LP / Digital

Playboi Carti

Whole Lotta Red

AWGE / Interscope Records / 2020

Texto de Nuno Afonso

Publicado a: 26/01/2021

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Nos últimos meses de 2020 foram-se multiplicando as alusões ao esperado novo álbum de Playboi Carti. “@MEH” foi o single que surgiu em Abril passado, provocando curiosidade e gerando intensa actividade cibernética. Profundamente ciente do seu tempo, foi mais precisamente nas redes sociais que o rapper deu então a conhecer alguns snippets dos temas que agora formam Whole Lotta Red; isto enquanto os próprios fans partilhavam supostos avanços das novas canções, numa deliciosa promiscuidade de papéis. Em bom rigor, tem sido assim que Carti tem gerido a sua aura: na plenitude da web 2.0. Uma identidade que se quer emblemática de uma geração, espelhando um tempo do “agora” e subvertendo algumas regras do jogo.

Longe do retrato enquanto figura unânime, Playboi Carti trouxe com Die Lit todo um novo léxico e expressividade ímpar ao rap. Esfregando ousadia, imprimindo humor e patenteando um flow inimitável, ressalta uma vontade inata de experimentar, implodir e contagiar. A capa do disco apelava a um estado de espírito punk — e não haverá outra forma, tão genuína e simples, de chamar a matéria que o rapper de Atlanta se encontra a aprimorar. Sem guitarra ou casaco de cabedal, todavia alinhado com aquele sentido, cru e honesto, de provocar racha nas paredes da convenção. Existe ainda uma imensa latitude a descobrir, para além do mapeado — e Carti não perde tempo em buscá-la. Confunde, surpreende e traça um percurso intrinsecamente artístico, capaz de seduzir ou de repudiar. A indiferença parece definitivamente não se aplicar neste estudo de caso.

Whole Lotta Red chegou na manhã de Natal de 2020 e puxou-nos desde logo o tapete dos pés. Sem recusar por completo os elementos perfilares do passado, existe neste trabalho inquietação em doses reais e essenciais. Provavelmente o tipo de inquietação de quem busca algo que nunca irá efetivamente encontrar, de um oásis ou de um centauro, que talvez até só exista na esfera do imaginário pessoal. Mas é nesse processo criativo, onde cabem verbos como abordar, testar e transformar, em que a magia acontece. Talvez seja facilmente aceite que Carti não tenha um destino concreto a chegar com a sua música. Longe da perspetiva política de Kendrick Lamar ou emotividade de um Future, Whole Lotta Red volta a traçar Carti como um expressionista, acima de tudo. Dos vocais minimalistas, às onomatopeias bizarras, a infusão existe, entre cores ácidas e melodias oblíquas.

Note-se que parece existir aqui mais elementos e referências que nos álbuns anteriores. A alusão ao imaginário gótico é uma realidade. Faixas como “King Vamp” ou “Vamp Anthem” ou a fonte da letra da capa, de tom vermelho e forma líquida como sangue, sugerem a atração de Carti pelo universo em questão. Mas também alusões à esfera dos sonhos ou do estrelato rock. A visão em 360 graus do que o rodeia, aliada à curiosidade nata, provoca estas inclusões relativamente inusitadas.



Numa primeira audição, a produção de Whole Lotta Red soará próxima da eletrónica e mais distante de qualquer possível referência a etiquetas como o trap. Soa mais heterogéneo que o habitual, e faixa após faixa, aporta algo de inesperado. O ritmo com que se move é de várias marchas, as roupagens de diferentes armários e os convidados (Kid Cudi, Future ou Kanye West) surgem na trip, ampliando a linguagem de um disco já de si rico nesse sentido. Olhando para trás, este Whole Lotta Red assume-se menos imediato, querendo chegar a mais paragens.

“Control” leva-nos por um perigoso terreno, demasiado perto da EDM, através de um sintetizador que imediatamente nos remete para as piores expectativas. Embora seja nestes precisos momentos, de transição de fronteira, que o Carti melhor se instala para elevar. Já “On That Time” é um autêntico ataque sónico, trazendo à memória a boa gente do catálogo da Def Jux de El-P. Da mesma forma, em “Slay3r” ou “Teen X” vemo-lo num habitat natural com a sua baby voice e onde as metralhadoras se substituem por rosas. Esta quase bipolaridade exemplifica a imprevisibilidade de Carti, ainda sob uma aparente (repita-se aparente) fórmula que tantas vezes funciona contra ou a favor de si mesmo. Lançando discussão e provocando reacção, dificilmente encontramos no rap alguém a sacar tanto divertimento, experimentação ou fama — tudo isto em doses semelhantes.

Mas, então, o que temos aqui entre mãos? Whole Lotta Red não é com certeza uma obra-prima, nem terá a estrela que guiou Die Lit. Talvez seja um exercício, bem executado, de ingredientes a ter em consideração numa próxima investida. Mas tentar encontrar espaço e definição para os discos de Carti é tarefa chata e ingrata. Se há coisa que aprendemos com ele é que a viagem é sempre mais interessante que o destino. A hiperactividade de Carti só é benéfica, movendo-o por mil e um mundos, uns mais subterrâneos que outros. Um puto maravilha, sem dúvida, e outra prova de que é no hip hop que os maiores milagres têm acontecido à música contemporânea.


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