A pianista e compositora Joana Sá, que desde o ano transacto tem feito uma transdisciplinar intervenção de “a body as listening – resonant cartography of music (im)materialities”, com as instalações “Cookies policy”, as leituras performativas “Are you there?”, a instalação virtual, o livro homónimo e expandido (co-editado pela Sistema Solar/Teatro Praga) e o disco a body as listening (edição Clean Feed), encontra contudo em palco, nas performances a solo, a maior expressão. Assim foi na apresentação primeira em Lisboa (Culturgest), depois em Braga (gnration) e desta feita em Coimbra no TAGV (28 de Março). Um processo fragmentário e complementar.
Joana Sá aborda de um modo desconstrutivo o par acção-reacção do corpo e som. Para isso, na dimensão que o palco possibilita, apresenta-se em acto performativo munida de um piano de cauda preparado, de electrónicas e outros dispositivos não identificáveis, para alcançar outras dimensões e que têm sido desenvolvidos com Daniel C. Neves, Teresa Silva e Henrique Fernandes, cujo requinte sonoro tem sido um garante pela mão de Suse Ribeiro, em disco e nos palcos. Um piano preparado em modo cageano, com objectos colocados sobre as cordas, para interferir e potenciar outras ressonâncias inusitadas do piano. Além de que só este outro piano, que não o comum, possibilita o uso que necessita fazer, uma vez que, e como comenta em entrevista revelada no Rimas e Batidas dias antes desta actuação, “a standardização do instrumento congelou no século XX e, por muito que haja novas formas de tocar que já pediam por outras características, outro pensar a construção, outras ferramentas na ferramenta, essas novas formas de tocar não entram na equação de quem constrói os instrumentos.” O piano é o objecto na formação musical da pianista, que no decurso da aprendizagem, num momento chave, envereda o método radical do pedagogo Jean Fassina e nisso, como revela em livro, ter tido a “estranha sensação de a música ser um completo outro lugar.” Elucidando que no decorrer dessa metodologia deu-se conta que “já não era pianista como pianista e subitamente era uma compositora mas também não realmente uma compositora.” E nisto, em si passa a haver, mais que um instrumento de repertório de outros compositores, um piano como instrumento, na distância do processo, a tocar na terra de ninguém.
Em palco, entra para escutar, há efectivamente um corpo musical em curso, programado por si, certamente que sim, mas em que a performer entra vinda desde fora para um ouvir por dentro. Ali, instala-se um dispositivo cénico lembrando o teatro de sombras. É musica, porém, para se ver — em recortes de silhuetas de som, de corpos, da interação em prática. São espectros de fraseados ciclópicos, entre escalas, vividos numa ténue luz, progredindo nos elementos ressoantes, que respondem ao martelar incisivo do teclado. Acendem-se ocasionais pontos de luz, num propósito de revelar o corpo que escuta, o corpo que habita a compositora e o corpo que é performativo. Os nossos corpos também ali estão presentes neste tempo. É de tempo que se trata nesta primeira intervenção, entenda-se assim, na qual Joana Sá procura desconstruir a noção prévia de tempo na música, cartografando em tempo real o tempo que se define, no intervalo das notas, na duração de um som, num intervalo, intrometendo o ressoar, num vai e vem que navega um efémero sensorial. Como a autora faz entender em livro, “não há distinção dual entre navegação e cartografia, entre o acto de navegar e de cartografar”. É disso que trata com compor em tempo real esta sua expressão sonora-auditiva.
Depois ocupa-se da noção de espaço. Numa segunda intervenção pensada, socorre-se do “mesmo” piano, desta feita operado num amplo tocar em deixar (de) tocar o abismo sonoro, o espaço que se define entre o eu (seu) e o desconhecido e não controlado. Toca para ouvir de volta, absorvendo toda essa dimensão no retorno, dançante, corpo que escuta e reage ao som, no desconhecido espaço. Ainda na entrevista concedida antes da vinda ao TAGV, explicava que “há que reconhecer que não temos controlo (nem temos de ter) sobre muita coisa que achamos que controlamos (o problema essencial da cultura ocidental). E depois, reconhecer que muitas vezes não perdemos tanto controlo quanto isso nesses momentos que designamos por liberdade ou improvisação.” Neste fazer em palco, Joana Sá assume essa fluidez, colocando o corpo sonoro em níveis disruptivos que vão até ao lugar que não controla a produção do som — fora de alcance. Num corpo que se permite ao escape — fora da lógica causa-efeito. Em tese, como define em livro, é do domínio da lógica da ressonância, enumerando aí e aqui em palco demonstrando: “Tudo o que o corpo pode (ou não) ser e fazer”; assente na “lógica de vibração” e nisso o espectro ondulante lumínico neste momento da intervenção é esclarecedor disso mesmo; um espaço onde ocorre e tem lugar um claro acontecer de um “contágio à distância” uma “contaminação” espacial. É do domínio emocional esta música que contamina e a demonstrá-lo a operadora performativa faz uso de um dispositivo para partilhar sonoramente o seu espaço cardíaco, percurso circulatório, como remete a ilustração de Rita Sá, tanto em livro com na impactante capa do disco. Esse dispositivo que está ligado ao piano permite auscultar, dimensionar as palpitações, definir o espaço emocional do corpo que escuta. Aqueles que ouvem o corpo que escuta somos nós, também escutando quem está fora de pé, numa vivência do espaço sonoro e corpóreo sem profundidade controlada, tão somente mensurável na emoção.
Corpo ausente, de palco, na derradeira intervenção do não concerto-performance, na obra conceptual. Estamos perante a obra da artista a desenhar-se na memória mais recente, a propagar-se pelo corpo de som automatizado. Um piano a tocar-se por si próprio, feito caixa de ressonância programada e deixada ali. Algures a não mais performer estará a escutar também, mas de corpo ausente, subtraída ao palco. Numa premeditada razão ouvimos uma desconstrução de fragmentos manipulados do oratório coral “Exordium da Paixão Segundo São João” de Bach, que faz parte de peça originalmente composta precisamente neste mesmo dia do calendário litúrgico católico no ano de 1724. Este excerto aqui inserido teve um confesso propósito para a artista, o de intervenção já que a “ideia ocidental de corpo está muito baseada nesta construção cristã e num ciclo de acontecimentos em que a Páscoa representa o seu expoente máximo.” Com esta componente time-specific procurou que do processo de interiorização individual do momento, resultasse um efeito colectivo para um “renascer de uma outra forma”.
Haveria Joana Sá de voltar ao palco, de braços abertos em forma de cruz, para se ler, enquanto recebia a “devoção” da plateia — “STOP GENOCIDE” — referindo-se à mais recente das infindas guerras religiosas e de poder.