pub

Fotografia: Hugo Sousa
Publicado a: 26/03/2024

Corpo-escuta / A body as listening a caminho de Coimbra.

Joana Sá: “É preciso passar a conceber a instabilidade como fazendo parte da estabilidade do nosso chão”

Fotografia: Hugo Sousa
Publicado a: 26/03/2024

A pianista e compositora portuguesa Joana Sá, especializada em música improvisada, apresenta esta quinta-feira, 28 de Março, pelas 21h30, o seu novo álbum no Teatro Académico Gil Vicente (TAGV), em Coimbra. Corpo-escuta / A body as listening foi editado em Janeiro pela Clean Feed Records e faz parte de um projecto maior, multidimensional, com o título A body as listening – resonant cartography of music (im)materialities.

Começou em Agosto de 2023 com uma instalação virtual estreada no festival de arte sonora Lisboa Soa. Teve seguimento em Novembro com a edição de um livro e uma conferência-performance. Nos últimos tempos, o disco tem sido apresentado nos palcos: primeiro em Lisboa, depois em Braga, agora em Coimbra.

O novo espectáculo, pensado para piano e electrónica, conta com direcção artística por parte da própria Joana Sá, concepção visual de Daniel Costa Neves, co-criação da performance por parte de Teresa Silva e instalação do dispositivo corpo-escuta por Henrique Fernandes. Para antecipar o concerto, o Rimas e Batidas colocou algumas questões à artista.



A tua biografia descreve-te como “improvisadora” e “compositora”, como se se tratassem de duas dimensões distintas. No teu caso concreto, não serão, na realidade, duas palavras que descrevem uma mesma qualidade?

É engraçado que perguntes isso porque, na realidade, as minhas biografias relativamente recentes não contêm a designação de “improvisadora” que usava, de resto, como ferramenta prática para designar que, de vez em quando, gosto de ir para o palco com outras pessoas sem saber o que vamos fazer. Mas é complexo, a linguagem fixa-nos em formas de pensar e de fazer e “composição/ improvisação” surgem na nossa linguagem quase sempre como uma dualidade. E sim, todo o meu trabalho vai no sentido de desconstruir essa dualidade composição/improvisação, controlo/fora do controlo, fechado/aberto, etc.. Acho que não faz muito sentido concebermo-nos a nós e à música como corpos estruturados em coordenadas ou parâmetros x-y-z que, de tempos a tempos, têm momentos disruptivos que nos obrigam ou possibilitam ir para fora de pé e sair dessa grelha de coordenadas (em que estar dentro das coordenadas é mais designado por “compor” e estar fora das coordenadas é mais designado por “improvisar”). Pode ser muito redutora esta imagem de concepção da criação musical ou de corpo. É engraçada a expressão “ir para fora de pé” e o seu equivalente em inglês “to go out of one’s own depth”, que, traduzida à letra, seria qualquer coisa como “sair da sua profundidade”. Juntando as duas expressões é como se a profundidade de alguém fosse mensurável, começasse na cabeça e terminasse no pé. A forma como encaramos essa nossa profundidade tende sempre para uma abordagem do domínio do que é mensurável, daquilo que podemos controlar. Eu diria que a profundidade de um corpo, enquanto domínio mensurável, já não nos serve muito como ponto de partida. Primeiro, há que reconhecer que não temos controlo (nem temos de ter) sobre muita coisa que achamos que controlamos (o problema essencial da cultura ocidental). E depois, reconhecer que muitas vezes não perdemos tanto controlo quanto isso nesses momentos que designamos por liberdade ou improvisação. É preciso passar a conceber a instabilidade como fazendo parte da estabilidade do nosso chão.

Corpo Escuta/A Body as Listening resultou num espectáculo na Culturgest, mas também num disco com selo Clean Feed. E ambas, performance e edição discográfica, integram uma proposta artística mais ampla em que cabem ainda um livro, uma instalação, uma conferência. Uma escala invulgar num país habituado a conter e a reduzir. Podes guiar-nos por este projecto e explicar como poderá este concerto no TAGV ser diferente do que vimos em Lisboa? Há uma componente site-specific?

Não sei bem se o problema de estarmos habituados a conter e a reduzir é exclusivo do nosso país ou se é apenas uma das faces visíveis da lógica global e globalizante de mercado e do mercado da música e das artes — em que o que conta é a produção (quantidade), a rapidez, o estar sempre on em todas as redes sociais e a debitar conteúdos, mesmo que sejam inócuos. O mercado não te dá espaço-tempo para auto-reflexão artística (nem outra qualquer) nem para o descanso que é o que te permite ter capacidade para essa reflexão. Não te dá, nem te quer dar: porque se parares para reflectir sobre o teu trabalho, vais muito provavelmente acabar por reflectir sobre este sistema no qual estás inevitavelmente inserido e há uma forte probabilidade de o quereres colocar em causa e de lhe fazeres frente. A maior ferramenta do mercado é não te dar espaço para reflectir (e descansar) e colocar-te sempre nessa lógica da produção rápida, veloz: conter e reduzir é, quanto a mim, mais consequência desse fenómeno global e globalizante do que uma característica de cá. E está a ficar cada vez pior: a minha percepção (e pode ser uma coisa subjetiva ou não) é que, desde a pandemia as coisas estão ainda mais aceleradas, há cada vez menos e menos tempo… Descansar e reflectir estão a tornar-se cada vez mais actos de risco (porque se páras, perdes a vez, sais da equação, deixas de “existir”, deixas de ser procurado para trabalhos, etc.) e a começar a tornar-se actos revolucionários. Por outro lado, estamos numa sociedade tão higienizada e tão baseada na aceitação e nos likes que, até nos meios artísticos, a ideia de que o risco é parte inerente de qualquer processo artístico está quase obsoleta (mas lá está, os riscos podem ser muito diferentes: os do ego e da perda de aceitação ou, então, os mais básicos, de poder pagar a casa ou a comida na mesa, riscos cada vez mais comuns e transversais).

Este trabalho foi um acto de risco porque implicou afastar-me dessa lógica durante bastante tempo. Previ, senti essas consequências, mas a vida é feita de escolhas e (im)possibilidades e eu sempre gostei de escolher os processos difíceis, os que te transformam, os que te põem a fazer algo que aches realmente relevante. Mas não foi um acto de risco absolutamente sem chão, inventei ou encontrei formas de suportar esse risco em esferas mais básicas: o facto de ter conseguido bolsas ou apoios para realizar quase todas as etapas deste processo é um privilégio (pelo qual muito trabalhei, mas em todo o caso, um privilégio nos dias que correm). Este trabalho envolveu um doutoramento feito em torno da minha criação musical e um período após o doutoramento de criação destes vários formatos artísticos autónomos, mas complementares, que nos colocam a todxs (músicos, ouvintes, instrumentos, etc.) em perspectiva enquanto corpos (i)materiais ressoantes, questionando as dualidades eu/outro, fora/dentro e explorando uma ideia de um corpo, enquanto relação ressonante (ou não) com a alteridade. São muitos trabalhos e formatos e que formam também eles um corpo complexo e múltiplo. Tudo isto pode parecer um palavreado chato e sem sentido, mas nasce da experiência concreta da prática musical, da sua materialidade, e volta a ela de uma forma que pode ser muito imediata, sensorial, quase extra-sensorial. A performance que estreou na Culturgest e que irá agora ao TAGV é uma performance que, embora baseada no disco, tem muitas outras dimensões trabalhadas com o Daniel C. Neves, Teresa Silva e Henrique Fernandes. Não existe nenhuma componente site-specific (apenas a da adaptação normal a uma sala com algumas características diferentes, mas no caso do TAGV, vamos conseguir ter condições bastante semelhantes, o que é, neste caso, perfeito). Pode haver contudo, uma componente time-specific: a body as listening é composta por três peças, sendo que a terceira é uma desconstrução do “Exordium da Paixão Segundo São João” de J.S. Bach, composta para a Páscoa. A ideia ocidental de corpo está muito baseada nesta construção cristã e num ciclo de acontecimentos em que a Páscoa representa o seu expoente máximo. Será então interessante fazer esta desconstrução com as pessoas presentes no TAGV no auge deste ciclo e, quem sabe, procurarmos renascer de uma outra forma.

O piano é, também, um corpo que escuta, um corpo em que os diferentes componentes reagem às vibrações que o percutir das cordas gera. Um corpo tocado por outro corpo, num jogo de infinitas possibilidades, interacções, interferências, sintonias e desencontros. O teu entendimento do instrumento mudou fundamentalmente com o tempo? É hoje uma máquina diferente do que julgavas ser quando primeiro a começaste a usar?

No meu trabalho, o que a máquina é, resulta de uma relação muito plástica entre mim e ela ao longo dos anos: a máquina vai sendo… Mas é interessante referir que, no que diz respeito à concepção e à construção, a “máquina” em si, apesar de muitas abordagens revolucionárias, continua quase sempre a mesma… Após inúmeras inovações e experimentalismos na construção, a standardização do instrumento congelou no século XX e, por muito que haja novas formas de tocar que já pediam por outras características, outro pensar a construção, outras ferramentas na ferramenta, essas novas formas de tocar não entram na equação de quem constrói os instrumentos, lá está, porque, à partida, não vendem. As inovações no instrumento são feitas, não para os pianistas, mas para os milionários que querem ter em casa um piano a tocar sozinho a interpretação da obra X pelo intérprete-estrela Y ou Z. Ou então para aqueles que só acham que fica bem um piano em acrílico com um design de nave espacial na sala. Agora, lá está, mesmo que o piano mude apenas destas formas meio obsoletas, a relação que se estabelece com o instrumento pode ser transformadora da concepção que temos da máquina ou mesmo da concepção do que é ou pode ser um instrumento. No meu caso, é isso que procuro: criar sempre novas relações, abordagens que nos coloquem, a todxs xs corpos, em perspectiva.


pub

Últimos da categoria: Curtas

RBTV

Últimos artigos