve o propósito já antes avançado de nos libertar a nós mesmos da dependência visual do lado performativo da peça. Ferrandini não pretende com este Hair of the Dog libertar apenas o seu instrumento, tem igualmente como objectivo libertar-nos a nós, o público, da ideia pré-concebida que carregamos da bateria e implodir quaisquer noções que possamos ter da tradicional dimensão física que associamos à sua execução. E daí a escuridão. E daí o movimento hipnótico do pêndulo que nos ajuda a esvaziar o pensamento, com Ferrandini resguardado pela escuridão.

Por entre drones que se imagina serem gerados por Miguel Abras, creditado com “electrónica”, e explorando o lado mais metálico da sua bateria – a madeira e a pele parecem contribuir menos para a paleta tímbrica escutada –, numa verdadeira escultura sonora que recusa a ordenação do tempo rítmico convencional e se assume liberta e abstracta, Gabriel ergue uma muralha sonora tão estranha quanto imersiva, feita de pequenas explosões, de fragmentos, de fugazes brilhos que nunca chegam realmente a rasgar a escuridão. Mais próximo de certas experiências dos domínios da música contemporânea – e alguns trabalhos de William Winant assomam à memória em determinados momentos da performance de Ferrandini – esta música percebe-se, no entanto, que busca sobretudo territórios não cartografados, procurando ir para lá do que se conhece.

E a peça que começou com um lento fade in, termina de forma inversa, uma hora mais tarde, devolvendo-nos a todos à realidade apenas quando a luz da sala se acende revelando enfim tanto a forma do pêndulo – uma esfera vítrea – como a figura do baterista e do seu transformado instrumento.


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