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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 13/01/2024

Exploração avançada.

Joana Sá na Culturgest: corpo presente / corpo ausente

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 13/01/2024

“Stop”. “Genocide”. Duas palavras escritas nos braços de Joana Sá. Ontem, no final de uma tremenda apresentação na Culturgest, em Lisboa, de mangas arregaçadas, como as de quem repousa após uma missão cumprida, a pianista e compositora abriu os braços para agradecer os justos aplausos que a sala praticamente esgotada lhe entregou. E nesse breve abrir de braços revelou-se, de forma discreta, uma ideia: a de que há outras coisas, maiores e mais urgentes, que precisam da nossa atenção. Da nossa acção. Mas para lá de um sincero pedido/desejo de Joana Sá — aos povos, às consciências, ao universo…. —, aquelas palavras, “Stop Genocide”, inscritas naqueles dois braços agarrados a um corpo que ontem tocou e se deixou tocar, carregavam uma mais funda mensagem. Íntima e pessoal. Simbólica. Aqueles braços que tocam, no corpo do piano e no próprio corpo a que estão agarrados, não enjeitam esse peso do mundo, essa vontade de transformar, essa dor. Palavras inscritas na pele são feridas abertas, também.

A apresentação de corpo-escuta / a body as listening é mais uma etapa num trabalho de notório fôlego desenvolvido por Joana Sá ao longo de vários anos. Um trabalho com enquadramentos académico, intelectual, artístico e performativo que se manifesta em diferentes dimensões: há um livro, A Body as Listening – Resonant Cartography of Music (Im)materialities (Teatro Praga/Sistema Solar), houve uma instalação sonora apresentada durante a última edição do Lisboa Soa, uma conferência-performance que também teve lugar em 2023, um disco que acaba de sair com selo da Clean Feed e um sítio virtual, abodyaslistening.com, que abre ainda mais portas. Ou seja, há um labirinto em que Joana Sá nos convida a encontrarmo-nos, um emaranhado de reflexões e concretizações, de sons suspensos e pensamento vertido em música e performance. Poesia em movimento. E sobre tudo isso, discorria ontem longamente Gonçalo Frota em mais um trabalho de excelência assinado no Ipsilon. Leitura preciosa para quem queira mergulhar ainda mais fundo nesta obra múltipla e urgente de Joana Sá.

O palco da Culturgest começou por se revelar em trémula penumbra, como se parcamente iluminado por uma única lâmpada prestes a fundir-se. E imerso em silêncio, ele mesmo frágil, e prestes a dissolver-se. Os passos com que Joana Sá se dirigiu depois ao piano, esse corpo inerte a pedir para ganhar vida com o toque de um outro corpo com palavras feridas escondidas debaixo de mangas ou pela escuridão, revelaram imediatamente a postura teatral e física de Joana Sá. É comum, em músicas que não se associam imediatamente a uma ideia de performance mais física, os corpos quase desaparecerem durante uma actuação, como se a música deles não dependesse e nascesse, sendo, ao invés, resultado de uma espécie de ligação directa e invisível ao pensamento do intérprete. E isso acontece frequentemente com pianistas alinhados com a erudição clássica ou contemporânea: nesses casos, mede-se a intensidade, beleza, arrebatamento da performance pela música que se desprende do instrumento, não necessariamente pela entrega física de quem interpreta a peça. Mas, logo naqueles decididos passos iniciais, como se o piano a atraísse de forma irremediável por ser dotado de um magnetismo de força invisível, percebeu-se que aquele seria um corpo presente. Talvez até um corpo urgente.

Pela música de Joana Sá passam muitos ecos: das obras clássicas que estudou, de Bach a Satie e mais além, da música para cinema, sempre interligada com uma dimensão visual, das exploratórias vias da mais avançada música contemporânea, da electrónica abstrata e experimental. O som do seu piano, preparado e processado a espaços, e o que seriam certamente ténues bases pré-gravadas, entrelaçam-se e dissolvem-se numa névoa musical que rapidamente nos envolve. Há drones que parecem nascer do zumbido industrial de máquinas, notas de piano que caem sobre o silêncio e logo desaparecem, como gotas de água sobre um chão seco, e outras que desabam sobre nós como enxurrada empurrada montanha abaixo pela gravidade. Há melodias que se pressentem em frases lentas e momentos de atonalidade visceral em que as duas mãos e o resto do corpo parecem obedecer a uma qualquer força exterior. Há tanto em tão pouco.

Joana Sá é uma pianista virtuosa, no sentido em que está em plena posse das ferramentas de que necessita para expressar exactamente o que pretende, o que pensa, o que provoca, o que a agita, o que a move e comove. E se as suas virtudes composicionais já há muito são evidentes, o seu brilhantismo performativo é tão digno de nota quanto: há momentos em que parece dançar ao piano ou sucumbir fisicamente, tal a força do que o corpo agora vivo do piano lhe entrega. Os seus gestos são expansivos, vivos e acentuam o lado vibrante do seu corpo, que está ali mesmo, não há dúvida. Não se apaga. Não se nega. Existe e tem poder.

Quase no final da performance, Joana ergue-se, desprende-se fisicamente do piano e escuta o seu próprio corpo, com um microfone que nos revela, como um estetoscópio o faz aos ouvidos de um médico, um coração que bate e bombeia vida através de artérias que pulsam. O seu corpo torna-se assim ressoante caixa de música e o rosto de Joana Sá parece até comover-se perante a beleza do que escuta. E depois de um longo momento assim, exposta da forma mais honesta possível, entranhas estranhas e tudo, Joana abandona o palco, deixando-nos ainda assim música durante um bom pedaço. Corpo ausente. A música não depende já de si, não se desprende já de si, mas existe antes noutro plano, resultado de pensamento pré-gravado e agora revelado. Para tocar a multitude de outros corpos que ali se espantam. Nesse final, há vozes de espessura coral que se combinam com notas de piano de uma beleza extraordinária. E assim acaba.

Perante os aplausos, Joana regressa ao palco, de braços e coração aberto, com as palavras-feridas expostas momentaneamente, e chama quem a ajudou a concretizar tamanha ideia. Diz-nos a ficha técnica que a concepção visual é de Daniel Costa Neves e que a co-criação da performance (apoio ao movimento) se deve a Teresa Silva. A operação da luz pouca, mas crucial e de extremo bom gosto, foi responsabilidade da Tela Negra. E o desenho de som esse foi assinado pela incrível Suse Ribeiro, uma escultora de frequências de uma minúcia rara. Tudo certo. Tudo excelente. A repetir, se possível, no próximo dia 26 de janeiro, no gnration, em Braga.


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