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Kanye West

Donda

G.O.O.D. Music / Def Jam / Universal / 2021

Texto de Alexandre Ribeiro

Publicado a: 03/09/2021

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Devoção ou provocação? Desde The College Dropout (2004), o seu primeiro álbum, Kanye West não se coibiu de referir Deus, uma relação que sempre aparentou viver num estado de coexistência entre respeito e insolência, algo que se perdeu no caminho que se fez de Yeezus (2013) até JESUS IS KING (2019), período em que as duas peças se desconectaram e nos deram os discos menos bem-conseguidos. Esse foi o espaço necessário para que uma nova pergunta surgisse: ainda existirão obras-primas para serem extraídas da mente de Ye?

De há oito anos para cá, o que Mr. West tem feito é, basicamente, um decalque de ideias de discos anteriores da sua autoria — com execuções bem mais pobres –, misturando isso com linguagens sonoras que estão em voga nas suas respectivas épocas. No caso de Donda, isso é evidente em alguns casos concretos: “Off The Grid”, uma das melhores faixas, é drill de casta nova-iorquina sem grandes twists a favorecer Fivio Foreign para uma prestação que pode mudar a sua carreira; em “Junya” ouvimos uma diluída versão daquilo que Playboi Carti anda a criar em nome próprio — mais vale irem dar os vossos plays a Die Lit e Whole Lotta Red, se gostaram desta faixa; com participações de Travis Scott e Baby Keem, “Praise God” não acrescenta nada em relação a “durag activity” — e fica a anos-luz de “Piss On Your Grave”; que pena não ter aproveitado devidamente a presença da Griselda em “Keep My Spirit Alive”; e o que se fez a Pop Smoke em “Tell The Vision” é, no mínimo, indecente. 

Até 2013, o artista de Chicago era imprevisível de uma maneira positiva porque não sabíamos o que esperar, mas tínhamos quase a certeza que ia abanar uns quantos pilares, meter-nos a repensar a forma de olharmos para todos os aspectos de uma edição — desde a promo pré-lançamento até à própria forma como um álbum pode mudar depois de sair (e aqui puxamos até 2016). Agora, a polémica é o seu principal combustível, não é a vanguarda — e isso não chega, simplesmente. Se quiserem discos de 2021 que cumprem aquilo que o Kanye costumava prometer (a-messias inquieto;b-esteta abrasivo;c-curador de elite), seguem três sugestões: a-A Martyr’s Reward de Ka; b-GUMBO! de Pink Siifu e c-Hitler Wears Hermes 8 de Westside Gunn. 

Nem tudo é mau: o verso de Jay-Z em “Jail” é assinalável na entrega, na estrutura, na ambiência e na honestidade — e “Made in the image of God, that’s a selfie” é candidata a linha do álbum; “Hurricane” (com The Weeknd e Lil Baby) e “Believe What I Say” — com interpolação de “Doo Wop (That Thing)” — têm o maior potencial para tomarem conta dos topos das tabelas; as contribuições do desconhecido Vory para algumas das faixas do projecto — e aí o destaque vai para o que faz em “Jonah”, principalmente o refrão; e ainda a considerar se “Come To Life” pode entrar na lista “excelentes canções de Mr. West que não aparecem nas listas” — para terem uma ideia, “Only One” faz parte desse selecto grupo. 

Em Donda, Kanye West aproxima-se vertiginosamente de um “lugar” perigoso: a energia transgressora que era canalizada para a música passou a ser realojada quase na totalidade para a criação de hype à base de controvérsia e, para alguém que decidiu diluir de vez as fronteiras entre o que é privado e público, a persona artística e o que é pessoal, a chamada para palco (e disco) de DaBaby e Marilyn Manson acaba por ser uma declaração que nos facilita o encontro com a resposta para a velha questão do “dá para separar a arte do artista?”: as acções de ambos (o primeiro com uma série de comentários homofóbicos e o segundo com acusações graves que envolvem abusos e agressões sexuais) aconteceram no foro pessoal e é impossível que essa não tenha sido a razão para Yeezy os unir numa música com o refrão “Guess who’s goin’ to jail tonight?”. 

Se Deus bafejou estas músicas — desculpa, Vory, merecias mais –, então as notícias eram mesmo verdadeiras: ele está morto e o seu bafo pútrido precisa de ser contido imediatamente. Nada aqui soa novo, fresco ou inovador — e a homenagem à sua mãe poderia ter-se ficado por “Hey Mama”. Isto não significa que já não acreditemos que o talento e o engenho de Ye nos possa dar mais uma obra que faça tudo gravitar à sua volta. No entanto, e desde há algum tempo para cá, o que sai cá para fora está longe de o aproximar do estatuto que o elevou a uma das figuras musicais mais importantes das últimas décadas. 


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