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Fotografia: Hugo Sousa / gnration
Publicado a: 29/01/2024

Até sobrar apenas a estática.

Joana Sá no gnration: um poema abissal

Fotografia: Hugo Sousa / gnration
Publicado a: 29/01/2024

Aos quarenta minutos após as vinte e uma, com a Black Box esgotada, em sons de estática e numa luz em surdina estroboscópica, semelhante ao que aconteceu na Culturgest, vislumbramos um piano de cauda em úmbrio fundo. Há, no meio desta estática, um monitor cardíaco como arauto do que aí vem. Joana Sá entrava em palco e num passo lento de flutuação instalava-se no piano e aconteceu.  

Gostava de conseguir conjugar todas a palavras de forma que explicasse o que assisti no gnration esta noite de sexta-feira, 26 de Janeiro, numa nova apresentação de A Body As Listening. Entre os martellato nas notas mais agudas no piano e os graves sons, como passos. Uma narrativa assoma o palco e adensa-se, tal como a minha atenção. Sinto uma percussão grave, quase muda e visceral. Estas frequências mais graves adensam o mistério do que se passa, fazendo-me endireitar na cadeira e tentar ver o que o desenho de luz não deixa propositadamente. Há uma história a ser contada e o desenho de luz é um dos dois complementos essenciais, o outro é mesmo do que vem da mesa de som e ambos acrescentam um requinte essencial ao espetáculo.

Estou fascinado e amedrontado. Sim, tenho dentro de mim aquela curiosidade da infância. Está algo a acontecer à minha frente e que me fascina, mas há aqui qualquer coisa sombria que me faz sentir aquela vertigem de quando vivenciávamos um certo medo na descoberta e, inusitadamente, faz-se sentir e nos empurra ao abismo. Deve ser disto quando falamos da magia do Ser Humano. 

É a primeira nota suspensa e a primeira vez que vemos a cara de Joana Sá. Depois dos contraluzes que variavam entre vermelhos e azuis, chega um violeta trocado com um verde iridescente, cintilante. O espaço cresce e as notas soam numa reverberação catedrálica lá ao longe, como em um templo submerso. Ora uma, espaço, ora outra, espaço, e com ela os braços da compositora suspendem-se, qual nota, qual marioneta neste submundo aquático. Foi neste segundo que percebi a carga titânica de energia que nos tinha sido dada até aqui. Respirava fundo, agora descontraído.

Se pudéssemos dividir por partes o espetáculo, diríamos que havia uma parte em que a protagonista estava ao piano e o restante, sobre o qual escreverei nos próximos parágrafos. No entanto é um risco, pois tenho a sensação de estar a ser sacrílego se o fizer.

Acontece levantar-se e numa mão tínhamos o estetoscópio que nos trazia a precursão coronária de Joana, na outra, um doppler, ultrassom, que nos atira com a circulação sanguínea no seu compasso ventricular. Estávamos para lá do visível e do audível. Assim alternamos até à estrutura interna do piano, que um qualquer instrumento com luz nos fez chegar as suas entranhas férreas em forma de som. E o passo a seguir, grave, cadencial.

Já estávamos sozinhos. Assumia-se a penumbra e a amalgama de todos os sons revisitados como se puxados pela gravidade de um astro até sobrar a estática, o quase silêncio e a lâmpada que falha no apagar e acender, fraca. Estamos no mesmo local do início. Poderia ter sido um sonho, mas não. Estamos a sair de um poema de Joana Sá. O ela poema. Ela o abismo.


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